sábado, 30 de maio de 2009

In Media Res

-Oh, Maria, Jesus, livrem-me deste suplício, dizia Jésus, em meio a lágrimas e à rouquidão de sua voz.

Mas a hecatombe não parava. Simplesmente não parava. A praça da citadela estava cheia de sangue, com um cheiro malsão indescritível. O ressoar do látego castigando a carne humana era apavorante, aterrador.

-Oh, meu Deus, livrai-nos da fúria humana!

Os transeuntes caminhavam em transe, vendo aquela cena dramática, sanguinolenta, os rostos contorcidos dos prisioneiros moribundos causando esgares de asco nos que ainda não haviam sucumbido ao masoquismo ubíquito.

A sociedade fora outrora uma coisa não tão vil, mas não era nem sequer próxima do idealizado. O pior é que não havia mais registro, tudo fora queimado, todos os impressos, todos os livros, pois a nova sociedade não mais buscava o conhecimento. Asssim foi que, destruindo qualquer alegoria a hábitos diferentes, costumes anteriores, culturas diversas, a história foi apagada, negada.

-Enterrem, queimem, e destruam esse monturo intelectual! bradavam os neoinquisidores, ávidos pelo poder que jazia agora em suas mãos.

Como pôde? Como foi tudo tão rápido, num abrir e fechar de olhos? Já não se sabia. O fato é que as pessoas foram incitadas a perpetrar todo o morticínio, deixando um asqueroso rastro de destruição, e já não tinham resquícios de consciência para julgar seus atos.

Agora a neocivilização chafurdava feliz nas ruínas de um pretérito não tão cruel e carniceiro. As pessoas deixaram de ser pessoas, transforamaram-se em suínos que comemoravam a demolição imperturbável do que quer que fosse que servisse a um fim. Nulidade. Olvidaram o passado para erigir um novo presente, baseado na ignorância e no medo latente no coração dos covardes. Covardes no poder.

Todos aqueles que se oporam abertamente morreram, ou estão próximos do fim. Todos os gritos que ecoavam através do burgo não causavam mais o mínimo de espanto ou comoção, ou mesmo rancor dos habitantes da cidade. As crianças cessaram o choro, e seu terror cedera àquele lugar-comum: os estertores da morte dos queimados e enforcados. Não havia lugar para execução. Tudo recendia à morte: os banheiros, as escolas. Vermelho era a cor do novo mundo. Marte, marte, marte! Marchem!

Tão crua era a cena banhada em sangue humano que qulquer ser minimamente são não aguentaria sequer o odor repugnante que exalava dos corpos calcinados, pilhados, no chão de pedra fria, insensível. Todos nus, mulheres e homens igualmente, velhos e infantes também.

-Mortalha para os mortos, branca ou preta, 100 marcos! gritava o ambulante, mostrando calmamente suas mercadorias.

-Como pode, meu Deus? Indignava-se o sotaina, que aspergia água benta nos assassinados, com o vial que mantinha consigo.

-Vê se fecha essa boca, padreco imundo! gritou um guarda esfaimado, maçãs salientes, cuspindo-lhe na batina.

O sórdido pavimento nu da cidade esquentava-se com o cálido Sol do meio-dia. As mulheres, acompanhadas por seus maridos, usavam roupas compridas, relando o chão, pois na neogovernança as mulheres eram objetos, todas meretrizes sem exceção. Nenhuma tinha o direto de se banhar ou lavar. Foi usurpado também o direito de abrirem a boca quando lhes conviesse, agora a sociedade dos homens era para os homens. Eles, e somente eles, eram os mandachuvas, e todo tipo de desgraça podia acontecer num mundo dominado por brutamontes.

Brutalidade em voga. A humanidade se afoga, se afoga, se afoga...

Dentro * Fora

(dentro)

Na galeria
Eu sentia
A alegria
De viver
Se somente
Mais um dia

Se somente
Mais um dia
Eu vivesse
E morrese
Envolto
Em Buda
N'alegria
Este sim
Seria
O dia.

(fora)

Absorto vi no gume
Afiado o vagalume
A luz a pervagar
Risonha, de costume

Mia face iluminada
Minh'alma em mim
Estava - despido eu
Fitava - o mar a
Rorejar

E nisto irrompe
A clava do desejo
Do ardor - amor
Ter-te em mim
Em estertor
Em noite em
Morte.
Em morte
o esplendor.

Dialética

Os grãos de areia a perpassar
Minha mão
Na noite fria, gelo, solidão

Minha voz que, rouca, grunhe
Quer perdão
Minh'alma grita, afasta
A solidão

Não penso em ti
Não penso em nada
Não penso em mim
Nem na estrada

Não quero a alegria fugidia
De pegar nos teus cachos
Dizer-te bom dia
Pisar teu capacho

Não quero tuas mãos calorosas
Me envolvendo em abraço
Não quero prender-me
Não quero este laço

Você que me ama
Me prende
Me entende
Me faz furioso!

Teu beijo gostoso
De olhos fechados
É um golpe ardiloso
Minha sina, meu fado
Teus beijos molhados...

Areia azeviche
Que cobre meus olhos
Minha boca - me faz
Teu escravo
Perdido em ternuras
Amor que dura
Obdura e
Perdura
Acorrenta e
Anula.

Eu te amo?
(suspiro:)
Não importa.
Vem logo.
Fecha a porta...

Prometeu desacorrentado

Vi a luz vindoura do teu rosto
Sentado, debruçado no encosto
Da montanha, da minha sanha de te ver
O Sol fender o Céu, as nuvens, o meu ser

Teu rosto dava gosto
Da Terra o Sal
Da Uva o mosto
Isto posto, eu venci

As guerras, serras
Céu e Mar
A sã vontade de
Te amar
Te olhar

Prostrar-me a beijar teus pés
Tornar-me escravo das galés

Ri no fundo, ruí meu mundo
Roí teu traje imundo
Raí o quente forno
Nauseabundo

Despi-me
Atirei meu corpo ao mar
Eu vivo! Sem te amar.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O Hóspede

"Hércules/Héracles do Fóro Boário", com a maçã das Hespérides, bronze; romano, século II a.C. (Museus Capitolinos, Roma)

Nessa conversa de Diálogos com Leucó, Pavese incute sutilezas raramente encontradas na literatura de massa. Litierses e Hércules encabeçam um diálogo de provocar arrepios. Do início ao fim é um crescendo de vitupérios e violência imparável. Litierses, mau anfitrião, quer o sacrifício do recém-chegado hóspede, ninguém menos que Héracles. Ignora, é óbvio, sua natureza de semideus, sua pujança inigualável. Mostra-se às claras a pretensão e presunção desairosas do campônio ignaro e soberbo, perante a humildade ardilosa do mítico Hércules. A luta ceifará ao molde da foice a jugular do mais fraco. A hospitalidade helênica, tão cara na tradição odisseica*, ao ser desrespeitada, provará de dissabores ao infrator. Aspirando a tudo, reduz-se ao nada...

*vide recepção calorosa de Telêmaco à deusa Atenas, disfarçada de Mentes, filho de Anquíalo, no 1º canto da Odisséia homérica)

"Hércules/Héracles e a Hidra", Antonio Pollaiuolo

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Garibaldi e a lebre

José Garibaldi vivia em luxuoso chatô à beira do rio Sena. Pleno século XVII, passava o tempo livre (e todo tempo era livre a esse aristocrata) a ler romances de cavalaria, já tendo lido Chretien de Troyes e uma porção dos renomados escritores da época.

Ele era instruído na espada, na poesia e na arte heráldica. Seu castelo ricamente mobiliado era um excelente local para se descansar e repousar. Foi assim que certo dia ele acordou esfaimado e desejoso da carne de lebre. Sendo extremamente seletivo no paladar (era essa a maior de suas habilidades), jamais comeria carne de coelho à guisa de carne de lebre. Chamou seu criado, Bertrand, e este acolheu com deferência as exigências aperitivas de seu senhor. Canalha, pensou.

Na caçada, mais malogrado não poderia ter sido. Os ladridos dos cachorros, roucos pelo frio, só serviam a espantar os já acuados habitantes da temperada floresta. Bertrand, que até aquele dia nunca voltara de mãos abanando, matou e pelou o gordo gato da cozinha gordurenta e pendurou-o no gancho destinado às carnes.

Seu amo, passando como de hábito pela cozinha, a fim de aspirar os cheiros saborosos que tanto agradavam o nariz, viu aquela opulenta peça de carne quase derribando o forte gancho do teto. Oh! Mas que lebre gorda, Bertrand! Assim tu vais tornar-te o maior caçador deste cantão, hein?! Mal pensara ele que uma lebre não chegaria a oitenta centímetros de comprimento, em circunstâncias normais.

O logro de Bertrand foi um sucesso no início. Regojizava-se do feito. No entanto, como sabe muito bem o ledor, tendo a mentira corpo longo, as pernas curtas já não lhe são de muita serventia na caminhada. E o jardineiro do castelo, se fosse um gato, já teria morrido de curiosidade.

Passava, pois, Louis pelos aposentos que abeiravam à cozinha, quando sentiu o olor magnífico de carne assada. Ergueu-se na ponta dos pés, deu um semi-pulo gracioso de 360º, e deu aquela inspirada de revirar os olhos. Sua barriga, que descrevia um semicírculo no colete de lã, principiou a roncar sonoramente. Lambuzou os beiços e sorrateiro entrou na cozinha. Tudo ali lhe agradava de inteiro: paredes de pedra ensebadas que o dedo chegava a escorregar; o aroma salobre da conservação primitiva de alimentos aguçava-lhe a voracidade já costumeira.

Qual não foi então o susto do empolgado Louis ao topar com o robusto felino da cozinha metido num espeto considerável, e com uma maçã vermelha como o arrebol da tarde escancarando-lhe a boca! Tonitruante foi a gargalhada que soltou! Não aguentava-se de rir, dobrava-se, ficou ruborizado, mais que a maçã, latejavam as veias da testa, as pernas já não o seguravam. Garibaldi veio averiguar o que era causa de tamanha histeria, e deparou-se com o criado no chão, já sem forças para trabalho de valor. Emitia ainda os últimos suspiros da loonga risada, bafejando um "ai, ai, ai" e o rosto ainda incandescido pela Comédia aristotélica que presenciara.

