sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Herói

Herói: 1 MIT filho da união de um deus ou uma deusa com us ser humano; semideus 2 MIT mortal divinizado após sua morte; semideus 3 p.ext. indivíduo notabilizado por seus feitos guerreiros, sua coragem, tenacidade, abnegação, magnamidade etc 4 p.ext. indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (p.ex., infortúnios, sofrimentos) ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outrem 5 p.ext. indivíduo notabilizado por sua realizações <os h. das ciências> 6 p. ext. figura central de um acontecimento ou de um período <os h. da Revolução Francesa> 7 p.ext. pessoa que, por ser homenageada ou por qualquer motivo (nobre ou pouco digno), se distingue ou é centro de atenções <os h. da festa> <o h. da baderna foi justamente o mais tímido entre todos> 8 p.ext. principal personagem de uma obra de literatura, dramaturgia, cinema etc. 9 infm. indivíduo que desperta enorme admiração; ídolo. (dicionário Houaiss, 2004)

* * herói * *

Cada esforço vale a vida
E toda vida é um esforço
O esboço de um herói
É sua vida e seu afã;
Sua libertação.

Cada manhã e seu orvalho,
Derramado sobre ele,
Estando à sombra d'um carvalho,
Como as melenas de um chorão
Serão seu mecenas
E sua salvação.

Pois a vida é esta pena,
Pois a vida vale a pena,
Pois só há de vir a alegria
Após diária distopia
Após a lágrima que escorre
Fria.

E então vem o júbilo,
E então vem a vitória,
E então vira história.

Não há fórmula
Ou predestino
Há fortuna e desatino
Há a luta, sim, contra
O próprio destino

E ao canto ficam relegadas
As desesperanças
Pois no centro vêm
Somente
Todos os meios necessários
Para a luta
Pois a concentração do monge
É a obstinação
E toda a batalha do heróis.
Não há bareriras,
Nem obstáculos
Não há óbices
Nem percalços

Há, sim, muita fúria
Tem, sim, muita raiva
E fogo vivo a arder
As chamas internas
Alma do viver

E cuida, pois, que não virem cinzas
E que arda para sempre
Há fim e início
Mas o momento é o presente
E o presente eternamente

A eternidade está contida
Em cada instante
É, pois, nesta realização,
Que se apercebe
Que a peleja é vital
E constante.

É então que se põe distante
É aí que vira um ser pensante
Atuante
E vivente.

Descrente quanto às ortodoxias
E normas
Descrente quanto aos dogmas
E às religiões cá fundadas
E crente em si e no poder
De superar
De gritar
E exarcebar!

Feliz em poder lutar
Alegre em poder perder
Pois a vitória está no embate
Não no resultado
Pois cada ato disputado
É o clamor nele
Derramado.

E o suor escorrido
E o sangue pulsado
Todos eles trazem
Em si
O resultado.

Vive o herói!
Indiferente à perda
Pois cada perda é ganho
E superação do antanho
E cada ferrenho golpe
É dum tom castanho,
Perene,
Solene
E d'outros tempos

Vive a vida em sua eternidade de momentos
Cristaliza sua própria imortalidade
Em versos que nunca se apagarão
Porque se inscrevem em sua alma.
E esta não morre.

Reencarna a luta somente o herói.
É ele que destrói, para construir,
É ele que rui, para edificar

É ele que enxerga
Sem sequer os olhos abrir
É ele que desfecha cada golpe
Num eterno interno sorrir

E vive nele a vida
E vive nele a alma!
É somente isto que importa.

É cada fechar e abrir da porta
É cada momento que comporta
Felicidades e tristezas que perdurarão
Pois já habitam seu rijo coração

Este que pulsa e bate feito um cão
Um dia pára, mas não morre em vão
Pulsará tão vivo quant'antes
Na próxima e inacabável
Reencarnação.

Jamais morre, desconhece a solidão,
É-lhe estranho pensar que estar sozinho,
Compenetrado no universo,
É encontrar-se solitário.

As estrelas não são seu guia
Através das noites?
As entidades celestes não são
A travessia imparável
Ante mesmo os açoites?

Pois onde há tal solidão?
Não existe.
É ilusão.

Vive o herói, e o desconhece
A civilização.
Não se revela, porque é mestre
Em desmentir
Sua condenação.

Não se pode ser si mesmo
Sem ter que avir com os demais
É por isso que sua face sempre espelha
A mais pura e viva paz
Ele vive
E isto só
Já o apraz.

Alma tenaz.
Morre jamais.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

To-day

To day
A new way
Nothing else
To say

Eleven hours of sleep
Thoughts run deep
But action is still asleep

***

Violet flowers
Blossomed
In my heart
And each one of them
Signaled
A neo start

***

Dark corners vanished
And no one was to blame
My reputation tarnished
But, no, it was no game

You would feel the same
Regret, remorse, remording
Within
You would lose your name
Beset, in course your damning
As Sin.

***

Existence, they say
Is a long hard way
My words, though, gainsay
Happiness does exist
Even in dismay

To relish in darkness
Is not my mark
But I did build in starkness
An old old Ark.

***

Along the road they go
Stubbornly and dreamily I watch
Hoow beautiful... but no!
Darn 'em! they've stolen my watch!

***

Gaily on his way
To the end of his life
'Cause it's a merry one
Nothing's left undone.

And here he comes....

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O Retorno

O fim leva ao começo
O começo leva ao fim
Do fim ao começo
Do começo ao fim

Do mim a você
Do você ao mim

O fim é o início
O início, o fim

Do sim ao não
Do não ao sim
De cima ao chão
Do chão a mim

É um ciclo sim
O começo, o fim
É um ciclo assim...
O início, o mim
É um ciclo ah sim!
O não e o sim.

***

Ruídos surdos batem à janela
Dos meus olhos pende a remela
Meu dia começa, a rugir a fera
Um desafio novo, uma quimera

Um cavalo de brinquedo, sem a sela
E eu montado, pensando nela
É mentira, eu sei, é balela
Mil mosquitos a picar
E eu sem tela
É balela.

Mas, pensando bem,
Há coisas que não se passa sem
E ocasiões quando não dizemos amém
A vida sendo um mal que sempre causa um bem

***

A senhora chorou, outra vez
O decorrer d'um dia, um mês
Sem o filho, que morreu
"Mas que mundo ateu!"

***

Quatro dias passou ele escrevendo
Quatro noites passou ele em claro
Em cada vírgula errada o remendo
Pagou adiantado, ele, pagou caro

A vida só decorre q'uesta minha labuta
Mo disse num brilhoso ensolarado dia
Desd'o nascer começa a infindável luta
Até o obscurecer prolonga-se a arredia
A vida quica, nasce, peleja, bate, chuta
Mas ela é vida, ela é viva, ah! vita mia!

Não basta a esmo escrever
Não basta eu vir e to dizer
É preciso c'os próprios olhos ver
É preciso co'as mãos premer
É preciso co'as mãos premir
Deixar o descanso pro dormir...

***

Pulsa
Bate
Corre
Cor
Ação
Pulsa
Late
Morre
Cor
Ação

Pára
Péra
Puts
Parô
Cor
Ação
...
(Sonata ao Luar ao fundo)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Galeria Emma Thomas: Impulso

Fui lá e vi - e toquei em - muita coisa boa. Cheque a apresentação abaixo e aproveite esta exposição interativa, se te convir (porque não há nada como poder tocar em Arte...)

sábado, 18 de outubro de 2008

Porque o mundo não é um mar de rosas

O firmamento já escureceu
Os cirros plúmbeos o cobriram,
Travestiram.
E veio a noite
Açoite.

Todo o positivismo do dia
E junto a alegria
Largaram-me só

O que fiz
E o não-feito
O que diz?
Ah! Dor no peito

Sentir-se desfeito
Contrafeito
Malfeito
Cada ato e seu defeito
Envergonhado...

Por quê?
Por nada, não há explicar
Essa tristeza baixa à noite
Vem de súbito atormentar

Por mais que outros
Sintam-se assim neste momento
Por mais que haja consolação
Não ponho fé em palavras alheias
E o imo é partido em desfiguração

***

Magia, fantasia
Expressão do ser
Seria hiprocrisia
Não dizer...

