segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Guarda-me meu bem

Certa vez uma criança
Me disse assim baixinho
Ouça tua alma que dança
Tão mansa ao som do caminho

Saracoteia, rodeia
Te faz tão feliz, não é?
Por que você a odeia?
Anda no mundo sem fé...

Teu pé metido na meia
Não cheira nunca a chulé
Tua alma dentro do corpo
Não mostra quem você é...

Trato por tu a você
Que finge jamais me ver
Sempre entretido a ler
Tudo em que você não crê

Foges de mim, foges sim
Tu corres desesperado
Tentando alcançar o alado
Ágape do querubim

Mas o amor está na terra
Se o ler não te ilumina
Não verás o fim da mina
Rodarás como uma esfera

Saber dói, mas esclarece
Se doer, sussurre a prece
Que eu hoje te ensinei
Do universo a nossa lei

Seja bom, seja sincero
Veja como eu te quero
Sempre bem, com todo esmero
Sem vã glória, lero-lero

Sempre assim te quero bem
Vosso pai e mãe também
Se tu queres ir além
Não se faça de refém

Vitimar-se é a perdição
Olha bem tua própria mão
Só há está condição
Conhecer-se de antemão

E saber-se acompanhado
Pelo céu anil dos astros
E no balouçar dos mastros
Poder rir frente ao trovão

E durante o teu cansaço
Venha unir-se ao meu abraço
Tua mãe é minha mão
E teu pai, meu coração.

sábado, 27 de novembro de 2010

Missiva dum intelectual ocidental em crise

Para mim, é insuportável a passagem dos dias. Lembranças, que evocam lembranças... que evocam lembranças. Verdades contadas à meia boca, em sussurros, inacreditáveis, ainda que inegáveis. Mentiras hoje comungadas como verdade.

A boca enorme e hiante das passagens subterrâneas, obnóxias e cavas dos mineiros de Emile Zola. Páginas lidas no arrefecimento do vinho que restou sobre a mesa após a farta ceia de Natal. Imaginando-me em cada morte terrível que se sucede sem fim naquele livro desolador, cada desgraça relatada enquanto deitado invertido na cama, devorando suas linhas, embriagado pelo vinho, empático, humano.

Fazia coisas boas naqueles tempos com meu tempo. Com minha vida. Alguns comemoravam a passagem do ano velho para o ano novo, quero dizer: muitas pessoas no mundo todo, 2005 para 2006. Eu chorava e me mordia e suava frio de tristeza por aquelas vidas que me pareciam desperdiçadas numa labuta aviltante e inacabável nos intestinos sórdidos da terra, e pelo excesso de vinho Porto que metera sem pensar duas vezes goela abaixo. Fora-se a garrafa inteira no decorrer da madrugada. 15 anos recém completos.

Eu ainda tinha a nobre capacidade de sentir-me melancólico pela miséria alheia, porque tinha saúde, porque teria, sem dúvida, bons e longos sonhos após tanto sofrer por vidas outras. Pode-se compadecer-se muito quando se está bem. Pode-se ser solidário, compassivo, pode-se viver, ou alimentar a ilusão de viver, muitas outras vidas simultâneas. Há muito chão pela frente - é o que nos dizem - é-se novo, está-se no auge das forças e da vitalidade, no ápice da embriaguez sóbria, sente-se o coração pulsar firme e espaçado, e não há vida melhor que esta.

Ou que aquela, pois já passou. Já passou e não a vivo mais. Apaixonava-me porque cria numa espécie idealista e platônica e máxima do amor, indestrutível. Indestrutível. Anos depois, não me resta uma migalha dessas crenças enaltecedoras, até então inabaláveis. Na minha cabeça de adolescente inexperiente, o sexo era fruto do puro amor, e o puro amor era palpável, tão tocante como a vida, tão verdadeiro como aquela, o mais alto sonho tornado verdade.

Quero aquela vida sem querelas quixotescas de volta. Olhava as pessoas nos olhos e não havia quem honestamente não gostasse de mim. Nos meus olhos via-se respeito à humanidade, ao que há de melhor e mais divino em cada homem, e não os desviava jamais. No meu olhar infundia-se minha fé suprema nas palavras proferidas por Cristo: Não julgueis, e não serás julgado. Não precisava frequentar o adro da igreja para aprender na ternura de meu espírito ingênuo os mais caros ensinamentos dessa figura mais que humana, mítica, nomeada Jesus. Jesus de Nazaré, onde há luz há fé, há conhecimento e poder, poder de ser, crer, criar e viver, poder ser-se (como diria Fernando Pessoa, meu xará), isto é, ser humano no mais amplo sentido. Um leque inesgotável abria-se multicor como um pavão imponente aos meus olhos maravilhados, e a vida aparecia-me como um caminho reto em direção à amplidão da alma, suficientemente duradouro para nutri-la até o segundo que precederia o fenecimento deste corpo. Cada passo contava-se supremo rumo ao infinito, cada passo consistia no caminho inteiro.