- Que foi Lou?

Louis fez sobremaneira um esforço para arribar os olhos e soltou a pérola do dia.

- Nada não, mestre. Cuida que não come gato por lebre, hã...

O gato estava realmente delicioso. Bertrand foi inevitavelmente condecorado com a primeira garfada. Salutar, salutar.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Iracema Renasce

Era um belo dia de abril. Iracema andava por entre as árvores, arbustos, flores, animais. Graciosa, pisava com destreza a alcatifa verde que acolhia seus pés. Tão virgem era a floresta que a moeda de cobre jamais conhecera. Espadas forjadas também não.

Lábios de mel sabia o caminho como quem, na urbe, se guia por nomes de ruas e cruzamentos. Era uma verdadeira piguara, senhora do caminho; aliás, quem, além dela, palmilhava a floresta como quem perscruta a palma da própria mão?

Naquele dia a uiraçaba pesava-lhe imensamente na espádua dorida. Ao galgar uma árvore no dia anterior, batera com o ombro num rijo galho, que sequer se movera. Seu osso sim.

Feixos de luz atravessavam aleatoriamente os vãos por entre a verdura das copas dos mais altos ramos. O dia estava tão húmido que se viam as gotículas, a transudação das folhas. Elas suavam, perspiravam, gotejavam. Caminhava sozinha, olhando, sentindo, escutando. O cheiro dos predadores da floresta lhe era familiar, e ela de cor sabia cada rio onde podia se banhar.

A pele de um tom avermelhado, as madeixas negras como as asas da graúna, e o porte esbelto e ágil, talhado em feminilidade, contribuíam para deixar qualquer homem embasbacado.

Seu olfato, porém, escassas vezes se enganara. E agora a aproximação da jaguatirica ela percebia. Só era difícil lutar pela própria vida, por isso o coletivo era uma questão cotidiana para a vivência no selvagem. Todavia, ela estava só.

Um estalido ecoou, e ela deitou-se a correr. Cada folha, cada galho, raiz e ser vivo que pisava não escapava à sua atilada percepção. Ouvia a pequena onça em seu encalço, mas o vigor de seu corpo jovem igualava-se ao da mente: aguentava correr um dia todo, brandia o tacape como qualquer varão, disparava setas sem errar o alvo, subia em árvores como o guaraciaba vence escadas.

Os marcados pés, acostumados às feridas, incessavam, estava a serviço de uma senhora que via a dor como companheira de veredas. Entretanto, o ombro incomodava-a na disparada, e cada impacto mais forte reverberava-lhe pelo corpo todo. Foi assim que, diminuída sua atenção aos pormenores devido à dor, tropeçou num cômoro de folhas e galhos, quiçá o estopim de uma coivara.

O vigoroso corpo nu ralou-se num chão áspero e frio. Escoriações e filetes de sangue. Ela semiabriu os olhos e nao conseguia acreditar no que via: uma grande clareira, um céu pardacento, ocas cinzas de variadas cores, algumas abeirando-se do céu, uma terra nua insensível à pele, pessoas de tez branca como a seiva que corre dos troncos escarificados. Poucos andavam a pé, como ela, e nenhum estava despido. Estava todos esquisitamente vestidos em peles finas, de nenhum animal que ela vira em vida. Estavam todos com pressa, ela notou. Os pés aqui não andam descalços também. Pessoas de tez negra andam em calçadas diferentes das de tez branca. Quando cruzam o caminho de um branco, prostram a cabeça ao peito e sibilam palavras baixas em uma língua que não me diz nada. Quadrúpedes cujos lombos encontram-se na mesma altura que minha espádua, de tez branca, negra, marrom ou pintados, puxam árvores mortas calcadas em estruturas circulares, movimentando-se. Sobre eles sentam-se pessoas, objetos, conversam e são deslocados sem precisar mover um dedo. Máquinas barulhentas seguem trilhas delimitadas. Rápidas. Soltando fumaça ocre.

Onde estou? pensava. Qualquer transeunte jamais se aperceberia que, sob seus pés, encontrava-se uma silo remanescente da ida primeira guerra mundial. Muito menos desconfiaria que funcionava ali no suposto lugar abandonado uma casamata. Ou seja, tendo a aparência de uma casa, aquilo guardava um verdadeiro arsenal. Um bunker. Uma casa falsa. Uma casa falsa que permitia o interno ver o mundo externo com um amplo panorama, quase fílmico, holywoodiano.

Era ali que ela se encontrava, em meio a tílburis, carroças, carros, numa cidade que votara em plebiscito pelo regresso, pois as cicatrizes daquela guerra custavam a fechar. Mas a discriminação não terminara com a volta dolorosa ao passado.

A casamata, infeliz reminiscência de uma beligerância que sacrificara peões para satisfazer o apetite de jogadores invisíveis, tornara-se simplesmente uma estrutura alheia à vida daquela gente. Ninguém entrava ali, e quando e quem entrava, saía não mais, pois os dédalos de corredores subterrâneos, cômodos e esconderijos, eram de endoidecer a mente mais sã.

Inexplicavelmente ali se encontrava um portal do tempo, ativado por alguma disfunção; funcionava transportando um indivíduo de uma civilização ou comunidade de um passado que já fenecera ante ao progresso hodierno da humanidade. Ela topara com um cômoro, e este, assim como outros objetos espalhados pelo passado remoto, era um ativador do portal.

Iracema mirava cada movimento exterior em êxtase. O bruaá, a balbúrdia, o quiproquó, o vai-que-não-vai, vem-que-não-vem, o blábláblá. Que cenário inadmissível, que ar irrespirável, que céu cinzento, que terra árida! Cada um andava como se os outros com quem trombava na rua não existissem. Eram sombras. Cada qual alheio ao seu semelhante, e o coletivo não era senão uma massa disforme, incongruente e desprovida de qualquer valor para as criaturas que o compunham. A sociedade como totem e camisa de força.

Tudo isso retinha os olhos castanhos puxados de Iracema, quando o solo sem mais nem menos cedeu e tudo que a envolvia ruiu. Estava de volta à sonoridade da floresta, ao nhenhenhém das aves, ao ciciar, ao som que sempre lhe acalentara o coração. Adeus, admirável mundo novo, suspirou em sua língua natal, o nheengatu. Adeus, seres extravagantes, almas errantes. Este é o mundo a que pertenço. Este é o mundo no qual a sonoridade incessável e incessante da natureza é, ao mesmo tempo, lindo silêncio. Adeus.

Nós, os piromaníacos

A roda gira, gira, gira
O mundo pira, pira, pira
O mundo é fogo:
Vai e vem e volta
Solta
Vai e vem e solta
Volta

O mundo engloba
Fagocita
Ninguém inventa
Só imita

O homem sente
A gente grita
Vira, vira, vira
Corre, corre
Curupira

O mundo gira
Pira
Vira
E pega fogo!

Ela

No bonde encontrara aquelas pessoas de sempre. Era pouco mais de meia-noite, e eu vadiava pelas ruas de São Paulo, após me embebedar. Era o ano de 1907, e eu tinha então 25 anos. As calçadas estavam frias, como que pesarosas. Cada passo ressoava e o vento, nas minhas orelhas, sibilava.

A valise na minha mão direita apertava-me o passo, e a lua cheia resplandecia no negrume da noite. Minha pequena casa ficava a duas quadras dali, na Avenida Tiradentes. Como era fútil passear nessas horas ermas da noite! Chegando em casa, abri a mala. Dentro estava todo o espírito do meu ofício.

No dia seguinte, voltei à casa onde investigava certos acontecimentos. Era uma casa sombria, mal-arejada, erigida sobre uma calçada de mármore preto. Era apavorante, temerosa. Ficava na curva de uma esquina, cujo nome me foge à mente agora.

Naquele castelo reinava um imperioso silêncio, um silêncio de morte. Um silêncio de terror. Ali empregava em frenesi minhas faculdades, perspirando, tremendo frio nas extremidades. Cada canto, cada almofada, cada cortina era objeto de minuciosa observação. Um marricídio ocorrera nessa sorumbática residência, e eu não podia me esquivar dos fatos.

Procurava-se em ritmo alucinado a filha, desaparecida. Sim, pois os indícios nos faziam crer na possibilidade dela retornar para extrair os últimos pertences de sua malograda mãe. Portanto, deixamos aquelas relíquias intactas, como iscas.

Após o fim da manhã, quando o sol estava a pino, meu chefe mandou-me dar uma volta, trabalhava demais, dizia ele com o cenho carregado. Resolvi levar a sério a admoestação e fui correndo a esmo, até um parque deconhecido. Era o Parque da Luz, saberia posteriormente.

Sentei-me num banco de madeira com encosto, reclinando minha cabeça ao alto a fim de melhor ver os pássaros. Adejavam, brincavam, saracoteavam, sururucavam, pipilavam... era uma delícia sinestésica. Mas meu relaxamento foi cortado de forma abrupta. Vinha uma senhora já bem idosa, com cerca de 75 anos, rosto enrugado, cabelo encanecido à chanel, roupas de frio. Estranho. Era um dia de sol forte. Disse-me bom dia e começou a falar de si, muito melancolicamente.