Sentir-se só em companhia
Apesar de todos
Por que seguir vivendo?
O que impede de morrer
Neste instante?
Será que há mesmo
Algo importante,
Um caminho que seja por trilhar?

Quiçá o desatino ajude
Auxilie o despertar
O nascer d'uma força sáxea
Pétrea e inquebrantável...

Talvez seja somente
Uma desforra ilusória
Temporária.
Talvez não.

Se se procura viver cada átimo vivente
A ignorar a dor que sempre assola
O interior quebradiço, movediço
Passageiro, des-inteiriço
Mestiço...
Fica tudo nisso.

Um segundo a menos
A escrever uma verdade
Um clamor por liberdade
Por que chorar a seco,
Sem lágrimas?
Não há consolo.

***

Jà não vivo mais
Cadê meus pais?

Em vida não os agradeci
Mas hoje, pois, vos digo
Graças a vós eu nasci
Conheci um lar amigo

Passam-se anos, eu cresci
Que caminho hoje eu sigo?
Infância, puberdade, já revi
Trago cá dentro um inimigo...

Quando desejo o bem
Ele pratica o Mal.
Quando busco o além,
Nos meus olhos atira sal.

E dói, contorço-me todo
Me rejeito, me indigno
E tudo que eu respeitava
Com denodo
Fenece ao badalar do sino.

Treme, trepida, tirita
De frio
Fico duro, rijo, brita
Já não rio.

Sou nada.
Sei nada.
Que sou?

Que integridade, nada!
Sou cisma, cisão e divisão
Não enxergo mais a estrada
Caminho no breu da escuridão.

Alcanço o fundo do poço
Ermo, longínquo
Uma profundeza desalmada
Meu coração vira caroço
Minha esperança me é tirada

Dou voltas, reviro, escorrego
Procuro, incansável, suado
Afirmo a vida, não a nego
Mesmo exaurido, não creio em fado

Quero construir, reconstruir
Um castelo fortificante
Que o vento não possa ruir
Que me resguarde
Por um instante...

Quero firmeza, sobriedade
Um recanto seguro pra mim
Pode ser nesta cidade
Mas com jardim, flor
E capim
Um cantinho só
Pra mim.

Estenda-me a mão
Os braços; sim, abraço!
Venha, irmão!
Qual foi meu erro crasso?

Desejo aprender, assimilar
Apreender e estudar
Os aspectos da vida
Por que vivo?
Vou ainda desvendar.

Não se vá
Preciso de ti
Volte cá.

Há tantas lágrimas não derramadas...

***

Isto não é poesia.
Não é elegia
Não é romaria.
Não é.

É vida
É transtorno
É amálgama.
É.

É
Não é
É

Não desejo possuir
Não desejo ter nada só para mim
Não quero mais viver assim.

Que seja qualquer outro jeito que não esse
Que seja cada ato gravado em desinteresse.
Que seja meu único bem minha alma.

Sim, meu testamento virá vazio de materialidade
Veleidade
E repleto, recheado e rodeado de espiritualidade.
Eterealidade, intangibilidade.
Verdade.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Rosa Moderno, Guimarães brasileiro, João de todos

Para quem curte João Guimarães Rosa, seja por suas Primeiras Estórias, seu Grande Sertão Veredas ou por Sagarana, ou qualquer outra obra, porque, sendo dele, será sempre grande.

Claudio Willer, que escreveu o posfácio de Sagarana na edição de 1987, comenta brilhantemente sobre a obra e sobre o autor, em seus elementos literários, sua multiplicidade e diversidade. A amplitude de um João Guimarães, essa grande rosa que floresceu no Brasil.

Se Graciliano é seco, Rosa é multicolor, exuberante. Se um é marxista e alinhado ferrenho do esquerdismo, perseguido, chupado, macilento; o outro é místico, mítico, cabalístico, cosmogônico, fantástico-real. Portanto, moderno.

Para quem leu O Duelo e acha que o entendeu, recomendo que se leia o estudo de cinco ou seis páginas realizado por Marisa Martins Gama-Khalil, professora doutora da UFU. Nâo se assustem: ela uniu a abrangência à fácil compreensibilidade do texto. Realmente, ao lê-lo meus horizontes se alargaram. As inferências e interconexões que se podem fazer a partir desse conto são extensas. De uma amplidão admirável.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Bilinguagem

Life of Strife

How considerate of you
To not know how I feel
How considerate of me
Blind ... unable to see

Forever asking, mouth agape
Why am I a man
And not an ape

Why call me Sam
For heaven's sake!

***

Meanwhile
I see the stars
Put off sleep
Search the heavens
Down, down, deep

Oh, I'm asleep

***

How...
Sighs she
Thinks he

But the real question
Instead
Should be
Is it?

Merde.

***

Hot inside
Burning like hell
I am Lucifer
He who fell...

***

I've come
And I've gone
I've some
And I've none

...(meanwhile) the Sun shone...

***

Angels whe are
I did dare
I did stare
I was just
A star

***

Breathing is hard
Thinking too
I am back to the start
And so are you...

***

Listening
To the sound
Of waves
Dreaming
So astound
In caves

Telling
You
Hearing
Everything
But nothing
Coughing...

***

Apart
From the world
Is my condition...
This last word
Is my rendition...
I am a slave
I can be free
I am not
Then I can be
'Tis all blindsight
Then I can see...

Vida Aturdida
(tradução poética de 'Life of Strife')

Eu sei o quanto tu pensas em mim
Em não saber que me sinto assim
Quão ignorante sei que eu sou
Não enxergo... algo me cegou

Sempre a indagar - a boca abro,
Porque faço parte da humanidade
Por que não um macaco

Porque chama-me Mateus
Pela graça de Deus!

***

Entrementes
Eu vejo os astros
Empurro longe o sono
Perscruto a fundo o além
Aquém, aquém, a fundo

Oh, que sono profundo

***

De que maneira...
Em um murmúrio ela suspirou
E, por acaso, o mesmo ele pensou

Mas a pergunta deveria ser
Não é verdade
É isto a realidade?

Merde.

***

Por dentro me é tudo brasas
Queimando como o inferno
Sou o caído Lúcifer
O anjo que perdeu as asas

***

Pois eu vim
Pois parti
Tenho, sim
...Já perdi

...Enquanto isso, o Sol sorri...

***

Nós somos anjos
Eu, sim, ousei
Eu, sim, mirei
Fui justo
Somente uma estrela

***

O ar me vem espesso
Estou de volta ao começo
Pensar não me vem bem
É o recomeço
E a ti também...

***

Escutando atento,
No desalento,
Das ondas, o marulhar
Sonho lento...
Surpreendentes cavernas


Digo
A ti
Ouço
O Tudo
O Nada
E tuço... mudo.

***

Aparte
Do mundo estou
É esta minha condição...
Esta palavra que restou
É, pois, minha rendição...
Sou um escravo
Posso ainda me libertar
Nada sou
Posso então me tornar
É cego o meu olhar
Pois posso, agora, enxergar...

***
A minha intenção em escrever a poesia começou inexplicavelmente pelo título. Digo isto porque durante todos os anos de escola e curso de inglês e japonês, sempre foi de praxe escutar que se começa pelo corpo, pela idéia, e o título é um posterior acréscimo. Mas não foi assim desta vez. Em minha cabeça irrompeu "Life of Strife", e logo em seguida a tradução poética que eu conceberia: "Vida aturdida". Pois eu estava, horas depois, estando já praticamente esquecido aquele singular pensamento, assistindo a mais um bocado do belo - e incansavelmente lírico - filme Asas do Desejo (Der Himmel Über Berlin, 1987).

A inspiração que me trouxe o filme foi instantanemente a de escrever. Mas me vieram, apenas, feliz ou infelizmente, palavras e linhas em inglês. Pensava, transcrevia, e me admirava com o resultado. Não que esteja uma maestria, não que esteja perfeito. Bem longe disto; o que me assombra, no sentido positivo da palavra, é esse arroubo poético que, cada vez mais às claras, se manifesta. Que siga assim.