A morte. Era um fenômeno distante, mas igualmente próximo. Passei minha adolescência figurando-a no instante seguinte, meu eterno incentivo para fazer o que houvesse de ser feito, dizer o que quer que houvesse de ser dito, sem delongas, sem preguiça, sem sensação de baixa autoestima. Outra frase atribuída a Jesus no Novo Testamento ressoava-me na cabeça: Não ajudeis os preguiçosos. Atividade era o meu lema, meu tema, meu rema. Atividade, bondade, altruísmo e amor.

Mas o que é a humanidade, mesmo? Ambição, fornicação desconexa a qualquer idealismo de amor e união, tirar proveito dos mais fracos e ignóbeis, explorar, lucrar, manipular, persuadir e dominar. Há neste mundo algum espaço, exíguo e insignificante que seja, para santos e monges fora de seu monastério e eremitério? É uma questão que anseio por responder positivamente não por mim mesmo, mas por parte de minha tia pia e freira, a quem amo tanto. Quiçá o consiga assim que voltar a olhar nos olhos os cegos, os injustos, os aflitos, os sacanas e os pobres d'alma que me rodeiam. Gente infeliz que crê na permanência e só existência do corpo, uma tolice sem tamanho, mas aceita como um amém. Falsa hóstia boca adentro.

Olho ao redor, olho-me ao redor, e já não desejo que meus olhos vejam absolutamente nada mais. Quero paz, mas tenho guerra, almejo o céu mas prendo-me à terra, o real me desterra, e eu fora de mim nem suspeito onde estou. O etéreo foge-me entre os dedos e fenece, desacordada, minha esperança na boa-aventurança da vida humana sobre a Terra. Há males que vêm para o bem, mas eu quero o além, e não viver me torturando na cotidiana autoflagelação desta pele sensível, queimada pelo sol, povoada por veias e decisão latejantes, embora incapaz de tatear este mundo nauseabundo em sua temível integridade, o que me rememora sempre os terrores que esta pútrida terra testemunhou e testemunha de forma contínua, porque não deixa de ser a mesma, habitada pelos mesmos seres mesquinhos e egoístas de séculos, senão milênios e decênios atrás.

Só há uma coisa ainda a ser dita. Creio na humanidade. Creio no elemento humano. Seria insânia descrer até nisso. Não obstante tudo o que eu disse entre meus dentes rilhados até aqui, creio solenemente em ti, e de ti tiro a imbatível crença abençoada em mim e, por natural extensão, em todos nós. Somos farinha do mesmo saco vazado. Pois não importa onde estamos, o único ponto relevante é o que somos, verdadeiramente somos e nos compremetemos a ser.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Triz da Felicidade

Não que a vaca não tivesse razão: ela tinha. A Natureza tem lábios sábios e eu não ousaria contrariá-los. Eu olho em volta e vejo o quê? Vacas e mais vacas Nelore, e eu preciso tomar meu banho. O sol já não está mais a pino, a tarde não tarda por acabar, e é hora de aproveitar a água morna que o sol, este lindo sol do norte de Minas Gerais, fez o favor de acalentar, deixá-la tépida e imensamente apropriada ao banho humano. Ok, sem mais floreios e filosofias baratas. Eu estou na roça, chinelo havaianas metido na terra fofa adubada naturalmente pelo inodoro cocô que o gado distribui à vontade. É gostoso pisar descalço e afundar bem fundo os pés, sabe. Mas meu pé está suado e eu quero tomar banho.

Eu não sou obcecado por banhos, é bom esclarecer. Também não vou negar que me é das coisas mais agradáveis da vida estar sob o chuveiro, tomar uns dois ou três banhos frios quando o dia está fazendo 35-40ºC na sombra. É maravilhoso ver, sentir, ouvir, tocar, degustar e cheirar o jato de água encanada jorrando em meu corpo nu. Se há erotismo nisso, eu não sei. Sou um cara ingênuo, e com um faro bem apurado quando o assunto são todas as coisas boas e baratas da vida. São as mais duradouras e as mais plenamente felizes. Falar com uma criança, cheirar uma flor, escutar a canção dos pássaros. Meu tio-avô, tão querido mas já falecido, costumava dizer logo que saía do banho diário por estas terras: Só tem uma coisa melhor que um banho. Sabe qual é? Do-is banhos!