De súbito ergueu-se e me pediu que a acompanhasse. Estranhou-me pela segunda vez, mas agora por causa de seus braços fortes e seu andar desenvolto. O que ela faz? Pois, conduziu-nos até uma região que eu pensei reconhecer. Sua voz foi tornando-se rouca, sua expressão facial assumiu feições de maldade. De repente,... percebi. Por que não desconfiara? No parque a bela senhora pediu-me que a deixasse no primeiro portão depois da curva, ali residia. Minha cabeça dava voltas e voltas, emaranhada, embaçada, meus sensos embaciando-se, os arredores rodopiando, rodopiando, rodopiando... eu não reconhecera aquele lugar terrível. Como fui parar no porão, não sei. Uma sucessão mecânica de passos, algum encanto às esconsas, uma tática de hipnose, vudu, catimbó. Algo me levara ali, algo me prendera, me guiara, me enganara. Fora um títere, uma marionete, um sujeito passivo. Do outro lado do mundo pessoas morriam de causas naturais, negros, brancos, amarelos, vermelhos, não importa. Outros morriam assassinados. Outros abduzidos, subtraídos, simplesmente sumidos. A lua os engolira, consumindo-os por partes, degustando o filet mignon. De algum modo as pessoas morriam, eu não podia negá-lo. E será que elas esperavam a morte? É capaz que não, aliás, bem provável que nem sequer tinham pensado na possibilidade de morrerem no mesmo dia em que haviam acordado tão bem. Estava tudo perfeito, tudo rotineiro, como de costume. Não houve empecilhos, manobras arriscadas, mas ... elas simplesmente haviam se esquecido de sua condição de mortais.

Isso eu também esquecera. Mas na hora tudo veio à tona, num burbulho voraz, meus olhos se inflamaram. Eu resisti. E somente isso vale. Ter vivido.

domingo, 24 de maio de 2009

Ninguém se mata


"Ninguém se mata. A morte é destino. Só se pode aspirar a ela." *


Se tomada de forma literal, a primeira sentença já não faria sentido. Ora, não há o suicídio? Mas parece ser exatamente a esse fato que se refere Cesario Pavese. Pavese foi encontrado morto, com um único exemplar de Diálogos com Leucó ao seu lado. É algo a se levar em conta, certamente. Era, pois, a obra sua que mais lhe falava ao coração, à mente. A tragédia, os temas saturninos, sobrecarregos de dor, da inexorabilidade do fadário.

Aspira-se à morte, como ao ser intangível. É inexpugnável, é inatingível. Quando houver de vir, virá. Que escolha permeia o processo vivente? Que estranha vontade imprime vitalidade ao homem para seguir vivendo? Será o anseio por conhecer-se - e descobrir-se - dos invólucros da mortalidade, e assim espiar por dentre as fresta do infinito? E o destino, por sua vez, que álgida mão é essa que se assenta imponente sobre o homem?

O homem. O que tem o homem? O que é seu, verdadeiramente seu? Respondo: nem todos os homens têm algo plenamente seu. Aquilo não é dado, mas adquirido. Não com dinheiro, não. O homem que tem aquilo não carece de ter vida longeva, de achar em vida Eva, tem ele a luz em meio às trevas. Tem ele tudo. Tudo, tudo. Pode ser cego, surdo, mudo, mas, tendo aquilo, ele tem tudo. Tem à mão a mezinha que desfaz a solidão.

Por que o silêncio é tão caro ao homem? Por que, de todos os momentos recordados, destacam-se nitidamente as ocasiões em que, sozinho, encontrou o homem o mundo, seu mundo, mergulhou a fundo... e encontrou a si. Esse homem crê em algo imortal - esse algo, bordando a imaterialidade inteligível, é o resguardo da única parte indivisível ao homem. Nada, nada há de deter um homem que se conhece, após todas as vergastadas que o fizeram antes se curvar e suplicar por socorro. Nada há de balouçar o bambu flexível, mas flexível apenas na superfície; a força, inquebrantável, que se reveste de fragilidade, demonstrando-se nos instantes férreos da necessidade.

Será isso o homem, então... o perene dentro do perecível, as cinzas imorredouras... algo perdura, obdura, persiste e procura. Talvez não a cura, mas sim o veneno do êxtase. O alento à percepção. Busca isso o homem então... o irracional e a razão, a maçã de Eva, o pomo de Adão, a continuidade na solidão. É este o badalar do sino, que remonta ao homem sua infância: quando primeiro sonhou, talvez acordado, em devaneio, porém daí a faísca que irrompe e o traz à tona. A faísca faz-se fogo, queima e chamusca, no curso da vida, todos que ama. Ternos sentimentos, tenros acalentos, e de todos, todos os momentos, restam senão o quê? Meros fragmentos.

É por isso que deve desiludir-se o homem? Não. O homem é o baluarte. A casamata derruída que se reconstrói. E nisso há esperança. Pois não, a esperança: incandescente flâmula que dança, bruxuleante, ante olhos impávidos. Olhos humanos. Cegas órbitas que apalpam e delineiam a realidade e o derredor. É tudo falso. Nós o sabemos. Sabemos e cremos haver um céu azul, por detrás dos cirros plúmbeos e tempestuosos. Provamos do amargo para distinguir o doce, chafurdamos no mal para redescobrir quem éramos. Quem éramos... poxa! Éramos alados, mas de que vale afogar-nos nessa mágoa? Pode-se fazer algo a respeito? A despeito do etéreo cintilar que perdemos, por optar pelo baú de ouro da fisicalidade sensual?

Uma decisão tomada em grupo... nem sequer me lembro de ter dela participado. Aliás, nem sequer me lembro do que restou ontem na panela do jantar. Ou talvez me lembre, e me negue como subsídio, reconforto - é mais suave, bem mais suave, fingir não me lembrar.

Álgido e suave, como o ermo e frio dezembro. Que já se foi e não será já mais.

*Sárpedon, A Quimera (Cesário Pavese, in: Diálogos com Leucó)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

clac clac

Chico ao vir trouxe a calhandra
Cotovia vinha vindo
Enveredando
Uma nova poesia
Poeta do ardor
Califásico, caliente
Orador

O tapa que desperta
Do estupor
Enraizado
Arraigado
O tapa que taf !

Molha o rosto
Mete gosto
De leite
E ambrosia

Canta!
Brilha cotovia.

***

Xac
Chac
Chacal
Traz o traço
Poetaço
Chacoalha
O embaraço

Sururucando
A toda gente
Lá na frente
E qual ressaibo
Da existência
Onipresente
Sorridente
Musical...

Gesticula, breve
Pula
Todo mundo
Congratula
"O Chacal
É animal!"

terça-feira, 19 de maio de 2009

Suzumê


(Suzumê*)

Soloviêi** assobiei,
Você não vei
Vorobiêi***, assoviei
Você não vei

Chamei, chamei
Silvei, eu sei
Você não vei...

Sem vossos cantos multilíngues
Sem sinestesias sonoras
Vão-se as aves canoras
Vão-se em naves embora
Assim assim... aladas

Soloviêi, vorobiêi
Assoviei, assobiei
Ei, ei, ei...!
Heu!

O som feneceu.

*suzumê: em japonês, pardal.
**soloviêi: em russo, rouxinol.
***vorobiêi: em russo, pardal.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Patranha Bélica


Soldado
Em chumbo
Resoldado
Em pé
Horas a fio
No frio
No fogo
Na chuva
Na marra
Soldado

Cabo
De aço
Marcado
Esticado
Acabado
Dá cabo
De tudo
Dá Cabo
De si

Brigadeiro
Senssabor
Sem amor
Preto, branco
Toda cor
Jaz na
Cama de
Campanha
Ali deixado
Arte e manha
Mão a mão
Moldado a mão

Cabo soldado
Cor do
Brigadeiro
Maleável
Tira, põe
Aprende a
Tirar
a
Roupa
Queimada
Furada
Jogada

À beira da
Estrada
A dragona
Atracada
Mordendo
Atacando
O cabo
Soldado
Muitas
Mãos
Manipulado

Transformado:
Em brigadeiro.

Cão rafeiro
Fardado
Farejando
O cabo
Ressoldado

Arrebentado
Partido
Gelado

Deixado...
No front.

[Não é belo o horizonte.]

domingo, 17 de maio de 2009

Posteridade Inadiável

Quero ser como Rúnotchkin. Rúnotchkin, o pequeno e torto Rúnotchkin, não temia ninguém. Quero ser Marighella, que não temeu sequer ficar banguela, torturado, no escuro e podre duma cela. Quero ser tal qual ela, deificada, teogônica, minha estrela, qual avisto da janela. Qual rufla ao vento, vem ser flanela, quente, leve, macia, meus sonhos de ambrosia. Os signos são frios, mas não tu - tu és fragrância, rosa, almíscar, bálsamo dos afogados. Ó, luz libertadora! Oferece tua luzerna sempiterna ao cor que em mim inverna. Vou a ti, meu ideal. Cá estou. Almejo descobrir o que eu sou. Este é meu canto e meu voo - ao infinito. Lá meu suspiro se eleva em grito, um grito de quem vive - indelével sinestesia e brinquedo dos sentidos, expandidos, sem dominador ou dominado. O Real, o inteligível, epistêmico alado.

Que sonho é este? O único que me mantém acordado.

sábado, 16 de maio de 2009

Safrana, ou o Direito à Palavra (Sidney Sokhona, 1978)

Safrana, ou le Droi à la Parole concentra-se na vida estável de quatro imigrantes africanos negros, politicamente ativos na França. Sendo operários, decidem-se então tornar-se camponeses, numa espécie de estágio em agricultura. O fato deles todos terem lavrado o solo em sua terra natal - antes de imigrarem à França - explica essa iniciativa, cuja intenção é lembrar os imigrantes africanos dos problemas que grassam no continente que deixaram para trás: a seca, as pestes, o solo exaurido.

Dessarte, esses idealizadores moldam uma forma de serem mais uma vez solícitos com a terra que os gerou. Talvez a grande questão que se faz ao assistir ao filme, no entanto, seja a do vínculo com a realidade: conseguiram eles, os imigrantes reais, fazer algo por suas pátrias? A verdade fica que a miserabilidade da África não apresenta sinais de mudança, esta África subsaariana, esta África pobre que é a primeira a suscitar imagens à minha cabeça ocidental.

Uma cena provoca sobressaltos, devido ao alto teor de discriminação étnica: Mamadou trabalhava como gari nas ruas parisienses, antes de partir para o interior com seus companheiros. Estava ele, pois, em seu serviço diário, com seus colegas de trabalho, retirando o lixo das latas metálicas, quando, à sua esquerda, viu sair dum carro conduzido por chofer uma típica madame - branca of course. Seu cãozito, um poodle alvacento como a dona, meteu-se numa lata derribada. No que Mamadou de pronto se prostrou para pegar a nívea e mimada alimária de colo, soa imponente a voz feminina, no auge dum vitupério racista: "Não toque nele! Ele já está sujo o suficiente."