A tradução não foi menos trabalhada. Aliás, poucos são os autores que traduzem a própria obra. Tradutores , bem ou mal pagos, sempre haverá para isso, naturalmente pensamos. Somente que, em matéria de poesia e obras transbordantes de lirismo, não se dá o mesmo, não apenas por razões estéticas e estruturais. A questão da tradução poética eu pude finalmente entender por meio da seguinte analogia: o escultor esculpe com esmero sua Pietá marmórea. Será você capaz de reproduzi-la em todos os seus originais detalhes? Já sabes a resposta, e é exatamente por isso minha colocação. Superada essa frustração inicial, sobe à cabeça a pergunta: Que aspectos escolherá, sendo-lhe impossível reproduzir com fidelidade o todo, para poder, então, transcrever em outra língua a essência do que foi escrito? Há de separar, pois, o trigo do joio.

Traduzir uma poesia, penso eu, é recriá-la; uma segunda vez desenhá-la; pôr-se como um segundo autor. E, para isto, dá-lhe responsabilidade! Posso humildemente dizer que estava ciente do trabalho mental que teria pela frente. Ao invés de rebaixar os versos originais às minhas limitações, galguei todos os degraus necessários para me deixar à altura da originalidade de meus pensamentos. Não fui, pois, infiel em ponto algum ao sumo do que havia escrito em inglês, na tradução acima. Mudaram-se palavras, mudaram-se, em duas ocasiões, o número de linhas de uma estrofe? Sim, isto mudou. Quanto à essência, o mesmo não pode ser dito. Traduzir um poema, é retrabalhá-lo mentalmente. Às vezes escrevemos por inspiração, mas isso não basta. Sem compreender, é impossível traduzir dignamente. Se somos incapazes de reproduzir o original, atendo-se, não às suas infinitas peculiaridades, mas à alma daquele, então não o entendemos. Leia e compare. Confronte.

Descu..a.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Premiação

Quero dizer que a premiação do Concurso de Literatura do CEFET-SP, gravou-se em minha memória. Primeiro, porque a professora de Português e Redação Floripes organizou-a com a ajuda indispensável do grêmio - responsável pela distribuição das nossas gratificações "materiais". Se nós, os alunos, dependêssemos da direção da escola para a realização deste evento literário, o Concurso estaria certamente legado ao abandono. E palmas para o professor Vergueiro, que se imbuiu dos presentes dos quarto e quinto lugares.

Foi uma ótima celebração, encantável homenagem. Nós lemos nossos textos e escutamos os demais. Surpreendente a qualidade, admirável.

O texto com o qual fui premiado com o 1º lugar em prosa encontra-se aqui mesmo no blog (caso não tenhas lido): "Werther: A Epopéia do Amar"

Em poesia, obtive o 5º e o 9º lugares. O 5º foi devido a esta: "A Seta Poética" . E o 9º: "Ala, Ó Humanidade!"

É só.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Hoje e eternamente

Está um dia maravilhosamente quente. A campânula celeste exsuda e o mundo sorri. É mais um dia desta canícula primaveril, que recende a leituras e atividades ininterruptas. E sobre atividades ininterruptas: hoje fui à biblioteca, descobri que chegaram livros novos, novinhos em folha. Fausto, de Goethe, em uma tradução bilíngüe a partir do original alemão, em dois volumes, belos catataus que eu cogito ler em breve. Édipo em Colono, seqüência de Édipo Rei, em uma tradução direta do grego, também bilíngüe. O texto em grego, ao final, surpreendentemente vem impresso em páginas verdes, algo que eu nunca vira antes. Resume-se ao belo, visto que não tenho o mínimo conhecimento sequer das letras gregas utilizadas na física.

Enfim, encontrei uma novíssima tradução, por Rubens Figueiredo, de Anna Karenina (a grafia do nome sempre muda), algo como uma Madame Bovary russa. Ou assim ouvi dizer. Tendo já lido sobre os adultérios desta feminista de vanguarda criada com esmero por Gustave Flaubert, falta-me, então, ler sua correspondente eslava, levemente mais espessa, digamos, considerando que tem oitocentas páginas e é um livro bem grandinho, nem de bolso, nem de sobrecasaca. Peguei mesmo foi Memórias de um Sargento de Milícias, do Manuel Antônio de Almeida, o 'Um Brasileiro' que escreveu este seu único romance de renome, por seus joviais 22 anos. Oito anos depois morreria nos soçobros de uma embarcação, Hermes, que foi engolida pelo mar. Ironicamente, Hermes é o deus grego das travessias e das fronteiras, que dá uma mãozinha aos viajantes, viandantes. Parece que, no entanto, a mãozinha que o deus estendeu ao Manuel não foi lá de toda solícita. Malgrado nosso.

Peguei juntamente A Morte de Ivan Ilitch, obra do portentoso escritor russo Lev Tolstói, vertida para o português. Quem o traduziu foi Boris Schnaiderman, que ao lado dos consagrados Rubem Braga e Paulo Bezerra (este sendo o cogitado tradutor de Dostoiévski), forma a tríplice escol da tradução literária russa para o português de nossos tempos. Encontrei na biblioteca - quem diria - uma versão monumental e multicentipaginária de Ulysses, James Joyce. Este daí vou ler em ingês, me perdoem os excelsos e intrépidos tradutores.

Não contei, todavia, que ao me vislumbrar com tanto material para leitura e regozijo domiciliar, acabei metendo a carteirinha não sei donde, e foram-se 30 minutos de busca sem sabor nem cor. Até que... tcham tcham tcham! Achega-se do almoço o bem-disposto e bem-humorado "chefe" - ali da repartição bibliotecária - me oferecendo uma ajuda inprescindível. Verdade. Quando, após elogiáveis esforços, ele me entregou em mãos a "amarelinha", só comentou "Se fosse cobra...". Se fosse cobra não picava, não, esgoelava mesmo! Estava embaixo do meu nariz (literalmente, porque eu encontrava-me agachado a dedilhar aquela mesma prateleira onde a sacana se escondeu). E pimba! Ele a acha. Ufa. Quer esconder algo de alguém, ponha-o bem à vista. Ali é mais seguro que o cafofo de São Judas.

E o dia se resume a eu chegar em casa, comer mui pouco - já que não haveria sesta depois do almoço -, e ler como um maníaco primeiro O Veredicto, depois Um Artista da Fome e depois (!) Uma Carta a Meu Pai, todos deste Kafka cada vez mais atual e must-read. Acordei, ops, levantei com as pernas meio mambembes, claudicantes e bambas, mas sarapantado que eu estava com a velocidade vertiginosa, vale tudo, vale tudo!

E o dia bem que ainda não terminou, não é mesmo, Tolstói?

Responderás nas entrelinhas?

Bem o sei...

O Cravo escapuliu...
Veio, pois, a Rosa.
Abriu-se com um abraço
Apresentou-me um outro mundo
Nele ainda estou...
(Eh! me conquistou)

Ressurgiu o rubro Sol
E verdinha Esperança renasceu também
Resta agora ir adiante adiante.
Viandante, estudante
Mutante, pensante
Avante, xavante!

domingo, 12 de outubro de 2008

Sagarana

Escrevo, transcrevo...êe ensejo! Sagarana inspira:

Rabicundo, iracundo
Rubicundo, fecundo
êe Mundo!

"Não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma"

"Suspiro de vaca não arranca estaca"

"Para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha"

"Terra com sede, criação com fome."

"Garruchas há que sozinhas disparam"

"Pediu que o levassem para a cama; mas já era outro homem, porque chorar sério faz bem."

"-Melhor um pássaro voando do que dois na mão!... Eis a versão do provérbio, para uso dos fortes, capazes de ideal..."

"Quem fala muito, dá bom dia a cavalo."

***

Ô, arco-da-velha!
Arco-íris!
...Íris!

Quero ver o baú que escondes
Buscar em ti o tesouro
Bom ou mau agouro...

Buscar

As moedas e pedras
Brilhosas e opacas
O trigo e o joio
O branco e o preto
E todos os tons entremeados
...
As páginas e poesias
Cantigas e patifarias
Buscar-te-ei, ó tesouro!
...
Pois sobre mim há
A certeza de um céu
Campânula dos deuses;
E sob mim também jaz
A certidão de uma Terra
Úbere, vasta e vermelha
Eis o quinhão da vida!
...
Mas, compressada bem no meio
Entre essas duas, inexauríveis certezas,
Sobrecarrega-se de incertezas
Uma já incerta vida.
...
Vida vida
Vide vida.