Faço questão de concordar com ele, por mais que ele não possa mais me escutar. Quando ele falava isso eu era muito pequeno pra entender, e, creio eu, nunca cheguei a presenciar. Agora já é tarde para desejar escutar sua voz novamente. Quem me disse que ele falava isso foi meu pai, de forma que essa citação muito salutar sobre banhos, e a higiene pessoal em geral, é de segunda mão, meus caros leitores. Mas meu pai é uma fonte preciosamente confiável, deixa comigo. Voltemos sem mais volteios agora à essência desta minha história, que sou eu na roça do meu tio (irmão mais velho do meu pai), no começo do fim da tarde, a 30km de uma cidadezinha encantada chamada Bocaiuva, no coração do Norte do estado de Minas Gerais.

Eu estou suado, a roupa está pregando, e o banho neste momento me parece a coisa mais inteligente e simples e proveitosa do mundo. Ma-as... não é tão simples como parece, chegar lá. Por um motivo não tão muito simples: eu tenho medo de vacas. E, para ser completamente honesto sobre ser um cagão (como se diz por estas bandas, e não é gíria dos mais novos, como se poderia pensar), digamos que esse medo meu se estende a todos os animais maiores que eu. Resumindo, eu não tenho medo de pit bulls. Sei que bastaria dar-lhes um chute muito bem dado e acertado que qualquer antipatia inicial estaria naturalmente terminada. Quer dizer, a vida do pobre cãozito estaria terminada, e a minha justamente re-começando. E o mundo continuaria a girar como se nada houvesse acontecido. Um acerto de contas com um cão que tenta - sem sucesso - dar cabo de sua vida é um assunto demasiado local para deslocar o eixo do planeta ou algo semelhantemente catastrófico para o restante da raça humana. Pode ter faltado um bocado de humanidade da parte de quem findou a vida do bichinho, mas não entremos nessa discussão agora.

Eu tomei toda a bravura do meu peito, inflei as narinas e comecei a gritar e gesticular, pincelando a cena com um toque decisivo e cinematográfico, para embelezar. Uma mãozada de firmeza jamais é demais. Ôoo, Ôoo, Ôoo, Ôoo... Êei, Êei, Êei, Êei...! E as vacas se dispersavam. Uma por uma menos uma. Vaca dum preto brabo, com dois chifres curtos e grossos encimando a cabeçorra, ela a uns doze passos de mim. E eu pensei: ... ... ... ... bom, é melhor não revelar o que me atravessou a cuca vazia naquele instante. Mas assumamos que havia uma poeirinha hostil no ar, como nos filmes macarrônicos de faroeste americano, e esse clima estava mesmo é menosprezando o meu banho e colocando a Mãe Natureza diretamente contra a melhor e menos ambiciosa das intenções humanas num dia de calor.

Minha ducha de água fria estava sendo contestada e prorrogada pela vaca arredia, que permanecia deitada folgada na terra e ruminando, e me encarando com olhos bodeados. Uns olhos... ... e quem, em-no-me-de-Deus, abençoou esses bichos maiores que nós com olhos mais humanos que os nossos? Você já se perguntou isso ao acariciar o papo do cavalo que você iria montar?

Bom, terei de apelar. Lembrei o modo como meu tio afastava as resilientes quando elas se punham de manha, assim de má vontade e corpo mole de nos obedecer. Apanhei uns tocos de pedra no chão e atirei-os perto da vaca, e ela matutando o que fazer, olhando-me como um estranho que houvesse adentrado sem permissão sua sacra propriedade. Eita, vaca indiana orgulhosa. Imagino, ainda na minha ingenuidade, que haja olhares assassinos sutilmente mais afáveis que aquele que ela me entregou de bandeja antes de ser pôr de pé. Ixe, pôs-se, pode-se afirmar, de-ci-si-va-men-te de pé. Bufou. As pedras restantes caíram da minha mão em um movimento de abrir e fechar dos dedos inconsciente. Com uma das patas dianteiras arrastou a terra logo debaixo. Eu olhei com o rabo do olho para a esquerda e para a direita, paralisado, procurando não-sei-quê. Mais uma vez, e mais firmemente, eu diria F-A-T-A-L-M-E-N-T-E, ela repuxou irritada o torrão que restava debaixo de si. Eu desta vez não pensei em nada. Para os lados, ela me pegaria na certa, bem, e para trás seria a senhora desonra correr o risco de ter um par de chifres invadindo meu território proibido, mas era a única alternativa.