P.(ost) S.(criptum): para extrair da lata o bicho, a (tão) agradável e endinheirada senhorita não iria se dar ao luxo (ou melhor, à pobreza...) de se curvar ou (infâmia!) abaixar-se, não é? Ao que logo chamou no mesmo timbre irritante o motorista, na visão da afortunada moça de sociedade um reles faz-tudo, factotum - possivelmente um bibelô. Imagina as mãos do crioulo-lixeiro tocando a cândida lanugem de seu incólume poodle! Oh [mão na boca em sinal de indecoro à vista] Im - pen - sá - vel!

É. Xenofobia é crime, mas fala baixo por favor. E venho pensando que as pessoas xenófobas não são meramente xenófobas (ou seja, tais pessoas não se restringem à mesquinha aversão a estrangeiros de qualquer naipe), mas são verdadeiras alter(ó)-fobas, isto é, elas tem medo do outro. De qualquer um que não se assemelhe a elas... em termos humanos, é aterrorizante ter pessoas assim pegando o mesmo ônibus, o mesmo vagão de metrô, sentando-se nas mesmas salas da faculdade que eu, quiçá se infiltrando no meu círculo de amigos, quiçá já lá dentro... quiçá seja eu?

E então?

Que fazer?

Hã?

Heu, eu! Traga os sinos da mudança. Já são horas de retinir!

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Bako, A Outra Margem (Jacques Champreux, 1978)


'Bako', na língua bambara, significa "a outra margem". Na época do filme, ela era utilizada pelos emigrantes de Mali para designar a França, quando se encontrassem em países fronteiriços, especialmente a Espanha, sem levantar suspeitas.

O diretor Jacques Champreux não idealiza em ponto algum ao seguir passo a passo o tortuoso e infindável trajeto, que leva esses migrantes sem melhores alternativas à Europa.

Os "coiotes" encarregados de levá-los não raro são farsantes, mostrando que as somas vultosas envolvidas na imigração ilegal falam mais alto que a vida de um africano pobre, ou dois, ou quantos forem necessários.

A pior desilusão para muitos desses imigrantes ilegais talvez seja, ou fosse, o momento em que descobrem que, mesmo chegando à sua destinação, foram logrados. Chegando lá, não há ninguém de braços abertos, e os próprios compatriotas, na etnia e na cor, já estão insensibilizados (por tudo o que sofreram), na hora de ajudar os menos afortunados.

Ser olhado por todos com um forte viés de desconfiança é merecido pelos matreiros, não pelos que buscam tão-somente escapar à sina da fome, ao fado da morte. Querer o bem não basta, é infértil e tende à estagnação. O imperativo categórico é fazer o bem, que só assim propaga-se o bem, e a ação de fazê-lo. Sim, é óbvio que pode ser identificada uma isotopia religiosa nesse "fazer bem o bem".

Todavia, sob os ávidos olhos da águia capitalista, apaga-se o espírito coletivo e coletivizador do grupo, quando este vivia em suas terras africanas, quando a necessidade de operar em grupo era cristalina a todos, indistintamente, que um homem só nada faz.

O que mais choca é o aviltamento a que se sujeitam esses desesperados. Gastando todo o dinheiro em espécime que possuem, para aportar num país europeu bastante diverso deste nosso Brasil multicores, no qual os racistas são obrigados a falar baixo. Na França de 1978, a xenofobia asquerosa imperava nas ruas, impregnando inclusive o vocábulo usado para designar os imigrantes africanos - uma mulher branca usa o que em português corresponderia à arcaica e egrégia palavra "crioulo" (o que não dizer da expressão estulta "de cor" ?!?) - ou "nigger", "colored", em inglês. Acendeu-me a ira.

Isto porque fica impossível relevar a sordidez e a indiferença, a sub-humanidade, imiscuídas na venenosa travessia. Quantos não são os que adoecem e perecem no meio do caminho, muitas vezes sem a própria cédula de identidade, retida pelo contrabandista humano ou por quem forneceu crédito adicional, e tem no documento a cruel garantia de que quando o imigrante chegar ao outro país, a quantia lhe será paga.

É um filme desolador, por expor o vil, o cruel, o execrável. Por colocar a crueza humana* sem o intermédio de para-choques, de modo que o espectador sinta o baque com toda a força imputada aos fatos reais. E por ser desolador, irradia faúlhas de esperança: há um modo humano de se tratar o outro. Há sim, e não se deve olvidá-lo, jamás! "Não faça aquilo que você não gostaria que fosse feito a si" - não é esse o prodigalizado ensinamento, primordial à uma pessoa que ousa atribuir a si o caráter humano?

Se ao menos uma pessoa pusesse tal máxima em vigor, em todas as circunstâncias viventes, não tardaríamos de alcunhá-la sob algum epíteto hagiolátra, e não seria soberba fazê-lo. Tal pessoa estaria semeando nada menos que a paz, a viva paz, a paz expressa e meditada consoante o outro. Não tenho a falsa pretensão, no entanto, de fazer-me santo, nem, portanto, de aspirar a semelhante encargo. É preciso ter muita fé, pura fé, e maldade ou malícia alguma no coração. Isto é, para ser santo. Pra ser santo, é preciso parar inclusive o que Gandhi denominou violência interna, que é a que praticamos contra os outros por pensar mal, por querer castigar, sem nem sequer ser preciso expressar, isto é, vocalizar tais pensamentos. Cometemos violência no ato de pensá-la. É preciso ser casto, puro, temente a Deus - não o Deus monoteísta, mas o Ser Supremo, fundação ontológica do universo, o princípio ativo, pontapé inicial, ao que tudo volta. É preciso, sobretudo, verdadeiro labor consigo próprio, um trabalho à altura de Héracles, mas sem saborear a auto-imagem...

Eis os humanos conscientes que somos nós, hã? Controlamos magnificamente bem nossos pensamentos, não é mesmo?

Ah, ser mortal
Bem que rutila
Gema do mal

Ser humano
Ó, ser humano
Por que jubila -
És insano
Ou é tua sina -

No odre arcano,
Chã pocilga,
Neste podre lodaçal?


Bela película - fez-me ígneo como um dia de canícula. O verdadeiramente belo é o belamente verdadeiro. Se para retirar a máscara o cordão há de rebentar, pois que rebente e fira! A dor dirá, como ninguém.

*termo questionável, 'crueza humana'. Psicopatas não são humanos, não no que tange a qualquer característica que distingue o homem do animal, envolvendo não o pensamento, mas qualquer função emotiva, consciente, de empatia.

Fary, A Jumenta (Mansour Sora Wade, 1989)


Em Fary L'anesse, o diretor senegalense Mansour Sora Wade presenteia-nos com um causo curioso. Serigne Ibra, um camponês rico, solteiro, e dotado dum gênio um tanto forte, decide por casar-se, mas com uma condição: sua esposa tem de ser perfeita - ele não aceita um defeito físico qualquer - é sua tia quem inspeciona as candidatas.

Ricardo Reis resume maravilhosamente bem a parábola numa de suas odes:

QUER POUCO: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre: quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

Como já diziam meus avós, "Quem tudo quer, nada tem". A surpresa que o filme guarda é a magia e o encanto. É a viva representação duma fábula digna de Esopo.

Crônica Camponesa (Safi Faye, 1975)

Em Lettre Paysanne, Safi Faye mostra um árido vilarejo no Senegal, do qual Ngor, jovem que se deseja casar com a bela Coumba, vê-se forçado a sair, partindo à cidade. Chegando lá, passa do emprego ao desemprego numa questão praticamente diária.

Se fosse por incompetência, estaria esgotado o assunto, Mas o fato é que Ngor se depara com hábeis e falaciosos empregadores, que após se utilizarem dos frutos da mão-de-obra do camponês, sabem com ardil alegar falhas ou má-fé no serviço, contra o que Ngor há de aprender a lidar.

Após breve estadia, o jovem retorna à aldeia e é recebido com pompa - é chegada a hora da colheita!

Filme com tom otimista, contrastando os 'passos mágicos' do Bobo ("feiticeiro") da aldeola, com o incessante bruaá da cidade, sem apelar à ridicularização ou estipulação do que seria o retrógrado e o moderno.

Tal qual Fad'Jal(Safi Faye, 1979), Crônica Camponesa é um retrato descompromissado da vida africana na seara, da seara, justapondo as alegrias e agruras dum povo intrinsicamente ligado à terra, no cultivo e usufruto de seus bens.

Refulgem de beleza as tomadas que registram o cultivo e semeadura coletivos, duras fainas suavizadas ao som de canções entoadas pelo grupo, às vezes alternando o coro dos mais velhos, seguido dos mais novos, resultando numa música revigorante, estimulante, de todo modo gratificante.

É belo. É a expressão cultural do lavrar cotidiano.

Ah, sim! O amor.

Meu amigo ama a ama
Minha amiga ama o amo
Meus amigos...
Estranha amizade esta minha...!
Eu que não amo nem
Ama nem amo - na
Cama - Ó, dama!
Vou doidivanas...

A garota que eu amo
Não ama a mim.
Maria ama Miguelim,
Jamais amei assim.

Mas Miguelim ama a mim!
Virge Maria, nem por dindim!
Vem cá, Maria, não a virge,
Ó aqui o Miguelim!

Que casal bonito...!

(Pobre de mim...)

Mia gênese

"Aliás, o objeto nem precisa existir,
para que falemos dele, pois a língua
pode criar universos de coisas
inexistentes."
(Fiorin)

Singram velas mares
Vão a todos os lugares
Ao uno que os gerou
Ao Rei que os rogou

Vai ao vento a vela
Não se queda jamais só
Tem a vela companhia
Como ao moinho
Tem a mó

Mia boca segue aberta
Mas nada dela sai
Palavras e ofertas
Eu segredo a meu Pai.

Tudo Ouve
Tudo Escuta
A mim aprouve
Tal permuta

Quis nadar na plaga nua
Donde Eva e Adão
Foram postos para a rua
Tal o crime, sem perdão

E o ar flagrou a queda
Impressa em seus rostos
"Malsã maçã enreda!"