***

Ai-jesus, ai-jesus!
Vem cá, xodó!
Que estavas a fazer
No cafundó de Judas?

***

Purrutaco, papagaio
Elefante, paquiderme
E nós, o que somos?

***

Pelas frinchas, pelas fisgas, pelas frestas
Pela vida, são incontáveis as arestas
Jovens, anciãos, pais, pessoas modestas
Mãos, pés, braços e pernas, todos os membros e testas
Compõem, nesta vida, dos ódios e amores, as arestas...

Na solidão, nos costumes, nas pândegas festas
No acordado e dormitado, todas as diárias sestas
Vê-se, da vida, suas multicolores arestas
Se as divisas ou não, é tu somente quem atestas...
Se não, tenhas tu a bondade de deixá-las imolestas

Pois a vil saudade bem as deixaria funestas
Vai! Deixa-me, tu, eu com minhas arestas!

***

Até breve que São Marcos me chama
Eu que não sou bobo vou é à cama
Sonhar com - êe...- Sagarana!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Do Nosocômio ao Manicômio, Nada há de Cômico

Cada porta aberta encerra,
Em si,
Um cômodo intrasponível.

Cada nova crua neo-guerra,
Em si,
É mais que incômodo,
É, antes, um indizível.

As bocarras hiantes de Zola,
Cavas e fundas,
E as liras de Khadji-Murat,
Tão profundas...
...Engoliram o mundo.

A transformar o belo platônico
Sua virtude clássica,
Em trapo imundo.

Numa realidade trágica,
Roupas de vagabundo,
Que Albert Einstein
Descobriu tarde demais...

Eclode, hoje, a Rosa do Povo,
Neste Crepúsculo dos Deuses,
Qual nem mesmo Nietzsche sonhara...

Surde da fenda, da greta invisível,
Esta verdade, pequena e potente,
Esta verdade amara:

A Guerra é inumana tara.

Taras Bulba já o sabia,
Gógol bem o mostrou.
A morte que infligia,
Certo dia o alcançou:

Seu Karma o decapitou.

A extensão deste brado,
Brasileiro, paulista, desafinado,
Não o deixa desmeritado.

Afortunado o que ouve a razão,
Em um mundo desarrazoado.
Abandona - duras custas - ilusão,
Dos grilhões, puxa,
Vê-se finalmente libertado!

Se Kafka intentou ruir
Um globo em fundamento falso;
Futuras gerações vieram destruir,
Desnudando o próprio pescoço
No cadafalso.

A morte no catafalco.

"Chega!", gritou,
E a velha ordem:
Desabou.

Para sempre?
Não.
Pois o que é eternamente?
Algo em si, porém, mudou.
Trans-figurou, trans-formou
...
Metamorfose

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sonhos

Desde o ano passado, sou profundamente grato aos meus sonhos. Sim, quem diria? Foram constantes os que predisseram insucessos no âmbito escolar. Naquele ano, uma semana antes das provas de Matemática, era comum sonhar da seguinte forma: encontrava-me na sala de aula da escola, realizando a prova como meus demais colegas, quando, de súbito, irrompia a professora, até então camuflada de meu campo de visão, gritando: "Você não estudou! Como quer fazer a prova sem ter estudado?!". E eu despertava sarapantado com aquilo, minha camiseta toda ensopada. Olhava em meu derredor e percebia que não passara de um sonho. Tardava ainda uns bons cinco minutos para recuperar do susto, e que sustos me pregaram essas predições!

E ocorria que, se já não pegasse nos estudos naquele mesmo dia de noturnas profecias, eu era ainda atormentado por sonhos, de mesmo teor - na noite seguinte e na seguinte... O fato é que tanto me espantavam aqueles sonhos que não deixava estes se repetirem uma segunda noite. Debruçava-me, então, de vez sobre a matéria, para assegurar um bom e modesto 6,0 de média. Passados os exames, não poderia deixar de agradecer essa onda incosciente que houvera feito subir a maré no tempo certo. Pois não dava outra: bastava iniciar meus estudos que paravam os suspiros noturnos amedrontados, e o cessar de minhas aflições sinalava que iria manter-me ao menos na média. E de fato acontecia.

Pois não é que hoje fui tirar um cochilo à tarde e fui assolado por um sonho tão temerário quanto àqueles? Sonhei, pois, de tal maneira que falhava na prova de Recuperação de Química de amanhã, que só fui tomar conta de que era um sonho horas depois. Sim, fiquei horas pensando ter me dado mal em uma prova que ainda me aguarda! E olha que eu tinha ido dormitar um pouco justamente depois de terminar a revisão da prova. E, pensando bem, preciso agora mesmo resolver, na prática, esta profecia. Vou estudar o quanto conseguir, e sempre confiar nesta Mão que se direciona a mim exatamente quando mais preciso de um ombro amigo. Agradeço que seja um ombro amigo, que se estende não para eu nele derrramar meus prantos e possíveis infortúnios, mas um ombro que se consolida, sempre, como um firme e inabalável suporte nas mais desditosas ocasiões.

Robert Louis Stevenson, famoso pela autoria de Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro), inspirou-se nessa estória da luta entre o Bem e o Mal, curiosamente também, a partir de um sonho. No meio da noite foi ele acordado pelo o que havia visto em seus sonhos, relatou-o à mulher e teve a brilhante idéia de escrever um rascunho. Sua mulher desaprovou do primeiro, que ele então atirou no fogo da lareira. Já a segunda versão que preparou recebeu, por sua vez, imediata aprovação, e ao longo dos tempos transformou-se numa estória de que nós, ao menos uma vez na vida, escutamos falar.

E, claro, a literatura não é a única a ter recebido influências de estados de consciência diferentes dos que se pensam serem os responsáveis por grandes obras. Friedriech August Kekulé, o cientista que descobriu a importantíssima estrutura do anel de benzeno, já vinha quebrando a cabeça com o enigma dessa cadeia aromática, de cuja existência ele já estava certo havia tempos. Apesar de todos os seus esforços, não conseguia determinar como se estruturavam os átomos em suas ligações. Dormindo, certo dia, ele sonhou com a cobra Ouroboros, da mitologia nórdica, perseguindo sem cessar a própria cauda, em círculos. Daí seu inigualável achado. Como Arquimedes, Kekulé deve ter se sentido digno de exclamar "Eureka!" muitas e muitas vezes...

Aliás, aproveitarei a sabedoria que me trouxe o Inconsciente e desmentir sua profecia. Isto é, enquanto há tempo...
David Coubert - Mulher Dormindo (1853, óleo s/ tela)

E Vive

O Júbilo do aprender
É a alegria de viver!

Nasce o dia, frio e sem sol
Mas dentro de mim já fulgura
A roda viva do arrebol

E dentro de ti também.

Há em mim um radiante arco-íris
Composto por todas as cores
Todo o mundo e suas flores

Há em mim
O aquém e o além

Você é o que é
Mas não o que tem

Eu sou o que sou,
O que o destino me aproximou.

E vivo.
E vive.

E sigo.
Em aclive ou declive
Ele vive.

Percorre prados e montanhas
A ver teias sem aranhas
E perscrutar suas entranhas

Cada problema resolvido
Cada dia vivido
Cada passo dolorido

É tudo provido
De um incandescente colorido
O constante fulgir
Da vida.

Brilha, pois, enquanto há luz!
O esplendor da manhã
Não morrerá.

Não morrerás.

Cantar-te-ão resplandescentes sabiás.

E então saberás do que eu falo.

E num irromper entenderás.
Como nunca havias antes,
Que a prometida eternidade
É mesmo feita de instantes...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Mahomet

Se Maomé nada fizer
Nada será; nunca será
A Montanha não vindo
Maomé bravo pra lá irá

Maomé deve ir até ela
Desbrava, homem,
Vá logo, caminha!

Que te importa se é lépido ou moroso
Espezinhar rápido, bem vagaroso
Eta, caminhar ditoso!

