domingo, 13 de março de 2011

Incêndios (Incendies, Denis Villeneuve, 2010)

(clique na imagem para ampliá-la)

Começar um filme ao som de Radiohead não é nada mal, vamos lá. Cenas que provocam, desde o início, indagações, ainda mais com uma trilha sonora empolgante até para quem não é fã de carteirinha da banda. Já faz do limão a limonada. Amarga, por sinal.

Filmes que surpreendem, livros que surpreendem, mulheres que surpreendem... (a lista é infinita quanto a que ou quem nos pode surpreender)... apreciamos um bocado todas essas coisas. E eu não sou uma pedra, tampouco uma ilha, como diz a letra da famosa música de Paul Simon & Garfunkel. Completamente entediante, e então profundamente devastador. O filme faz uma transição inacreditável do fastio ao ápice. Um terremoto (isto eu escrevi antes do recente terremoto no Japão, tristes coincidências...) cinematográfico que nos deixa sem chão, eira e beira.

Genial retratar um drama humano, genial em sua abordagem no início pouco ambiciosa, subindo uma espiral até o clímax. Lembrou-me vagamente do pouco conhecido filme romeno, O Entardecer de um Torturador (Dupa-amiaza unui tortionar, Lucian Pintilie, 2001), do qual lembro-me infelizmente o insuficiente. Mas este romeno é um tanto mais modesto em sua amplitude, embora igualmente bombástico em suas dimensões, visto que tange à lástima de ser humano em condições ultimamente desumanas. Quão fortes somos? A que ponto aguentamos pontos e mais pontos de interrogação, os quais, uma vez resolvidos, trazem as mais indesejáveis respostas do mundo - dum desmundo. A canção que rebenta de nosso peito convulsionado e encanta como um mantra o pesadelo sem fim que nos rodeia e apodera, amurados e sós.

Ciclos e ciclos de violência intermináveis - ou será que se os pode afinal terminar? De que modo subtrair as perdas de modo que a soma resulte ainda positiva? A bem da verdade, é preciso estar presente, ainda que a alma almeje ausentar-se. É necessário ser o que nascemos para ser, mesmo que a esmo o venhamos a saber. Senão, o que seríamos de nós? Detritos em meio ao mar de areia da vida? Não. Ou antes, sim. Alçamo-nos à altura do que nos nega, para só assim nos afirmarmos integralmente, sem chance de retroceder.

E ainda que a canção, nossa mais íntima e única canção, soe absurdamente ridícula e sem sentido aos surdos ouvidos alheios, nem mesmo esse parecer fatalista parará nossa voz, embargada em soluços, mas ainda e sempre nossa, nada mais nada menos. Será possível? Ah, bem mais que possível, bem mais que impossível. Tudo o que é essencialmente nosso - e o que não é? - é tão-somente definido por quem somos e quem queremos ser. Não para as próximas gerações, que muito possivelmente não quererão ou poderão nos compreender, ou que jamais ouvirão nossos nomes, mergulhadas em suas próprias ilusões. Mas para nós mesmos. Em situações limite reportamo-nos a nós mesmos e a ninguém mais. Caso esperemos um ressurgido herói ou Cristo interceder por nossa graça, não veremos herói nem Cristo algum. E nem os viveremos jamais em nossa própria pele, e eis ante nós a mais sólida desgraça.

Ter um livre-arbítrio que ninguém nem nada pode nos tirar, conquanto infringido, pisoteado, amordaçado, destroçado. Olhar-se no espelho d'água sujo e abjeto formado no chão pútrido diante de nossos olhos e dizer com firmeza: tentaram, sem o conseguir, tentam, em vão e tentarão com os mesmos resultados anteriores! Minha canção reverberará mais alto que quaisquer alto-falantes que a tentem reprimir e ador de muitos ou ao menos a muita dor que eu sinto esta canção a irá dirimir. Esta anônima canção sem título e sem nação, e sem notas de rodapé anexas, é autossuficiente em sua infinita dimensão. Escopos apertados a verão como tolice de uma mente insana, mas eis que nela se resguarda justamente o poderoso germe de uma sanidade que a tudo resistiu, impassível de dissolver-se na insânia e maldade reinantes. Impassível de ser anulada a pó, à sombra, a pretérito perfeito, pois que é imperfeito este pretérito e ressoa harmonioso e verídico a quem o quer ouvir.

Mas quem quererá auscultar os terríveis batimentos cardíacos coletivos daqueles tenebrosos tempos? Poucos, certamente. Mas são sempre poucos os corajosos, os que não se descoroçoam, e poucos e fiéis são seus seguidores. E a coragem, subjetiva e impessoal como só ela sói-o ser, inexplicavelmente persiste em bravos corações, sem que o tempo a consiga adulterar.

Um hino - porque há de ser musical - a todos que resistem morrer por dentro. Aos sempre poucos eles e elas, um hino harmônico, eufônico e eterno.

sábado, 12 de março de 2011

Além da Vida (Hereafter, Clint Eastwood, 2010)

(clique na imagem para vê-la no tamanho original)

Eastwood teve a brilhante ideia de reproduzir a catástrofe ocorrida na Indonésia em 2004: o tétrico tsunami, cujas imagens percorreram os ávidos olhos televisivos e internautas do mundo inteiro. Abrir um filme dessa maneira, convenhamos, prende sem esforço a atenção do espectador.