Daí - todos desgostos...

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Fad'jal (Safi Faye, 1979)

Tarsila do Amaral - O Vendedor de Frutas (1925)

"Na África, um velho que morre é
uma biblioteca que se queima."
(
Amadou Hampâté Bâ)

"Quem trabalha é feliz. Quem
não trabalha, riremos dele.
É assim em Fadial."
(ancião da comunidade)


Neste filme da diretora senegalense Safi Faye, busca-se retratar - e dessarte resgatar - os costumes, as tradições, a oralidade duma aldeia, a grande família de Ibou Ngong. Retrata-se, i.é, resgata-se a obliteração de uma sociedade anterior, calcada na manutenção hereditária da própria história, por meio da faculdade rapsódica de se propagar a tradição, contando-a aos novos - de forma a não olvidar, e assim valorizar, o registro de todas as gerações que os precederam. "É assim em Fadial."

Mostra-se, numa instância facilmente memorável, uma grávida dando à luz seu filho, mas via um processo um tanto singular - ao menos a quem se habituou às macas de hospital e ao parto cesariano. Pois essa mulher, acompanhada doutras duas, num cômodo de paredes de barro e chão terroso, vai emitindo uma cadência quase equidistante de "ais", baixos, e só constatamos sua gravidez após alguns minutos dos tais gemidos, soltos como que estivesse saudando outrem ("oi", "oi", "oi",) repetidas vezes. E, de súbito, pondo-se de cócoras, irrompe a ênea e diminuta figura humana, chorando - estupefaciente, pois mal a mãe havia prostrado-se agachada por 10 segundos, sequer! Chega-se rápido à ilação que aqui se trata dum povo feito à dura lida e ao labor, ao Sol, ao cansaço, à dor. Relevo que ela não grita em momento algum - são apenas leves, mesmo discretos, curtos, "ais". Fazendo um corte ao dedo, eu seria capaz de emitir um "ai" muito mais alto.

Passado esse ponto, deparamo-nos então com toda sorte de trabalhos manuais, levados a cabo em uníssono. Ora são as mulheres separando o sorgo da parte não comestível, inclinando, sobre a cabeça, cumbucas cheias do grão, e inclinando-as, de tal forma a dispor da ação natural do vento, que dispersa a matéria menos densa para longe, caindo aos pés somente o próprio sorgo. Belas cenas em que a natureza parece estar em conformidade com a inteligência humana, ou esta àquela (para não cair em antropocentrismo velado), tamanha a eficiência da labuta. Ora são os homens pescando com redes ou arpão, ou trabalhando a madeira. Vemos uma espécie de "arauto", que vai dum lugar a outro na aldeia fazendo percutir seu tamborilete atado ao ombro. Anuncia "as novas" e segue imprimindo ritmo à voz, soando o instrumento com uma pequena baqueta e com os dedos longos e livres da outra mão.

São eles os retratados e os intérpretes de sua história, fazendo frente às lentes nada mais nada menos que prosseguir em suas tarefas diárias. O respeito, beirando a veneração, destinado aos anciãos da aldeia, é um aspecto especialmente cativante. O mais velho contador de histórias, dotado, apesar dos anos diuturnos, dum belo sorriso e saúde inquestionável, tem ao derredor de si mais d'uma dúzia de infantes (~ 4 aos 15 anos), ouvindo ávidos. Isso se dá ao pé dum gigantesco e sombreado baobá, de raízes tabulares protuberantes, de impressionar. Fazem-lhe perguntas, às quais ele responde com detalhes. À medida que alcança as "vírgulas" da história, o elegante ancião anui e meneia com a cabeça, revelando que, nos bastidores de sua memória facunda e prodigiosa, há uma série de elos mnemônicos, conectando um fato ao outro, permitindo uma uniformidade narrativa.

Mas são tempos de reviravolta - 1977, e o Estado decreta uma medida conforme a qual as terras passam, da pertença as esses povos, à propriedade do País, que nutre interesse em loteá-las, fomentar o turismo, modernizar-se como o restante do mundo, isto é, "superando" os arcanos e totêmicos substratos linguístico e cultural, os "Pangol" (ancestrais deificados, cultuados em maneira bastante análoga à xintoísta), os "Bobos" (xamãs/pajés/feiticeiros) - ou seja, esmagando sem remorso os elementos constituintes duma cultura local, estabelecida no decorrer de séculos. Imagine agora o "progresso" na figura d'um imenso buldôzer, talvez o mesmo buldôzer israelense que passou por cima da ativista norte-americana Rachel Corrie. Temerário, não?

O filme, portanto, ancora-se numa perspectiva antropológica a-dogmática, justo porque não revela a pretensão de fincar um juízo de "certo" e "errado". É no decurso das cenas que o embate entre modo capitalista e modo silvícola de vida aflora à superfície, na discrepância de opinião entre a geração octagenária e a dos mancebos frustrados por se acharem entre a cruz e a espada - a cruz da religião monoteísta, trazida nos gérmens civilizatórios, e a espada que outorga estatutos sobre a propriedade de terras, em nada favoráveis a tradições a duro custo mantidas, mesmo assim em vias de extinção.

O ponto alto da película é que esta não soçobra numa mensagem de desesperança e desespero, mesmo pondo, inevitavelmente, a indubitável realidade de que mudanças estão por obrar nos meios primitivos de existência e subsistência remanescentes no planeta. É um processo irrefreável, que, caso não acabe por sobrepujar a cultura antecessora em sua totalidade, há de suplantá-la em uma vária gama de aspectos.

Infiro que a cena final traz ao lume a mensagem que Safi Faye intencionou passar. O ancião aedo, isto é, o exímio relator, caminha a sós até um magnânimo baobá, perante o qual roga, sobreerguendo cabeça e braços: "Pangoool!" (Ó, ancestrais!). Deixara de mencionar que o brônzeo e mítico rapsodo é a réplica mais perfeita de Van Gogh, com seu chapéu e cavanhaque simetricamente análogos aos do pintor holandês. Imagino Van Gogh negro - não seria uma pinta diferente.

(ei-lo) (tire as suíças, e está pronto o retrato!)

É inefável a sensação que dá aperceber-me da coexistência tão conflitiva do velho e do novo; nenhum sendo maior ou melhor, visto ser inatingível a imparcialidade. É simplesmente impossível (um indivíduo) trazer (em si) a rúbrica de dois modos amplamente distintos de vida, de forma a poder julgá-los com equidade, sendo ambos mutuamente anacrônicos.

Sou imensamente grato às cine-sessões gratuitas do CCSP, que tanto ensinam.

domingo, 10 de maio de 2009

Irmão, eu digo não.

Vou à missa,
Vais também?
Vou à missa
Rezo amém.

Vou à missa
Para a messe
Reconquista
E benesse

Vou à missa
Não questiono
Não indago
Tenho dono

Vou à missa
Sacra, santa
Sacripanta
Vou à missa

E me esqueço
De repente
O meu terço
Penitente

E me lembro... ah, me lembro!
De tudo o que esqueci...

Dos anos contestadores
Dos livres amores
Da ira à massificação!

Do fugir do rebanho...
Domesticação...
Dos meus tempos d'antanho
Quando ousei dizer não!

E preguei... ah, preguei!
A minha salvação.

Irmão, eu digo não.

Recuso a oferta
Desejo o melhor
Se penso estar certa?
Diga-m'o senhor...

Não, não é subversão.

São mias asas, qu'eu recuso
Podar
São mias asas, qu(i)'almejam
Voar
São as asas, minhas asas
Meu lar.

[Poder voar ao (l)ar]
...
[Passar bem a ti também]

sábado, 9 de maio de 2009

Den... den... den

Caro aedo, canta-me logo
Cedo as proezas, segredo
Rogo tais belezas
A me tirar o medo

Inexpugnável sabedoria
Valha-me dia a dia
Pregnósticos da finidade
Infinita da mia vida

Outras vezes vim à Terra
Ombros nus ou pés descalços
Muitas vezes causei guerras
Assolei-me de percalços

Trago a tocha, prego a paz
Onde jaz a alma humana
Donde emana mia morada
Sã vontade inabalada

Se nem grilheta me anulou
Não serão tiranos mia derrota
Vivo verei vitória em voga
Dos xamãs, vates e Bobos

Badalando a chegada
De tempos finais
Noé, sua arca acabada
Eis a marca,
Pronto o cais.

***

End end end - the death knell ringing the apocalyptic end of the world as we know it - shower of meteors descending on Earth, utter disaster - 94% of the population under the hubris of gone civilisation, passed and gone. Bygone beings who wallowed in physicality. Bygone vanity, tyranny, human life. Bring it anew, time to review - past lives buried in sorrow, the hopeless fear of tomorrow.

The children we all did adore, so curt the happiness they bore. No thing was in vain, if anything we attain'd - the soul gain'd, that's all.

With or without
Rhyme or lore
World's end...
Who you are... It does matter.

Away with endless chatter
That being the last tatter
Before the coming disaster

You chose to neglect
Others to deflect
It bore no effect

Hiding for what...
You are what you've got
What you've sought -

Oh, it's a lot

[believe it,
or not]

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Os Combatentes Africanos da Grande Guerra (1983)


Do diretor Laurent Dussaux, este filme P&B é impressionante, pelos fatos: que 200 000 jovens africanos haviam sido recrutados, dentre as então colônias francesas no continente da fome, para lutar pela França na 1ª Guerra, oras, disto eu não sabia. Das duas centenas de milhares, 30 mil foram mortos e 35 mil voltaram feridos, e nada disso eu sequer vi em livro algum de história, dos adotados no 2º grau, ou mesmo mencionado por qualquer professor dessa matéria, quando expôs sobre a Grande Guerra.

No filme mostra-se, em filmagem da época e com o respaldo das testemunhas sobreviventes, os batalhões de negros marchando na Paris de então; mostra-se também como passavam seu tempo no navio que fez a travessia à França, sua música, suas danças rítmicas, breves ritos em sua terra-mãe, e mesmo os pequerruchos infantes e as mulheres nuas em seu lar silvícola.