Desde o início tu caminhaste
Não foi propício mas tu andaste
Que sacrifício, homem guindaste!
Esse resqüício que pezunhaste!

Quem disse que era fácil?
Quem disse que era grácil?

O suor te cegou o olho
Caíram-te os pêlos do sobrolho
Tu até mesmo colocaste as barbas de molho...
E chegaste lá zarolho

É,... eu bem sei
Chamaram-te Nei
Apelidaram-te de Nem
Ninguém sabia quem tu eras
Mas tu sempre foste alguém...

Ah! Não crês?
Não vês?
Tu és.

Exatamente porque nunca creste.

Seus passos apolíneos
Em veredas e caminhos
Teu porte retilíneo
No trilhar sozinho

Tinha rosas, tinha espinhos
Mas nunca degredaste
A obra principiada
Foste duro e rijo
Um'árvore delgada
Paradoxo: bem-arraigada.

As passagens tortuosas
Que espetaram-te os dedos
As chacotas preguiçosas
Nem te sequer botaram medos

Pois, não foste tu?
Que enfrentaste o degredo?
Sem ela, a Capitu,
Tu levantaste dia-a-dia cedo...

E para quê?
Tu, somente, sabes
E eu ficarei na minha
Foste tu quem aprendeste
E eu fiquei pra ver...

Tu por dentro cresceste
Num homem novo renasceste
Mas disso nada sei...

Mágoas te infligiram
Misericórdia não te deram
E mesmo assim tu perseguiste
E perseveraste...

Ô, homem,
Que te fizeram?
Cegaram-te os olhos?

"Pois eu tudo vejo,
E tudo escutei.
Pois o que almejo,
Isso tudo alcancei."

"Então perdoas-me pela demora?
Tu por mim esperaste sem ir embora.
O que fizeste o tempo todo pra passar a hora?"

Uá, eu fui olhando lá pra riba!
Vi estrelas, conheci Curitiba!
Li um montão de livros,
Sabe aquele do Içami Tiba?

"Me desculpa o infortúnio
De não conhecê-lo?
No andar eu vi Netúnio.
Tu já chegaste a vê-lo?"

Creio que... não, nunca o vi
E tu, já ouviste o bem-te-vi?
Em criança me arrependi
Mas adulto jamais esqueci
Como canta bem o danado!

"Que maravilhoso o que dizes!
Quem não o ouviu são infelizes,
É um cantar bem prolongado
Tom, voz e timbre, tudo sincronizado!"

Cuida que não é só isso não!
Aquela ave tem é belo diapasão!
E estranhamente canta quieto
O que me deixa circunspecto...

Por que será que canta assim?
E o sabiá, não será outrossim?
Canta finim, finim, ô passarim
Ê, candura que nu acha fim!

"Não sei se vigiaste pernoitadas
Mas meus pés deixaram pegadas
Talvez o sigam, talvez jamais
Ele é reto, desgostoso ao Barrabás...

Talvez seja isso um bom sinal
Caminharão nele os do bem
E será abandonado também
Por aqueles que pensarem mal...

Repousam lá cansados viandantes
Jazem nele semi-mortos os viajantes
Mas, mais vivos que todos eles,
Não o estão nenhum dos seres...

Porque eles buscam, né, a tal verdade
E pouco a pouco largam vil saudade
A casa ampla se abrirá ao voltarem
À distância mui custa se acostumarem...

Penso que, no entanto, fazem bem ao viajarem
Seu lar, seu bar, sua pátria, até a estalagem
Torna-se leito, cama, repouso pra viagem
Desnecessitam de mãe, pai ou pajem

Compenetrados eles vão
Seguindo a viagem
Vem do sol a mornidão
Fazem e perfazem
Na calma, tênue solidão,
Memorável viagem...

Fênix humanas..."

domingo, 5 de outubro de 2008

Re-vi...ver.

No início, era a azia. Depois venho a tempestade. Entremeado aos dois, o sentimento de solidão, soledade, solitude. Ribombavam os trovões, o tempestear externo em paralelo ao meu plano interno. Rajadas evocavam angústias, passagens, ritos e memórias. Tarefa inglória ver tudo, sem participar. A reflexão mostrava-se unicamente presente. A inação do corpo sob o turbilhar das emoções. E a chuva...

De repente, tudo alagou. O dilúvio enxarcou minha alma, a chuva não cessava. Eram lágrimas, milhões delas a escorrer em frente aos meus pés, e a garganta ressequida, rouquenha, inaudível, porque sem voz. E os olhos premiam-se contra a fúria das tormentas. Minha goela ardia, como se se incandescesse por palavras, fonemas que fossem. Mas as gotas a escorrer, sem cessar, eram minhas palavras, inefáveis, insondáveis. O coração queria tornar-se fértil novamente, então debulhava em mim seus medos e receios. Todas as puerilidades que o consciente tenta mover para longe, bem longe do meu eu social.

Em mãos eu tinha o pano, e à vista uma bela provisão desses farrapos secos, ansiantes por lágrimas, desejosos de água que os completassem como o líqüido a uma esponja. Nos braços eu tinha a força, toda a força de que me muniram os anos. Dezoito anos, e tanta angústia. Nas pernas toda a energia, tão vital. E o pano, maltrapilho pano, exíguo exemplar, jazendo imóvel nas calejadas mãos. "É chegada a hora", disse-me o Oráculo, aquele que reside em cada um de nós.

Não poderia ter sido diferente. Secava tudo o que a chuva trouxera, agachado, visionário. Cada curso d'água era uma história que deixara para trás, mas o fluxo era imparável. Impossível captar tanta fonte d'água, a correr desesperadamente, buscando uma saída que fosse. E tudo eram saídas. E tudo era vazão. E simplesmente não parava. Os braços latejavam, as mãos se avermelhando e tudo aqui pulsando. Dilatavam-se as veias, e a cara de esforço representava tudo. Modelava meu ser, expressão do real.

Cada passo, cada gesto braçal, o esforço de passar a seco toda a umidade que me trouxera a realidade. Nuvens declamavam suas poesias, em choro. E que choro copioso. Foi dada a mim a tarefa de ombro amigo para todas as almas que choravam no mundo. E o pano enchia-se facilmente. As mãos, machucadas e feridas pelo esforço, não só secavam diligentemente, mas também limpavam. E como limpavam. Doridas mãos clamavam por clemência, mas o degelo era pungente.

Quantas pessoas lacrimejavam em mim suas mágoas. Cada retorcida daquele material de algodão gasto trazia-me memórias. Cada repuxada e cada músculo estirado gritando de dor e impotência frente àquela batalha recendia a lembranças. Estava tudo armazenado, mas os esforços não me bastavam para trazer tudo à tona. Estava chovendo no molhado, e minha cabeça, submersa, pendia semi-inconsciente, lutando para viver. Meu corpo rijo batalhava e pelejava, e eram tudo convolutas. Voltas, reviravoltas, o distorcer molhado, o torcer enxuto. Misturavam-se todos os sofrimentos para compor um univalente. Totipotente.

Se fosse só isso. O que, todavia, não era. Doíam-me as mãos, mas o trabalho hercúleo, de alma e corpo, matéria e imatéria, não podia parar. A máquina funcionava a todo vapor. Redescobria em mim esta máquina humana, complexa e ferida. Não podia parar de acalentá-la, de raê-la, de roê-la, de esfregar minhas mãos no chão. Meus quatro membros naquela luta de mim contra mim mesmo. Retomava um aspecto mitológico: o herói a lutar contra o próprio destino, fixado, imutável. Mas mesmo assim lutando, aquela luta inelutável. Tinha tudo para ser o protagonista, então porque não sê-lo, então porque não premí-lo naquele momento de tanta energia focada num único ato. Valente ou covarde, era um ato de auto-limpeza. Era minha ação individual neste mundo, era o perdão que pedia, era a dor ressentida pela última vez, para finalmente despachá-la adiante. Não a queria mais. Não me fazia bem.