Desta feita ela soltou um mugido que parecia saído das páginas fresquinhas de Revolução dos Bichos, um mugido que, por seu terror bélico e tom monstruoso, me eriçou o pelo, o cabelo e quanto mais houvesse direito. Foi aí que eu percebi minha burrada. Ela estava fazendo tudo aquilo porque estava com seu bezerrinho do lado. Xi, Maria, humano atoleimado. A cabeça da bicha baixou, eu ouvi as passadas galopantes dela atrás de mim, escutei o arfar se aproximando, meti-me por entre o vão da cerca, a cerca limítrofe entre vida e morte. Segura arame, tira pé, passa pé, tira braço, passa braço, cabeça e opa! Chifres e cabeça amontoando-se no exato milímetro donde eu escapara numa fração de segundo atrás, eu do outro lado com um riso bobo e o coração literalmente na goela, a tremedeira, o suor frio na espinha, bufei em alívio. Hora mais errada, impossível. Valha-me Deus e os santos daimes d'universo que havia três bezerros graúdos justo do lado seguro da cerca, que me salvou mas me pôs em outra! Batata quente atazanada! Eles, não me espanto, tomaram partido da parente enfurecida e se lançaram em trio sobre mim!

Dá-lhe sebo na canela, Zé Ruela! Sorte a minha que tinha um cercado alto de troncos de madeira postos na horizontal, dentro do qual meu tio tira o leite das vacas que parem, e lá pra cima, lá vou eu! Esbaforido, sem saber como chegara ali tão alto dum supetão, uma única havaiana sobrevivente - a outra virou butim de guerra para os quadrúpedes -, a camiseta regata empapada, fedendo a bode bigodudo e beiçudo e o shorts rasgado da escaramuça, eu fiquei ali. Embasbacado, lambendo os lábios besuntados por um suor salgado e bruto que só a luta ou fuga pela sobrevivência sabe produzir. Uma perna minha bamboleando mole e sem forças para cada lado do santo pau, o mais alto do amurado. Ora me deitando, ora me erguendo, deitava de novo, impressionado, mistificado... zureta e zonzo e sem um zás na vista zarolha de adranalina... não xinguei nem vaca nem a mim mesmo, nem a deus pai, filho, espírito santo, buda, maomé, nem a ninguém, amém seja, amém... quer dizer que, por um mero triz, eu por pouco deixei de ser feliz. Um triz, o que é um triz? É, meus amigos, tudo o que nos faz feliz.

sábado, 13 de novembro de 2010

E que comece outra vida

Infinitude - Dimitriy Polyakov

O que é um homem sozinho quando a doença o abate? O que é um homem só quando o inominável o atormenta? O que é um homem solitário quando suas forças não lhe valem mais? O que dizer da solidão do albatroz sobrevoando o cais, o abismo inenxergável entre terra e mar, o borbulhar das gotas dispersas da chuva, da chuva chacoalhada pelo vento...

O que são esses instantes todos, imesuráveis, incontáveis, que formam nossa vida? Parece-me tão pequena e distante do universo ao ver-me moribundo dia a dia. Sonho coisas terríveis mas não posso fazer nada, senão achá-las fascinantes - em sua grandeza, imaterialidade. Há quem chame de pesadelo o que nos assusta nas horas ermas da noite, fazendo-nos transpirar nos lençóis, e gritar em desespero e despertar transido de medo ao som dos próprios berros.

Eu chamo de iluminação. Passado o pavor, é claro. Nas trevas da escuridão do meu quarto, eu vejo a luz. Não a luz do dia, sagrada seja, mas a luz da minha consciência - terrivelmente alquebrada, em frangalhos, ainda que unida aqui e ali por fiozinhos microscópicos e cambaleantes. Ontem mesmo tive um sonho horroroso, e pasei o dia a tentar escondê-lo de mim mesmo, por mais que o contasse a minha mãe, meu irmão. Sempre sucede assim - primeiro o espanto, depois o encanto, e então o olvido.

Há um mendigo que transita pelo meu bairro e o conheço de vista há anos. Faz bem uns dez anos que o vejo: sempre de chinelo, os pés nus, a cabeça calva e com cabelos brancos, o nariz avantajado, adunco, tez branca. Mais que a minha. Às vezes está em pé, às vezes agachado à entrada de uma loja fechada, às vezes com uma bíblia preta metida nas mãos, aberta, ou debaixo do braço, fechada. Curioso observar aquele que nos vê apenas como mais um. Para ele eu sou um simples transeunte. Mas para mim, ele é a exceção, e se eu fosse um pintor, saberia esboçá-lo como ninguém. Até suas expressões faciais cravaram-se em mim. Curioso, não?