A abertura da película já é por si surpreendente. Um baobá é capturado pelas lentes, que então se aproximam gradualmente, até nos depararmos, boquiabertos, com as dimensões colossais da peculiar árvore - um homem encontra-se acocorado, a rir e sentir graça, num considerável buraco arredondado, situado no meio do tronco da hercúlea planta, mas que não representa sequer 1/10 do seu porte de fato fenomenal. É impossível não sorrir de incredulidade - parece brincadeira!

Mas o objeto do filme é retratar os fortes homens negros descalços no processo de arregimentação e, posteriormente, sendo levados aos fronts, em meio a cenas de divertimentos no intervalo das marchas e dos árduos trabalhos (treinamentos, cavar trincheiras etc).

Um certo depoente nos conta que, na chegada à França, crianças brancas corriam em sua direção e faziam questão de se esfregar na pele dos soldados africanos, para averiguar se, de fato, sua pele escureceria no contato. Ficavam desiludidas quando nada acontecia... e, quando os soldados principiavam diálogo com idosos franceses, estes denotavam esgares de espanto com o francês correto falado pelos "estrangeiros", ao que logo seguia a pergunta: "Há quanto tempo vocês estão na França?" Ao que redarguiam: "Há dois meses." "Más dominam a língua com fluência de falantes maternos?"

Isto chocou profundamente, na época, um dos sobreviventes, e deveria, pois, causar semelhante efeito em nós. Por quê? Oras, uma vez que escancara o fato de que muitos parisienses (a maioria?), citadinos, "civilizados", nada sabiam do que as tropas coloniais francesas haviam feito (e estavam a fazer) aos senegalenses, martiniquenses e guadalupenses. Não haviam eles infundido-se nos povoados africanos, impondo seu falar, num processo maior parte das vezes violento e irascível? Pois, como pessoas pertencentes a uma civilização supostamente bem informada e culta desconheciam a (co)ação colonial sucedida nas nações africanas, concomitante à chegada dos recrutas?

"É um absurdo eles não saberem! Como podem não saber?!" - esta, sim, seria a inferência natural, e o que primeiro veio à cabeça do soldado africano que depõe no filme.

Filme importantíssimo para reduzir a distância à uma realidade ostensivamente ignorada. Esses heróis negros deram seu sangue e seu valor numa guerra que tampouco era sua, a maioria sem opção, outros poucos voluntários, e, mesmo forçados, não há relato de desertores. Algo de que muitos soldados brancos, franceses natos, não tiveram maior pejo em realizar. As tropas negras constituíam a primeira linha, a verdadeira bucha de canhão.

Irei citar uma última cifra numérica, esta digníssima de nota: de seus vilarejos ao embarcadouro, esses bravos homens foram levados a percorrer assustadores 2.000km a pé descalço, por entre matas e terrenos abertos, em condições de vera insalubres, uma ignomínia humana. Tal marcha repudiável resultou, obviamente, em exaustão, enfraquecimento, doença e morte no decurso. Ainda, uma vez no (primeiro?) navio, o capitão da nau queria metê-los no calabouço, em condições análogas às dos escravizados, três séculos precedentes. O representante dos recrutados, ali presente, soltou verdadeiros impropérios para salvá-los dessa sina aterradora, comprando uma briga com o capitão, mas aos menos valendo a liberdade daqueles homens à bordo do vaso cargueiro.

Até a força dos valentes tem limite: os ainda doentes foram sendo categoricamente atirados ao mar ao longo da jornada, lado a lado aos finados. No leito das águas profundas repousam, quiçá sem ter alcançado paz, já que nossa civilização moderna e cultural faz vista grossa ao deparar-se com crimes passados, e que se passam diariamente na Palestina, no Afeganistão, no Iraque, e em todas as nações tão democraticamente invadidas (ops, a Globo diz 'ocupadas'), humilhadas ('ocupadas' novamente, caramba, ó eu insistindo no erro! tsc), destituídas ('ocupadas'...).

Chego à implacável conclusão que 'ocupação' virou uma palavra-valise, no mínimo atenuante, e, se não tratássemos os fatos com tantos eufemismos mitigadores, uma palavra que encobre e enterra. Um vocábulo que, nas condições presentes, me aterra. Tornou-se mais uma ferramenta orwelliana da manipulação da linguagem. Oh, novilíngua! Ó, admirável mundo novo! Se apenas não fosse todo um léxico belicoso submetido à diária prestidigitação tirânica e titânica!

O que é hoje democracia, terrorismo, 11/9, homens-bomba, Bin Laden, armas de destruição em massa (ah, essas a mídia revelou ser uma patranha! ah, essa eu sei hahaha.... pena que não há nada de risível. À medida que +1,6 milhão de vidas já foram ceifadas no berço da civilização, erma Mesopotâmia, atual Iraque...), antissemitismo...

Semita, no dicionário Houaiss (2004), é:

"relativo ao grupo étnico e linguístico ao qual se atribui Sem (um dos filhos de Noé, Gênesis 5, 31) como ancestral, e que compreende os hebreus, os assírios, os aramaicos, os fenícios e os árabes, ou membro desse grupo."

Ah! Puxa, então coitado do antissemita, que entra em uma contradição escabrosa, além de acabar odiando uma gama bem ampla de povos, passados e presentes.

Aliás, o presidente do Irã nunca disse "Israel deve ser varrido do mapa."[<--veja por si próprio]. Primeiro que a tradução literal do persa atesta uma sentença com conotação completamente diversa: "O regime que [hoje] ocupa Jerusalém deve(rá) sumir das páginas do tempo." A alternância do verbo se dá porque, segundo alguns tradutores persas (confira o link já posto acima), houve uma alusão voltada ao futuro. Ou seja, não existe ameaça alguma - há, sim, um vaticínio, uma predição, se assim o quiser. Em segundo lugar, Mahmoud Ahmadinejad citou o aiatolá xiita iraniano Ruhollah Khomeini (1900-1989), que assumiu o poder com a queda do Xá do Irã, Mohammad Reza Pahlevi. Não, não foi uma frase de cunho próprio (como a malévola corrente midiática tão bem o faz parecer), de uma mente (que o Ocidente pretende fazer) desvairada. E, em terceiro e último lugar, Khomeini referia-se à queda do totalitário regime do Xá, e não a uma idéia doidivanas e inescrupulosa de que o Irã deveria "sumir do mapa". A menção era a um regime totalitário, iníquo, abusivo, de maneira alguma ao próprio país! Que contrasenso almejar a destruição do país que governa, oras. Quando se usa uma citação em discurso, pretende-se aplicar o mesmo raciocínio a uma situação presente, e não prostituí-lo, como o fez a escabrosa mídia de língua inglesa - da brasileira, não resta muitas dúvidas sobre a (não-)averiguação dos dados que reproduz, quando não os produz ela mesma.

Quando será que as pessoas iluminadas deste mundo irão perceber que os verdadeiros filmes são aqueles que nos fazem buscar alento nos fatos reais, e, portanto, na realidade? Não que um filme de ficção não o possa cumprir (o que, aliás, é ficção? A não-realidade? E o que é a não-realidade, é tangível? E a própria realidade, o é? Há muito o que ser dito sobre a permeabilidade dos termos). Pelo contrário, eu sequer faria menção do filme baseado no livro homônimo de Sidney Sheldon, em português vertido para "Um Sonho de Liberdade" (Brasil), ou "Os Condenados de Shawshank"(Portugal), originalmente The Shawshank Redemption (Frank Darabont, 1994). O que acontece ali é fato, a coação moral, psicológica, física, e ulteriormente sexual do recém-chegado. Basta ler Carandiru, de Dráuzio Varella, ou falar você mesmo com um preso ou ex-preso, ou (ex-)agente penitenciário. Eu próprio escutei da boca dum agente penitenciário que trabalhou por 20 anos no Carandiru - daí você tira a firmeza factual do que escrevo aqui no blog. Eu e mais outras quinze pessoas, no Técnico de Museologia (ETEC-PJ, est. metrô Carandiru), afora outros detalhes por ele relatados, que nos pareceram ter sido extraídos dum pesadelo infernal. Alguns chegaram a passar mal ao retornar para casa, conforme ouvi, já eu perdi boas horas de sono - mas ganhei um conhecimento acurado da realidade.

Viver em sonho e fantasia - tudo isto acaba um dia. Um verso proverbial, matutado no momento.

Boas leituras, e bons filmes!

El Violin (Francisco Vargas, 2005)

Garagem Olimpo (Marco Bechis, 1999)

Spartacus (Stanley Kubrick, 1960) - a partir do qual, aliás, aventurei-me a poetar.

Missing - Desaparecido (Costa-Gavras, 1982)

Z (Costa-Gavras, 1969) - chamado por alguns de "a obra-prima de Gavras"

Network (Sidney Lumet, 1976)

Serpico (Sidney Lumet, 1973)

Os antepenúltimo e o penúltimo são indispensáveis para se conhecer alguns podres fatos por trás dos bastidores da mídia e da política; e, o último, tem o coroamento de Al Pacino, uma atuação brilhante, embasbacante, revelando a corrupção, entranhada na organização policial norte-americana de então. Sobre o qual postei uma resenha aqui no blog, que eu particularmente recomendo, por ser não-spoiler e conter reflexões mui interessantes.