A chuva adiava seu fim, assim como eu a minha luta interior. Havia tristeza, havia solidão, havia, sim, muita dor. Mas nada me impedia. O ímpeto do fogo que ardia cá dentro era mesmo de limpar e secar todo aquele mar sem horizontes de lágrimas. Bradava por luta, por continuar esta jihad interior. A maior batalha de todas sendo travada enquanto fraquejava o corpo e fortalecia cada parte imaterial de meu ser. E se remunia de vitalidade meu intangível. Toda a água que eu secara na verdade evaporara para minha garganta. Agora ela conseguia exprimir a vida. Os olhos se haviam tornado enxutos, todas as lágrimas haviam se dispersado. Não fora em vão. E nada é em vão. Eu cuspira o pão que Barrabás amassou. Mas essa entidade estava aqui dentro a causar-me aflições, e eu a reneguei. Expatriada, anátema. Não te quero mais, não vês que por pouco não me destruíste?

No lugar da solidão abismal, venho a solidão da paz. Pacificadora reanimação da anima. Da alma que tanto pedira por água e só encontrara desertos cheios de miragens, a estontear-lhe as vontades, a amedrontar-lhe a esperança de viver. Mas o corpo que tanto lutara para esfregar o chão enxarcado acabara de nutrir sua força motivadora com água suficiente para tirar-lhe daquela angústia sedenta. Revivia algo dentro de mim. Renascia a fertilidade, volvia o cheiro do cravo, daquela flor branca e pristina, simbolismo, simbolismo.

Era o começo de uma nova vida. Desta vez, repleta de significado.

sábado, 4 de outubro de 2008

Viva!

Puxa, você não sabe ainda que tudo isto foi seqüencial? Estou eu jogando sinuca no bar com dois amicíssimos e uma amicíssima. De súbito chegam três usuários, a cheirar "a coca" como animais, fungando endiabradamente, sonoras puxadas, porcos focinhando. Um deles se vai. Ficam: um cara de vinte e poucos e uma mina nessa faixa. Entram no banheiro feminino: transam como se estivessem na selva. Saem, primeiro ela, depois ele. Ninguém viu nada. Boca fechada. Não satisfeitos, voltam os dois ao mesmo banheiro sugismundo. De novo a emitir brados de prazer do interior do recinto, supostamente para higiene pessoal. Perco a concentração, despeço-me dos amigos. No banco do metrô, distraído e puto da vida em ter visto pessoas se auto-destruindo, sento, sem prestar atenção, na urina de alguém bem-educado por nossa fábrica social. Quarenta minutos de metrô, mais cinco andando até chegar em casa - ainda com a bunda muitíssimo bem-hidratada (ela me dizendo: "obrigada!") com a volumosa solução de uréia alheia. Em mente o desejo de pedir uma pizza, para comê-la junto de meu irmão ao chegar. Ele está roncando quando finalmente chego ao lar, doce lar. Não importa - "vou tomar banho". Nem preciso dizer que já havia tomado durante o dia, mas a surgida ocasião me fez ladrão de água... Depois do banho venho pro PC. Descubro que o que chamei de relacionamento está findado. Estou até agora estupefato, retardado, imbecil, um palhaço sem sorriso, um gesto friso. Preciso lhe dizer quão maravilhoso é receber notificação de fim de namoro via orkut!

Não reclame, amigo, se você não passou pelo que passei. Felicite-se por jamais ter tido de agüentar 40 minutos de urina de outrem pregando as tuas ancas à cueca e à calça, porque, a não ser que tu te despisses em público, mostrando tuas vergonhas, não haveria como não passar pelo mesmo. E felicite-se por não ter recebido notificação de fim de um relacionamento - que se diz mútuo, convenhamos - por orkut, sendo que a pessoa em questão teria como ter te ligado, pois tem seu número de telefone. Enfim, felicite-se, porque "fundo do poço", disse a sabedoria fraterna, é conceito para os que acham que sofrimento tem fim. Ter, tem. Mas só sabem algumas poucas pessoas, que muito, e digo: muito muito muito sofreram nesta vida.

Chega de pregar-lhe sermões. Cada qual, cada um, aliás, estamos no capitalismo selvagem. Aqui não tem choro nem vela. Tua tristeza e mazela, disso não me importo. Com licença, preciso dar uma fungada - no papel higiênico, esteja claro. Boa vida!

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Corra, Lola, Corra --> "Tupiniquim version"

(redação escrita no 2º ano, para disciplina LPR. Professora Ana Lisboa)

Lola acabara de acordar quando o telefone tocou. Era Manni, seu namorado, com a voz embargada. Urgia-se que ela conseguisse vinte mil reais em vinte minutos, no máximo. Ela perguntou-lhe o porquê de tanta urgência, mas da resposta só pôde discernir que ele se encontraria em sérios apuros caso ela não lhe levasse a quantia dentro do tempo.

Ela se levantou da cama com um ímpeto furioso, determinada a correr aloucadamente para arrecadar aquela quantia estrondosa e, assim, livrar a pele do namorado ("o que ele aprontou desta vez?!"). Saindo da cama, Lola penteou-se em frente ao espelho, trocou o pijama por roupas leves, de correr, e saiu em disparada do quarto. Na escada que levava ao térreo estava um vizinho pivete, de 10 anos, assobiando candidamente, para passar um ar enganador, suposta infância. No pique que ela deu para alcançar mais rapidamente os degraus, passou despercebido o pé maliciosamente estendido, e ela só tomou conhecimento do fato ao levantar-se, alquebrada, na base da escadaria.

Na rua, às seis horas matinais, os transeuntes, esparsos, ainda estavam envoltos pelo ar sonolento do despertar do dia. Passou casualmente por seu calvo pai, que, de carro, nem sequer a notou. Atravessando uma rua erma sem olhar para os lados, Lola trombou em cheio com um velho maltrapilha, que conduzia sua bicicleta como se em sonho. Não prestou socorros nem, tão-pouco, observou os esgares de dor que o homem fazia, a jazer estendido no asfalto, com uma evidente fratura no ombro.

Cruzando com várias pessoas que tinha a certeza de já ter outrora cumprimentado uma vez na vida, não logrou lembrar seus nomes. Daquele mesmo jeito desmemoriado adentrou o banco, onde seu pai trabalhava ("deveria ter pego uma carona com ele, burra!"). Suava em bicas. Correra por dez minutos sem parar. Pisou com resolução no capacho da porta de entrada, debatendo-se, por dentro, contra a necessidade odiosa de ter de pedir grana àquele coroa ranzinza.

Tudo era contratempo. Antes de passar pela porta blindada que dava acesso aos escritórios dos mais altos funcionários, precisava falar com um guarda gordo e rechonchudo nas faces, sempre a fazer brincadeiras macunaímicas - sem graça, o patife. Ele a cumprimentou com um ar grave, que a surpreendeu. Mesmo assim, ela pensou, preciso tirar esse palerma da minha frente logo, puxa. Ele franziu a testa e pediu um momento. Lola, impaciente, só calculava os possíveis desfechos se o cacife lhe escapasse das mãos, ou se ultrapassasse o já exíguo tempo. O portentoso segurança de súbito assumiu um tom de confissão lamuriosa, contando-lhe - que hora imprópria, pensou Lola - que era seu verdadeiro pai. Explicou-lhe, debulhando-se em lágrimas, que a deixara sob os cuidados do patrão, pois era em quem mais confiava. Aliás, acrescentou o guarda ("é meu pai e nem me diz o próprio nome, é brincadeira isto?!"), a mulher do patrão era sua mãe, mas este nem desconfiava, então era melhor ela ficar quieta. Ela havia feito uma viagem alegando doença terminal ao marido, e tivera Lola em segredo. Quando chegou, confabulou toda a história em que Lola encaixava-se como filha do guarda. O marido gostara da boa ação e, sempre dizia, por algum milagre do destino ainda tomara semelhança à sua própria mulher, que graças ao bom Deus se curara de todo. Só podia ser coisa de Deus, pensava ele.

O que mais espantou Lola foi a rapidez com que se passavam os segundos. De resto, não percebeu que o guarda mal se agüentava. Ai, dramalhão, abra alas antes que te dê um "fica esperto", vamos!