Não bastasse isso, temos o excelente ator Matt Damon em um dos papéis principais, protagonista de filmes da qualidade de Gênio Indomável (Good Will Hunting, dir. Gus Van Sant, 1997) e O Talentoso Mr. Ripley (The Talented Mr. Ripley, dir. Anthony Minghella, 1999), numa das performances mais convincentes de sua carreira. Se na maior parte dos filmes nos quais Damon atuou ele se se mostra infalivelmente sorridente e sedutor, aqui ele pouco sorri e se apresenta consternado com um dilema: usar o seu dom (ou seria maldição?) da clarividência, ou tentar levar o que a sociedade denomina uma vida normal.

À semelhança de filmes como Amores Brutos (Amores Perros, Alejandro González Iñárritu, 2000), Crash - No Limite (Crash, Paul Haggis, 2004) e Babel (Alejandro González Iñárritu, 2006) , neste último filme dirigido por Eastwood as vidas de distintos personagens se cruzam e nos deixam a indagar: a que ponto nossas vidas inevitavelmente se entrelaçam às de outras pessoas, impactadas da mesma maneira que nós? Aproximamo-nos daqueles que nos podem ajudar de maneira absolutamente acidental? Ou haveria algo místico e mágico tramando invisíveis fios de ouro ao nosso redor?

Como o audacioso e às vezes injustiçado filme Babel, Além da Vida propõe uma improvável ("forçada", como já tanto ouvir dizer de Babel?) união entre os protagonistas, uma "globalização", assim por dizer, da relação entre as pessoas, mas desta vez pondo em maior evidência a oposição entre experiências limítrofes à morte e a derradeira opção por seguir vivendo, apesar de tudo, que esses personagens tomam.

O amadurecimento desses heróis e heroínas do dia a dia aqui representados se dá de modo doloroso, envolvendo rupturas de laços familiares, afetivos e uma retomada da autoconfiança no curso de suas vidas, após terem sido vítimas da profunda descrença e incompreensão alheias. Aonde quer que vão deparam-se com barreiras, simplesmente por expressarem uma maneira de enxergar o mundo (ou, antes, o além-mundo) alternativo ao estrito escopo de uma sociedade materialista, no pior sentido que esse adjetivo pode abarcar: vive-se uma vida espiritualmente vã, cerceada de necessidades imediatas, e mesmo após desgraças de proporções enormes nos atingirem, poucos são aqueles que se permitem uma reflexão mais adensada sobre quem são e o que, afinal, querem com a presente vida.

O filme não faz senão mostrar que os vigaristas e os falsos profetas e gurus roubam a cena desse mundo "esotérico" (tomou uma desproporcional e incrédula conotação pejorativa esta palavra), os primeiros sapientes de sua má fé, estes últimos em autoengano quanto aquilo em que creeem. Turvam esses mágicos ilusionistas as águas de um rio já suficientemente turvo devido aos nossos próprios preconceitos, inculcados desde cedo pela abjeta efemeridade de valores do oco mundinho ocidental no qual vivemos, e que o mundo inteiro já contaminou: há questões deixadas para trás quando dessa nossa busca irrefreável pela satisfação ordinariamente mundana, extraída às pressas de nossas vidas mais que corridas. Há indagações que deixamos de fazer com sinceridade - e com igual sinceridade buscar suas talvez pouco agradáveis respostas -, pelo inescrutável medo de "perdermos nossa credibilidade" e sermos humilhantemente ridicularizados e menoscabados até mesmo pelos mais próximos de nós. Não foi isso que quis Jesus dizer, em Marcos 6:4, Novo Testamento: Nenhum profeta é tido em pouco senão em sua pátria e entre seus parentes e em sua casa

Poucos não serão os espectadores que sairão da sala de cinema com a impressão de ser um filme "meia boca". Imagino-me por quê. Meia boca não seria nossas vidas a nos empurrar ao inevitável fim, escravizados pelo trabalho e acabrestados por uma questionável superficialidade de valores diariamente postulada pela grande mídia? Vivemos cada vez mais, mas paradoxalmente cada vez menos, cada vez pior, à medida que poucos são aqueles entre nós que, rodeados por esse inferno de bestialidades e besteiróis que nos sufocam, conseguem divisar um horizonte mais amplo às suas vidas, que não o mecanicamente financeiro, corriqueiro e ulteriormente ba-nal. Verdadeiramente entrever e atribuir um sentido à própria vida, esquivando-se desse contagioso individualismo ultranarcísico que nos assola, eis o desafio proposto aos poucos (ou seriam muitos?) que o queiram por fim enfrentá-lo. Ora, se a vida nesta abençoada terra é irremediavelmente finita, o que esperamos nós?

Transparece no filme esse embate aparentemente tênue, mas em essência visceral, ao que eu agradeço tê-lo visto. Muitos de nós estamos cansados de vermos a velha e gasta fórmula de heróis e vilões holywoodianos, não importa de qual maneira seja readaptada, pois cujo fim já sabemos de cor e salteado. Não me surpreende, portanto, que o mesmo diretor de Menina de Ouro (Million Dollar Baby, 2004) tenha proposto uma reflexão inquietante e que nos define como seres humanos. Agimos como dignos representantes dessa nossa espécie em desconstrução e decadência frente a uma cultura pop que nada nos responde no que mais nos diz respeito e é mais unicamente nosso? Agimos?

Assistam e me contestem.

***

¹tradução do texto original grego pelo P. Dr. Frei Mateus Hoepers, O.F.M. 9ª edição, editora Vozes Limitada (Petrópolis, RJ, 1973).