Abraço!

terça-feira, 5 de maio de 2009

De Volta a Kansas

O tempo esvai-se em passagem
A vida corre, vai-se em miragem
A gente morre, só resta a imagem
Em casa, algures, n'alguma estalagem

É passageira a vida
Ligeiro o passo
Página roída
Doído abraço

Pecaminoso pensar em pecado
O Fado não suporta
Nós não suportamos
Sequer separar
Bonzinho e malvado

Fazemos o que dá
E dá o que fazer!
Que a vida não vá!
Se encontro-me a viver

Pecado maior não há
Que temer a viver -
A morrer

Se é pra ser feito
Cumpra-se então
Se for desfeito
É passagem é
Solidão

Mora em mim alguém
Que sente pelos outros
Em minha mente vem
Um outro igual a mim

Qual a distância
Vale indagar?
Vem-me funda ânsia
Avistar o fim do mar

O horizonte além do monte
Impalpável
A se acabar

E a vida, infinita
Não há de se perder
Dói a brita, o olho fita
O belo - a doer

Para não esquecermos:
A vida passada é
A vida em passagem

Nuvens, somos nuvens!
Nefelibatas enbranquecendo
O celeste azulado
Nívea lembrança

Da infância por vir
Sonhando a dormir
Dormindo embalada
Num brando embalar

Eis, pois, o dia
Que irá despertar
O retorno da alma
Em torno da alma
O lar

Midnight I

Era noite. Estava eu em casa. Em qual recinto, particularmente, não me é dado recordar - mas estou certo de que estava no andar de baixo. As janelas estavam abertas, não sei por que tão tarde, e meus pais provavelmente já haviam ido se deitar - meu irmão, nem sinal de vida. Portanto, estava eu só.

Até aqui, nada especialmente inusual. Mas o fato é: eu não estava só - havia um cachorro de grande porte, negro, esbelto, longas patas e focinho delgado - azeviche mesmo, chegava a ser belo. Entretanto, minha cachorra é uma cocker spaniel, e esta também, pelo jeito, não estava ali. Mas nem por um momento eu deixei de tomá-lo por meu cachorro, isto é fato. É como se a Mel não existisse, e ele (inominado) estava exatamente onde deveria estar, leia-se, na caminha da Mel, na sala dos livros e da tevê.

Já foi dito que era noite - e eu, naturalmente, fui fechar as janelas para me deitar. Primeiro, segundo a ordem de disposição espacial dos cômodos, fui ao quarto do computador, adjunto à sala, para cerrar a fenestra. Fechada ela, voltei à sala, onde então o cão negro soltou o que eu discerni como um ganido de lamentação, breve, mas enfático (dado que me olhou como um humano, incisivamente nos olhos, mas sem se mover donde quedava) a ponto que respondi o olhar, e segui o curso dos meus passos em direção à janela; sem maiores sobressaltos, numa questão habitual de segundos, dei cabo da tarefa e volvi-me para o meu rafeiro de estimação. "Vamos", o chamado de praxe, ao menos no que tange à Mel.

Com decoro, gravidade e o que eu denominaria uma considerável carga de orgulho ferido - deveras estranho, notei, sem me afetar em demasia - levantou-se ele (suponho que fosse macho) e me precedeu em direção à porta, onde se instalou, pétreo, na soleira.

Com todo o respeito à originalidade do relato, afirmo que aquela figura negra como a noite (sim, Castro Alves), ali estanque e dirigindo-me solene o olhar, em sinal duma paridade existencial que até então não levara em conta, poderia ser um baluarte, um forte, um alcácer, não um mero perdigueiro.

Intrépido, mas no imo já um tanto abalado pelo caráter explicitamente incomum dos fatos, fui à porta, como já o havia feito tão digno e portentoso o melhor amigo do homem. A porta é precedida pela escada de madeira, que leva ao piso superior, e encontrava-se aberta. E foi ao passar pela escada que me dei conta do simples - porém questionável! - fato de que o veadeiro postava-se ali, barrando a minha passagem, e impedindo, resiliente, ainda que de forma não-violenta (pois imóvil), a minha típica ação de conduzi-lo pela outra porta, externa, que dá no quintal, onde ele dormiria, como de costume com a minha cadela.

Impávido colosso, quis eu ser. Segui à porta, passos firmes. Pelos fatos relatados, subentende-se que a luz da área estava acesa, iluminando-o em cheio no batente, mas não a mim, já que havia apagado tanto a luz do quarto como a da sala, e sequer acendera a do corredor, uma vez que a luz da área vaza no corredor, alumiando-o de modo a se enxergar ao menos os passos.

Ele não se mexeu. Era a viva símile do soldado na guarita do Q.G.: a paciência e a resignação solerte, as armas à mão. No que eu fui tocá-lo na cabeça com uma mão e empurrá-lo com meus joelhos, ele se sobreergueu nas patas traseiras, apoiando no batente da porta a pata direita dianteira, e a esquerda, com autoridade, em cheio no meu peito. Foi aí que afinal me deparei com o porte da criatura. Pedigree.

É óbvio que eu me indagava freneticamente por dentro: "O que SER isto?" "Há algo de errado?!?" - e coisas afins percorriam a caixa craniana em nanossegundos. A pressão da pata esquerda na minha caixa torácica era plenamente hostil, e o fato de que seu focinho e seus olhos ocorriam de estar justamente a centímetros da minha face, todos esses fatos relevados não mitigavam de forma alguma a situação.

Repeti, brusco: "Vamos!", apoiando-me como dava para empurrá-lo - desta vez - definitivamente para além do limiar da porta. Estava transido de medo, lógico, mas quem manda sou eu - é minha casa, e eu sou o bípede pensante aqui; se não venço na força maxilar, sobrepujo na coerção alimentícia, em virtude de ser eu quem te reabastece dia a dia com comida, água, quem te fornece cobertores no frio, e mantém tua casa limpa. Tuteava mesmo, se apenas no interior da cachola.

Ah, pujança canil!! Não é que me empurraste com o punho dum policial-estandarte, no meu precioso plexo solar?! Pois foi assim. Nada verossímil tamanho gesto humano, mas o vigor da patada sobre os pulmões me trouxe de volta à realidade hierárquica, levando-me de encontro ao segundo degrau da escada, onde fui posto em meu lugar. Irônico, mordaz - sei bem o que transpirava daquela fantástica realidade, que não deixou de sê-lo por ser fantástica. O fantástico não exclui a propriedade Real e substanciosa dos fatos (oníricos? Quem sabe?).

Fiquei na miúda, mas isso não bastou. Tão rápido me forçou ao degrau quanto veio me vigiar numa proximidade pouquíssimo agradável, e, no mínimo, temerária (Ó besta! Tu que me afrontas no molde canino, sendo humano, tu, Tu - tens o domínio!). Emiti um grunhido de insatisfação, medo e morte (não era isto a Sina, que era então?).

De súbito, oiço três leves batidas no taco de madeira do piso superior, que se repetem, o que também alerta o negro algoz. Pensando ser meu irmão (Ó irmão celícola! Vieste me salvar na hora oportuna, em que me vejo impotente e subjugado!), revesti-me outra vez de viço (não estou só! não estou só!), empurrei a fera, mas esta então tomou minha mão direita entre as presas, e só não a mastigou por capricho - mas fez questão de premi-la a ponto de eu (tentar) grunhir de novo, para logo descobrir que estava sem voz; o máximo que saía não era mesmo audível.

Cogito ergo sum - eis a condição, dos humanos pra riba. Tamborilei com os dedos da mão sinistra na madeira do degrau acima, nada sabendo de código Morse, não era preciso. Ah, esperança! És a última a morrer, e morres comigo! Só então auscultei passos no piso superior - alguém de fato me ouvira! Empunhei-me a esgoelar: "Socorro!", mas nem voz, nem nada, além dum parco, pouco, azeitado movimento das engrenagens vocais. Forcei-as e forcei-as, e, numa resposta ameaçadora, o Cão apertou a mordedura já humilhante e dorida na mão direita, mas continuei forçando as cordas e batendo mais e mais forte a mão livre no degrau - conseguindo enfim sibilar um: "Socorro!".

Fiat lux! Let there be light! Acende-se a luz da escada, os passos se fazem soar, e eu distingo às claras minha mãe, pondo a cabeça no vão do balaústre, que indaga: "Onde?", ao que eu juntei toda a força para gritar (mas só saiu um murmúrio): "Aqui!".

Ah mãezinha! És tu quem vem me salvar! Não sabes quão bela é tua imagem, algures no céu! Não, mãezinha, teus filhotes não estão esfaimados, mas tu não acreditas... Não, mãezinha, teus filhos não passam frio, mas ó...! Já trazes o agasalho! Ah, mãezinha, ah, mãezinha, neste orbe e nesta urbe ou alhures - serás mãe e serás mãe, e transbordarás de sacrifício, sempre! Somente teu amor é incondicional e sem igual! És tua a Mão, mia salvação! Oh, mãezinha, vem, que necessito socorro e amparo e teu embalo, nada mais!

Mancando na perna direita, e soltando uma exclamação baixa e distinta, ela (a Luz!) sumiu de repente de vista, mas logo discerni seus passos auspiciosos dirigindo-se à escada, e então... sim! os passos pausados nos degraus! Até o cão diminuiu de tamanho e relaxou a mordida, não a ponto de soltar, mas era o derradeiro enunciado da esperança aquela vinda materna, é só o que importa!

Mas os passos se interromperam e de súbito a figura materna desvaneceu na curva da escada - não a vendo mais (desaparecera!) e tomado pelo mais pungente terror já vivido, berrei com tudo o que me restava, repetidas vezes, num crescendo assustador:

SO - COOR - RO! SO - COR - RO! SO - CORrr...! So...

Era noite.


Nada mais.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Palpável

Cada leitura me faz viver mais, reveste-me do anseio por viver, por aprender mais, e, com um pouco de esperança e idealismo, quiçá descobrir um pouco sobre mim. E só por isso eu vivo - sem minhas leituras, nem meus próprios pais me salvariam, nem o curso e a faculdade que eu amo, amigos. Lendo, eu tenho esperança. E por isso eu escrevo.

Em 2006, por exemplo, li Macunaíma. Tinha quinze anos. Quinze anos e deprimido. Segunda à sexta, de manhã, ía à escola, não sei por que, mas a odiava. Na verdade, eu sei muito bem o porquê - porque a imaturidade dos outros me enojava. Podiam sobressair-se em nota, mas eram piores que pirralhos - eram pirralhos arrogantes. Um termo nada agradável, facilmente ricocheteável, sei muito bem disso. Eu mal comia, meu intestino vivia mal-regulado (talvez a razão anterior justifique), fumava escondido, na calada da noite, jamais fora de casa - a circunspecção dá-se melhor na própria residência, é sob o nariz que se esconde melhor, e sob à guisa de santinho que se arquiteta o inferno - mas, no meu caso, já não era para tanto.