Dardejou pelas portas enumeradas, em série infindável. Estacou à frente da porta semiaberta de seu pai placebo. Auscultou a voz de uma mulher. "Deve ser piriguete". Resolveu dar uma olhadinha ("mal não vai fazer"). Viu a silhueta de uma mulher loira, feia pra baubau, mas bem vestida, aproximando-se de seu padastro com uma fa-mi-li-a-ri-da-dee, hum! Os dois se abraçaram languidamente. Aquele gesto de adultério safado em hora de trabalho foi o estopim para Lola, que escancarou a porta com um chute tão forte que partiu a dobradiça. Entrou, gritando, perdendo de vez o brio ao ver o zíper de alguém aberto:

-Pai, preciso de dinheiro! O pai, exasperado, redargüiu:
-O que é que você quer de mim?
-Dinheiro, já falei!
-Quanto? Fala.
-R$20 000, vai logo!
-O QUÊ? kkkk... Você tá gagá?! - e irrompeu numa gargalhada digna de um orangotango.
-Eu...preciso...do dinheiro... AGORA! - e sacou da bolsa o revólver, elemento-surpresa sempre tão necessário nos empréstimos relâmpagos. Apontou-o para aquele homem, vulgo 'pai'.

Sob a mira da arma o pai seguiu à frente, mas no caminho para o cofre olhares espantados os fitavam pelos corredores daquele labirinto. Faltavam cinco minutos! Lula apressou-o tanto quanto pôde, ameaçando dar-lhe uma coronhada. Cada minuto transcorrido era precioso, uma vez que Manni tinha como última alternativa roubar o supermercado logo ao lado do orelhão de onde telefonara. Finalmente todas as notas estavam dentro do saco preto, que ela amarrou e levou na mão esquerda.

Abrindo a porta de saída do banco, constatou que o instrumento de coação encontrava-se ainda na sua outra mão, então o guardou na bolsa. Chocou-se com a vista defronte aos seus olhos: a polícia fizera um cerco ao prédio. Congelou de medo. De repente um coxinha berrou que saísse da frente, e vários gambés a puxaram com habitual gentileza para fora da formação em arco dos carros e homens posicionados. Disseram para ela: se manda pra delegacia pra dá depoimento. Ela aquiesceu e nada falou. Rachava o bico por dentro. Putz, o Tico e o Teco devem estar tirando cochilo nesses capatazes! Fora salva pelo gongo!

Tremendo dos pés à cabeça, como que bêbeda, virou na esquina e, com as forças restantes, esperneou até Manni escutar. Este veio em encontro a ela, ambos trombaram, de emoção, ressaca e um pouco de adrenalina, e o dinheiro se esparziu pelo chão. A verdade é que ele estava empurrando a porta da loja naquele momento, o que deixou tudo mais cinematográfico. É aquela pegada de timing de diretores de cinema e teatro. Quando certinho, deixa tudo mais alucinante.

Os pedestres, que haviam sabido do assalto ao banco situado a apenas algumas quadras dali, desconfiaram imediatamente. Os namorados, em sobressalto pelo incidente azarento, recolheram parte do conteúdo para dentro da sacola (Lola era prevenida), e distribuíram o resto para o populacho que aglomerara no entorno. Boa-vontade geral! Oxalá! Viva Deus! A Paz esteja convosco, contigo, com ocê! De tudo escutou. De resto, refugiaram-se muito bem.

Até porque, no dia seguinte... já estavam fora do País. Manni pagara sua dívida. De grão em grão a galinha enche o bico, o namorado tinha escutado certa vez. Nunca imaginei que de fiado em fiado...
(no centro: Manni; à direita: Lola (repare na forma física de atleta); os outros são secundários à história)
...
(ainda tenho de dizer que a professora não apreciou?)
...

Uma Pipa* no Jardim

Era um dia brando, sem aquele frio de enregelar os dedos do pé, nem com o calor do nordeste, que aferventa nosso sangue. E estava eu voltando da biblioteca, trazendo dois livros novinhos em folha para me divertir. A ladeira íngreme me impelia à frente à medida que eu descia.

O ato de descê-la, até aquele notável dia, tornara-se rotineiro a ponto de eu nada notar, senão meus próprios pensamentos. No entanto, malgrado o tom monocórdico das constantes da vida, deparei-me com uma casa. Era insossa, localizada na intersecção de duas ruas, na calçada à direita de quem sobe. Ah, ela me presenteou com uma memória - e das mais singulares!

Imagine uma simples casa, com poucos cômodos, sem nada que a destaque das demais, como as outras em tamanho, ou quiçá menor. Tinha um aspecto decadente, marcado por fissuras que sulcavam delgadamente suas paredes externas, visíveis ao olho da rua. A incidência dos raios solares naquela ocasião faziam-na brilhar, luzidia e ígnea, deleite visual. Sua muretinha circundante nada escondia de um olhar suficientemente curioso e astuto - como o meu...

Afinal, o ápice de minha andada chegara - sem eu, entretanto, ter-me dado conta disso! Pois sim, a surpresa do dia estava bem reservada àquele momento. Ah, aquele momento em que voltei, como um autômato, meu pescoço em direção ao forte e autoritário odor, que de repente assaltou meu olfato de forma única. Hmm, um cheiro que fez minhas narinas inflarem como um balão. Lembrava-me de algo, não?

Uá, e como não! Rememorava-me do meu tio, decerto. Residente da roça, ele tivera, por um longo tempo de sua - ainda contínua - vida, provavelmente a maior parte dela, o hábito de plantar e colher o "perfume". O destino dessa planta que ele soube caracterizar de forma tão singular era a palhinha. A palhinha que, enrolada e recheada das folhas daquele pé, ardia e reduzia-se rapidamente com cada inalada.

No jardim da exígua casa, pois, abeirava-se das plantas um longevo senhor, cascavilhando a terra com os dedos grossos e já duros pela idade. Estava alheio a mim, que passava de sobrecenho rijo, intrigado. Seria ele um Jung, Freud, ou mesmo um Bertrand Russel, fadado ao anonimato nesta terra brasileira? Todos eles, ilustres em sua ciência, posavam para fotos que posteriormente ilustrariam livros e páginas da web com suas respectivas corvetas* na boca... Infelizmente, ele não estava tão majestoso quanto eles. Era somente um senhor, a segurar sua pipa. Eh! Essa história de que "pipa do vovô não sobe mais"...

*corveta e pipa são sinônimos de cachimbo.

Werther: A Epopéia do Amar

Bem, estou republicando o texto que escrevi para a matéria "Leitura e análise das obras centrais da literatura universal dos últimos 300 anos". A razão porque o estou postando uma segunda vez é porque ele foi eleito como ganhador do Concurso de Literatura (prosa) do CEFET-SP. Sou profundamente grato aos professores da Comissão, que conhecerei somente no dia 14/10, quando serei, com os demais colocados, prestigiado. A felicidade que isto me traz é indescritível, mas vou, mesmo assim, tentar expor um breve porquê. Este ano tem sido um de especiais provações e dificuldades. Li Os Sofrimentos do Jovem Werther (de Goethe, mesmo autor de Fausto), em meio a uma das mais agudas decepções amorosas por que passei em vida. Foi bem uma crise comigo mesmo, pois a pessoa em questão tornou-se uma grande amiga, a quem admiro muito, por ter me mostrado o que é a amizade sincera, uma amizade inteligente, amizade sem preço. Meu desapontamento escolar alcançou seu píncaro, e eu, a base do fosso. É bom, verdade, chegar ao fundo do poço, ou do túnel, que seja. Porque uma vez lá, a subida, o encontrar o fio de Ariadne, é a única escapatória. E nesse processo se aprende coisas que anos não nos poderiam ensinar. Devo minha particular gratidão aos professores Raul e Suely, cujas impagáveis aulas me instruíram de forma inegável. Posso dizer que aprecio hoje a literatura ainda mais intensamente. Graças, sem a mínima sombra de dúvida, aos honráveis esforços dos dois.

...
("Werther: A Epopéia do Amar")

Werther! Ah, mas que amigo, que doce criatura, sempre almejando o nenúfar dos deuses em sua mente que tudo procurava abarcar!

A primeira vez que me foi dada a feliz oportunidade de conhecer essa linda criatura enviada pelos deuses foi em um dia particularmente ensolarado, no qual me encontrava com diversas crianças, entre elas meus lindos irmãos e irmãs, infantes encantadores. Seu olhar sempre foi o de um apaixonado, de um ser superior, inalcançável e majestoso.