Pois no sonho noturno de ontem esse homem estava na plataforma de trem. Ao longe via-se o trem de passageiros chegando, e e ele inusitamente saltou sobre os trilhos. O trem não demoraria a vir sobre ele, o que me deixou perplexo, meus olhos transfixos em sua figura que deixaria de ter vida em questão de segundos. A aproximação da morte, inevitável, inadiável, é algo realmente terrível de se mirar. Mas nossos olhos prendem-se aos últimos detalhes da vida daquele que decerto deixará de viver, mesmo não havendo nada que possamos fazer. É de uma morbidez insuportável.

Justamente antes do trem passar por cima dele, eu pude vê-lo por inteiro, de frente. Esse senhor abriu seus braços, soergueu seu queixo pontudo e sorriu celeste, majestoso. Era o riso de um possesso, de quem já sofreu de tudo no mundo e mostra-nos como superar as tragédias altivo, entregue de alma e corpo que só a ele soía entender. É preciso ter muito mais que colhões ou vulgar destemor para fazer um tal ato - necessita-se ser dono de si, e ter um objetivo ulterior a esta vida. É um exercício solene de fé. Estar e estar-se presente no presente, sem mais nem menos. Eu tenho tudo o que esse homem não tem: casa, dinheiro, amigos, colegas, um conjunto enorme de conhecidos, um amor terreno para viver - o amor à mulher e da mulher que eu amo e me ama. E tendo tudo isso, perto desse último ato dele, eu não sou absolutamente nada. Nadinha. Necas.

Sou um completo covarde no que tange ao seguir vivendo, não importa por que, por quem, na ignorância ou na sabedoria, no puro egoísmo ou na solidariedade. A sórdida irrelevância da inércia preguiçosa me abraça todas as manhãs e me beija com seu hálito sonífero, anestésico. Permaneço o resto do dia acordado, mas indolente, caprichoso, um fresco, um alguém que jamais dá 100% de si. Um incompleto sem anseio algum por preencher-se. Abominável, mas tão-só similar a 99% dos meus semelhantes...

Meu lema até hoje tem sido seguir vivendo até que um dia me matem, ou eu morra em decorrência de algum acidente, ou doença, ou velhice, ou qualquer outra coisa. Insanidade, provavelmente.

Esse último momento foi divino. Abrir os braços e sorrir supremo ante à morte iminente é algo inaudito, a não ser que consideremos mais uma vez Mohandas Karamchand Gandhi, o Gandhi-ji, o Mahatma, a grande alma. Após alvejado num repente por projéteis à queima-roupa, aos 78 anos de idade e macérrimo de seus religiosos jejuns, pôde ainda resgatar as forças que lhe restavam para evocar o nome sacro de Deus e conceder por essa santa via o perdão ao seu carrasco - sem rosto, sem nome, sem passado e sem futuro. Nem a morte, parece, pega o homem que viveu uma vida frugal e de sacrifícios de surpresa. Nem mesmo a derrocada final deste corpo é vista com maus olhos por sua alma radiante. Fiat lux.

Mas de um mendigo, supostametne como outro qualquer, que habita uma das maiores metrópoles do mundo, o que se poderia esperar? Certamente não que tivesse a audácia de findar sua vida numa iniciativa de martírio sublime. Certamente não isso. Suicidar-se de olhos cerrados, batendo os dentes, trepidando, desesperado, arrependido no meio do ato, com todas as razões e desrazões possíveis do mundo ou extra-mundo, com lágrimas copiosas aos olhos, matar-se pouco a pouco dia a dia e perder lentamente o interesse em viver, na vivacidade, na ação e na transformação e na mudança, é uma coisa. Já entregar-se de corpo e alma à morte com os braços abertos em cruz e um sorriso digno de Jesus é outra. São formas tão distintas como uma pedra e uma flor. Bárbaro seria igualá-las.

O sonho não acabou aí, mas a estória sim. O que haveria mais para contar? A minha angústia naquele instante ante a inevitabilidade da morte de todos que nos são mais caros nesta terra - e, surpresa! - que a morte de um sujeito mendicante naquele momento tenha me doído mais fundo no imo que a morte súbita de um dos meus amigos de adolescência? Sério, o que haveria mais para contar quando se alcança este ponto inenarrável? Acaba aqui um sonho, e nasce um mártir diferente de sua estirpe.

Pela liberdade do espírito humano. Ponto final.