À tarde, terça e quinta, era o japonês, que tanto me ajudou a viver, ou pelo menos nisso eu creio. Pode ser no fundo falso, mas algo ali me inspirava o amor pelo conhecimento e pela dedicação ferrenha ao estudo, algo ali me borrifava, ruborizando-me de vitalidade, vontade irrefreável de aprender, instaurando em mim uma crença profunda em minhas possibilidades... "que se ferrem os professores que mal me conhecem e se arrogam o poder de me julgar mal", cheguei a pensar.

De sábado o inglês. Lembro muitíssimo bem da professora Martha, tão querida, pois teve toda a paciência do mundo para escutar minhas angústias após as aulas, para me apoiar, me inflar de um amor materno qu'eu carecia enormemente naquele ano. Como pode uma pessoa tão boa vir à Terra e firmar-se bem em nossa vida, eu não sei. De súbito ela nos aconselha como se tivesse uma escuta telefônica com o Deus onisciente das religiões monoteístas, infundindo-nos dum amor e dum carinho eminentemente verbal, mas que findam por nos envolver integralmente. Martha, você pode orgulhar-se de uma coisa, caso isto chegue a ti um dia: foste tu que me devolveste a esperança, a confiança, erguendo-me a cabeça pesarosa e apontando à porta, logo à frente. The way out. A caminhada descalça sobre os seixos foi minha, mas graças a ti eu pisei com firmeza - tu me indicaste a direção e a porta, ninguém poderia sequer pedir mais.

Dedico esta escrita mal-escrita acerca da esperança a todos aqueles que me ajudaram, direta ou indiretamente, naquele ano de procelas (auto-)destrutivas. Kobayashi sensei, profª Dorothy, teacher Martha, profª Marly, prof. Salmaso, meu irmão - o santo de casa que fez verdadeiros milagres para me (re)animar a estudar Matemática e Física, mostrando-me que a verdadeira inteligência está no espírito, no poder de decisão, no aqui e no agora.

Que para poder é preciso antes saber, é universalmente aceito. E só quem passou da miséria à bonança (no meu caso, em termos de aproveitamento escolar), sabe a significância intrínseca a isso. O professor que te olha com respeito e te reconhece com orgulho por todas as horas de estudo a que te afincas em casa. Poderia estar inerte frente ao tubo de raios catódicos, ou deixando opacos os azulejos do banheiro, com aquela Playboy na mão...

Mas não - você deixou de ser o "aluno com dificuldades" para tornar-se o aluno vencedor. Nem coitadinho, nem reverenciado - você aprendeu mesmo foi a amar a si mesmo, respeitar-se, deixando de lado a odiosa autopiedade, auto-comiseração, que tanto nos rebaixa e nos avilta e nos estanca. Foi esta a maior lição extraída do árduo processo de aprendizagem, naquele ano, 2007. Aquele ano.

Por mais que você (eu) se (me) esqueça frequentemente de tudo isso, o fato é que a esperança tornou-se companheira de estrada - com ela se vai pra cama e dela se acorda junto nos arrebóis matutinos. A esperança deixa de ser simplesmente a última que morre. Um é a unha, a carne é ela.

Garra.

Ganbatte ikimashoi!

O Duplo

Mais ri que sorri, ainda assim enregelado. Silente, suave, alazão - numa palavra, a tristeza e a razão. A dor de não poder peitar, só, o mundo; de ter de perder, sentir-se imundo. Ver-se fadado a perder a mulher que acreditou amar e amou acreditando. Não, não infeliz, mas um gladiador resignado - Bravo, ereto, mas sabedor da própria impotência.

Sem o diálogo, já não pode nada, torna-se besta enjaulada, remordendo-se, autoferindo-se por não poder contatar a alteridade, por sentir em si o vazio e perder o outro, sombra e reflexo de si. Não quer violência, mas o que pode querer? Não sabe maldizer ninguém - eis seu vigor e sua miséria. "A unidade na diversidade", "O complexo no simples", todos epítetos auto-explicativos acerca do outro, o outro como si mesmo.

O outro respondendo às nossas inquietações, o outro que reage conforme agimos - e de repente estamos no papel do outro, tudo mui sutilmente, de praxe tapeados pelo Real.

Sofrer é bom, dignifica. Mas, que modo, como é o idealizado "sofrer"? Há algum protocolo, alguma risca traçada no chão, um parâmetro qualquer? Será preciso chorar, entrar em convulsões, revolver-se freneticamente, ulular em lamentos, manter-se cabisbaixo horas a fio, transformar lar em casamata, enterrar-se no chocolate, pitar sem parar?

Não, nada disso. Por debaixo da pele do camaleão há sua substância. Mas pelá-lo em busca da recôndita essência o matará.

De que vale tê-lo morto e viva sua essência? Tão rápido o invólucro perece, o imo se esvai. De que vale?

De que vale ser o que eu sou, se nem isto é minha essência, e vivo em contradição? O que posso fazer para mitigar a dor de ser um hipócrita? Devo mitigá-la? Eis a questão. E se for melhor senti-la... Será que irei tão longe a ponto de mentir para mim mesmo, reconfortar-me em meu leito com palavras doces - balbuciadas em meu ouvido por ela, ilusórias (ela e as palavras), - como a mãe que mente ao filho em tempos de guerra?

Não - nem mais isso basta. "É preciso fazer algo" - mas não, há engano já na proposição. Para fazer é preciso antes ser. Não digo "ser alguém (na vida)", isso não retém valor algum para os nossos olhos, a despeito dos valores sociais.

Nem sou, nem faço. Rastejo. Culto, douto, mas um verme. Irônico, não? Risível? Capaz de ser. Mas um riso sem ar de graça, porque estou a falar de um ser que se decompõe em múltiplas facetas no decorrer dum único dia, desdobrando-se de tal maneira, que à noite não se encontra - nem à noite, nem à tarde, nem jamais. Encontrar-se ao acaso é objeto de relatos, não da minha vida. Já reinventei a mim e a meu passado incontáveis vezes (faço-o neste instante), toda vez que procurei e que procuro recordar-me do passado, eu o reinvento. Recrio os fatos pondo novas cores na paleta - fi-los graciosos para suportar tamanha desolação.

Nem uma pedra sequer ficou incólume. Tudo foi tirado e retirado, metodicamente, do lugar. Se houvesse ocorrido de maneira desordenada, a harmonia hipócrita da vida estaria certamente perturbada, e o caos se instalaria, com direito e pompa. Sim, se algo tivesse dado errado na alteração dos dados, talvez eu não fosse mais considerado um indivíduo mentalmente sadio. Sándor Márai suicidou-se com 88 anos, Kawabata com 72 - ou era 73? Gógol não chegou à quinta década de vida muito são; após dez anos peregrinando, viajor eslavo indefatigável, tomado por visões religiosas, matou-se à moda cátara, ou albigense, como conhecer melhor: inanição. Kakfa soube descrever - duramente - bem tal processo, em Um Artista da Fome. A única forma verdadeiramente corajosa de suicídio. Em Algum Lugar do Passado (1980, dir. Jeannot Szwarc) ilustra essa passagem lenta da vida à morte. Referências abundam, a quem interessar.

Recordo

Eu - que nada queria com o mundo
Eu - que nada sabia da vida
Eu vim à vida e vim ao mundo

Eu - que nada sabia de gostos
Eu vim e provei dos desgostos
Eu vim para ficar
(Mas estou a me mudar)
Em busca de meu lar

Egrégio sentimento de altitude
Eu provei - e a queda não senti
Sei que caí, estou aqui
Para nascer, eu morri

Não sou eterno - isto,
Uma parte de mim quer ser
Nem sempiterno, visto
Que uma vez nascido
Haverei de morrer

Este mistério eu busco
Na comissura dos Teus lábios
Silentes - onipresentes
Ó, Símile, Bálsamo dos
Sábios...

Sábios e mortais
Sábios, mas mortais
Sábios - nada mais.

Que pude eu ver nas alturas?
Esqueci, no lago Léthes
Lá sorvi das amarguras,
Respondi às Tuas enquetes

Retorqui nada saber
Ante ao rio que ali fluía
Redargui e vim ao mundo
Nu, só, silêncio...
Profundo

Cego, pequeno, mortal
Meus pais me saudaram:
Puro, abstêmio, livre do mal...
"A esperança!"
Alegres, clamaram

Mas eu vim à luta,
Gume em mãos,
Findar a disputa
De falsos irmãos

Vim cindir ao meio
Bem e Mal
Repudiar o centeio
Fecundo em lodaçal

A peleja me forja.
Obduro!
Procuro
A paz

Só ela me faz
Só a luta é minha paz
Só ela - nada mais.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Silêncio (Chinmoku, 1971)

Dirigido por Masahiro Shinoda e baseado no romance de Shusaku Endo, o filme concerne meados do século XVII, com a chegada de três padres jesuítas, que desembarcam no Japão com o intuito de localizar seu mentor, e divulgar o Evangelho Cristão. No entanto, eles não poderiam ter escolhido piores colheitas. Sua chegada é logo seguida pela divulgação de um estatuto que põe em clandestinidade todos os frades cristãos em terras nipônicas, e as denúncias não tardam a chegar - em troca de recompensas monetárias do governo.

Filme duro, quase indigesto, já que não atenua os sofrimentos desses corajosos - ou simplesmente ingênuos - pregadores. Um filme que choca, que dá calafrios, que nos empurra para o lado dos preconizadores, dos atormentados, e desenraíza qualquer ideal de imparcialidade que poderíamos ter antes do início do filme. Um filme que, em intensidade emocional, eu comparo a Garage Olimpo (1999, Marco Bechis) e El Violin (2005, Francisco Vargas), ambos também sobre eventos reais, e que dão tamanho enjoo, que se torna forçosa a presença de um forte estado de espírito.

É, portanto, um filme altamente recomendado. Porque um bom filme é aquele que nos dá um empurrão e um pontapé em direção à biblioteca, à literatura, espicaçando-nos a aprender mais sobre aquilo. De fato aconteceu? Foi assim tão violento? Por quê?

E é aí que não estagnamos.