Estava eu, então, já compromissada com um homem sóbrio e de pés no chão, meu querido Alberto. Pensava, eu, que a presença de Werther era insubstituível, uma vez que com ele pude usufruir de belíssimos e memoráveis momentos, que estarão sempre gravados em minhas mais tenras memórias.

Ah! A noite em que dancei com ele mais se assemelha a um fabuloso sonho! Um sonho que sei não mais retornará, por sua pesarosa decisão de extirpar a própria vida... Embriagamo-nos ao som da música, e desfrutamos de um átimo que mais poderia ter sido minha vida toda. Nossos corpos pareceram se unir naqueles mágicos instantes quando a alma ameaça despregar-se do corpo, e nossos pés mal relam o chão, tamanha é a alegria, em sua mais pura totalidade e extensão.

Daquele evento para a frente, no entanto, tive a merencórica impressão de que Werther me amava de tal forma qual não poderia corresponder, e isto pesou-me deveras o coração. Sua paixão era avassaladora, transbordante, porém não superficial. Pelo contrário, ele amou-me profundamente, mas eu, tola, não quis sacrificar meu engajamento com Alberto.

Que amor tórrido, que paixão violenta! Quando tomei conhecimento de que ele se mudaria, por ser inagüentável estar ao meu lado sem poder preencher seus desejos e, sobretudo, devido ao vazio que ele vivenciava dentro de si, tive vontade de revelar as turbulências de meus sentimentos para Alberto. Todavia, meu intuito deparou-se com a gelidez glacial do pragmatismo do meu então noivo, e percebi que sua natureza era incompatível com a emoção que eu estava vivendo, por encontrar-me defronte a mais meiga e adorável criatura que, em toda minha vida, pudera encontrar: Werther.

Seu afastamento produziu toda sorte de nostalgia e melancolias dentro de mim, efeitos estes que me deixaram desolada, ansiosamente aguardando seu retorno. E ele, enfim, regressou. Todavia, voltara mais balouçado pela paixão do que dantes, pois não conseguira expurgar de suas lembranças a minha pessoa, que ele considerava divina. Pudera eu mostrar-lhe que se enganava, que eu nunca passei de uma criatura humana, e que nada de especial eu tinha. Mas seu coração apaixonado e sua mente inebriada pelo amor seriam simplesmente incapazes de encarar essa simples, porém crua e fria verdade: a realidade.

Eu nunca imaginara que alguém pudesse urdir tamanho afeto por mim, e cria ser aquela jovial paixão um fenômeno passageiro, efêmero por sua natureza impetuosa. Ledo engano meu, visto que ele já nem sequer podia viver sem minha presença envolvendo-lhe o olhar hiante, a alma suplicante.

O inesquecível dia em que ele apareceu cá em meu lar, contrariando ordens expressas para não me procurar enquanto estivesse só, considerando minha posição de casada, foi provavelmente o momento em que ele se apercebeu de sua miserável situação, e julgou humanamente insuportável continuar vivendo de tal modo. Poesias soberbas ele declamou, e choramos juntos, pelo impedimento de gozar um amor socialmente malvisto, impossível de se concretizar. A tonalidade que sua voz assumiu tornou-se um deleite para os meus ouvidos, e as emoções que irromperam confidenciaram a profundidade de sua paixão. Ah, Werther! Tu eras humano, demasiado humano, meu único e verdadeiro amor!

Beijamo-nos como nunca o fora com meu próprio marido... Seus quentes lábios aqueceram minh'alma, o que me faz arrepender amargamente ter seguido meu terrível papel de fiel esposa... Os tempos não voltam, agora sei, e largar-te foi uma besteira que expatriou qualquer amor que eu poderia ainda nutrir dentro de mim! Ai, se eu pudesse perscrutar o que tu sentias, jamais o teria afastado de meu corpo, que vazava amor por ti. Amei-te, homem, mas meu racionalismo não pôde decifrar os hieróglifos de meu coração a tempo!

Dizer que eu sabia que tu já não agüentarías dói-me demais, é-me torturante afirmá-lo. A ferida, que o amor não expressado abriu em meu âmago, cicatrizar-se-á somente no ocaso, no eclipsar da minha dorida vida. Amo-te postumamente, e quão inumano afirmá-lo é... Quão absurdo ter eu pegado nas armas que lhe tiraram a vida, meras horas depois. Oh, que tragédia ter me tornado cúmplice de sua morte, de seu martírio!

Julgava-me cristã, mas se o fosse, teria trilhado o caminho que meu coração bravamente deslindou. Parece-me, no entanto, que eu não era eu mesma ao acatar a ríspida ordem de meu marido, para apanhar os instrumentos letais de que tu... de que tu te servistes para partir deste horrendo e abominável mundo! Meu ser calculista e gélido premiu-se entre a cruz e a espada, entre o amor que tudo demanda e a (in)feliz vida estável de casada! “As aventuras que me negaram o destino”, quereria eu dizer, em avançada idade. Mas não seria, pois, apenas mais uma mentira para mitigar a aspereza da realidade? Não fui, senão eu mesma, quem se negou os regozijos de viver intensamente ao teu lado, à flor da paixão?

Encontro-me, meu amor, à deriva, e meu navio de esperanças vê-se soçobrado no racionalismo duro e materialista, que compõe este mar negro como a noite em que vogo a esmo, perdida na vida, debatendo-me o mínimo possível para, em vão, manter-me viva.

Termino a confessar: sua morte era pressaga: no imo de meu ser pude pressentir a lamentável escolha que tu, destroçado, estavas cogitando. Infelizmente, tu, teimoso, seguiste a tentação. Malgrada, pois, seja a razão, quando prova-se um óbice intransponível - exatamente quando mais ardemos internamente por realizar o bem. Juro-te, apesar de nada valer jurar a ti, agora que morreste: homem igual não haverá para mim nesta Terra! Minha existência sorumbática prolonga-se sem o viço d'outrora, sem o encanto d'olhar, sem o marulho do pensar. A vermelhidão nas maçãs do rosto há tempos me desertou. Vivo lânguida, pálida, a sofrer pelas escolhas que fiz, e com as conseqüências das quais terei de viver. Cada dia sinala o gradual contubescer de minh'alma, a paulatina desrazão de seguir adiante, que quer que isso signifique para os vivos, o que já não mais sou.

P.S.: Amei-te sem saber amar. Confessei-te meu amor sem sabê-lo confessar. Amancebei-me de ti, impossibilitada de me amancebar. Vivo hoje, sem poder saber O QUE É AMAR. Seu espírito e as flamas de seu amor incondicional aquecerão, ad infinitum , a sacra lareira de meu lar - aquela escondida de vil olhar, e que somente o tempo... somente o tempo irá... um dia... apagar...


Apêndice - Carta encontrada no baú de Charles Springfield, pai de Carlota (na carta, ele chama sua filha pelo nome de Lotte, abreviação de Charlotte, o nome com o qual ele a batizara)

No dia em que nasceu minha filha, recebi em casa a visita de uma velha encarquilhada pela avançada idade, de aparência decrépita, já centegenária, Disse-me ela: "Tua filha tem um destino. O nome dela não pode ser senão Lotte". Saiu, sem mais palavras, sem mesmo despedir-se. Fui à porta, em seguida, pedir-lhe explicações, e - Jesus Cristo seja testemunha - ela desaparecera! Hipnotizado pelas palavras daquela velha, eu pus o nome sugerido em minha filha. Ao tomar fato da trágica morte do viril rapaz que o era Werther, e rememorar, pormenorizadamente, sua íntima conexão com Lotte, caí inconsciente por intermináveis dias de desvarios oníricos, quase ficando ensandecido ao retomar consciência. Pois não é Lotte derivado de Lot, 'destino, fado', em sua acepção antiga na língua inglesa? Werther selou seu amor, sem sabê-lo, não com minha filha, mas com o próprio destino! Isso me foi revelado nos dias e noites de extáticas divagações e digressões, por negras florestas repletas de verdades indizíveis, firmemente arraigadas como o mais varonil sicômoro existente. Sem mais.

Memórias recolhidas por: Howard Seymour