sábado, 28 de agosto de 2010

Buona Sera!

O que houver de acontecer,
Acontecerá.

Será

domingo, 15 de agosto de 2010

Insônia dos Sonâmbulos

Em meu sono insone os sonhos
Aparecem como alerta
São meus medos mais medonhos
A vontade me desperta

A vontade de acordar
E fazer quando acordado
E sorver de novo o ar
Majestoso desse estado

Onde as fendas mais escuras
Permanecem escancaradas
E aos meus males acho a cura
Sem a cura não sou nada

Logo desperto, adormeço
Fundas sendas sem saída
Meu retorno ao recomeço
Minha vontade esquecida

Como pude eu esquecê-la
Uma náufraga ilhada
Sem nem mesmo nunca tê-la
Nesta infinita escada

Demarcada por degraus
Perfazendo o labirinto
Onde medram bons e maus
E minhalma pouco eu sinto

Corpo e cor descompassados
Repetidos cada instante
Meus simultâneos passados
No tarô da cartomante

Morte ao bravo cavaleiro
Vida ao astuto rapaz
Paira em mim um nevoeiro
Negro, intrépido, sagaz

Anoitece novamente
Rumo ao novo limpo dia
Num mormaço deprimente
Antevendo a carestia.

sábado, 14 de agosto de 2010

Família Ideal

Mamãe, papai e vovô
Vovó, titio e titia
Todos tramando tricô
No seio nu da família

Minha irmandade de sangue
É como as portas que rangem
Só o ranger incomoda
Logo suave se tranca

Dobradiças sem azeite
E bisagras a sangrar
O azedo amargo leite
O range-range a rilhar

Engonços desengonçados
Ora rangindo, ora rindo
Marcados rostos e traços
Neste suceder infindo

Falam de tempos tão árduos
Como o próprio termo gínglimo
Leitos com pulgas, moscardos
Digo, um viver dificílimo

"São os quícios emperrados"
...não entendo patavinhas...
Do linguajar antiquado
"As vinhas da ira" -.... quem vinha?

De charneiras enguiçadas
Também muito já ouvi
São parentas mal-amadas
Frustradas e já cricri

Há também as aves negras
Fora dos eixos e gonzos
As ignoradas ovelhas
Chamadas de mongo-sonsos

Borboletas sem casulo
Parentes desmiolados
Com as paixões de Catulo
Cujo perdão é negado

E o rebuliço é maior...
As chamadas machas fêmeas...
De coração colorido
E seu amor por gardênias...

Pois sem quícios nem resquícios
Os mancais que ainda mancam
Tornam-se os tabus do vício
E as trancas suaves se trancam.

***

Um poema meu no qual brinco com os "segredos" de família, os tópicos evitados, "difíceis". E como eles são, duma forma ou outra, trancados num quartinho até que surja um curioso que queira porque queira descobri-los, escancará-los, e chutar o pau da barraca. Daí também brincar com a ambiguidade de uma palavra como "macha fêmea", sinônimo de dobradiça, e que aqui adquire outra conotação... assim como "mongo sonso", igualmente sinônimo de dobradiça, e que traz aqui outro significado. E assim vou brincando com outros sinônimos de "dobradiça" (já que, sem a dobradiça, portas e janelas seriam bem mais difíceis de se fechar e se trancar...):

...bisagra, engonço, gínglimo, quício, charneira, eixo, gonzo, mongo-sonso, borboleta, macha fêmea, mancal.

E, claro, qual família é ideal?

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Do Alto Abaixo

Minha dúvida na vida
Minha dívida de vida
Serei quem almejo eu ser
Doa muito a quem doer

Doa, fira, decepcione
Serei quem almejo eu ser
Seja eu Sérgio Leone
Venha eu recrudescer

Se o que me importa é meu ser
Esta pútrida aparência...
Ou será mia séria essência
Pronta sempre a se esconder?

Esta larga porta aberta
Do outro lado, outra vida
E eu cá ensimesmado
Vejo a reta tão comprida

Encurtado o horizonte
Olho a meta indefinida
Que podia ser mia ponte
Entre esta e outra vida

Que atravessa o alto monte
Numa trilha tão dorida
É melhor que não me conte
Nada mesmo desta vida

Antes me tornasse insano
Procurando uma resposta
Afundado em desenganos
Preso à fria e crua encosta

Pétreo e rijo nesta crosta
Já acumulada em mim
Sem qu'eu nem mexer me possa
Enxergar no chão carmim.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Estranhos na Cidade

Ele era mais baixo que eu, talvez em seus 1 metro e 68 centímetros. Talvez 1 e 65. Tenho um bom olho para arriscar-me em "chutes" de dimensões corpóreas, mas não há a mínima necessidade de delongar-me enfadonhamente nisto. Tinha a barba rente, grisalha, e aparentemente a idade do meu pai. 55 anos. Daria menos, mas logo se notava que não havia passado pelas melhores das situações na vida. O dia era frio, 15ºC, e ele vestia uma jaqueta um tanto escurecida pela sujeira acumulada, que não era excessiva a ponto de causar repugnância, nem tampouco fedia, mas seria de pronto rejeitado em qualquer entrevista de trabalho. As pessoas do ponto de ônibus visivelmente evitavam olhá-lo. As pessoas, como uma regra geral, não costumam fixar a vista no que lhes é desagradável. E as aparências contam muito.

Veio esse homem até mim e perguntou-me: Aqui passa o Butantã? Respondi-lhe num gutural que me assustou, assim como a outro jovem homem que estava próximo: É! E então veio a pergunta desse homem que me deixou estupefato: Lá dentro [da USP] "ele" faz denúncia em todos os lugares? Respondi-lhe: Faz! Monossílabos esses que me permitiam elocubrar o que esse desconhecido estava afinal querendo dizer, e refletir se ele estava em plena posse da razão. Do nada, então, ele começou a relatar sua vida em pormenores... e eu, que nunca o havia visto antes, passei a escutar e anuir com a cabeça, olhando-o nos olhos...

As irmãs dele o haviam colocado num "manicômio", para embolsarem o dinheiro da assistência do governo. "Coisa pouca" de dinheiro. "E isso se faz a alguém?" Respondi-lhe: Não, não se faz. Continuou, dizendo que o pai lhe negara e o encomendara ao diabo, já no leito de morte, negando-o também como filho de seu próprio sangue. O pai o odiava. A mãe, desnaturada, prendera-o no galinheiro, forçando-o a comer o "lodo" pisoteado e emporcalhado pelas aves. "E isso se faz a um homem?" Não, meu senhor, coisa dessas não se faz...

Ele, pois, queria "fazer denúncia" desses abusos dos quais tinha sido vítima, e viera de Bauru, cidade do interior paulista, para esse fim. Disseram-lhe - sabe-se lá quem lhe disse semelhante asneira - que "aqui" ele poderia denunciar esses maus-tratos sofridos e angariar uma indenização. Por conta dessas terríveis tribulações, às quais fora submetido pela própria família, havia sobrevivido à tuberculose, pneumonia, febre amarela, e estava "doente das pernas", morando na rua. Não, não me pediu dinheiro. Queria mesmo era relatar sua história, sem quês de piedade ou súplica. Relatava sem sorrir, sem mostrar um dente sequer - talvez não os tivesse, talvez os escondesse muitíssimo bem, sabe-se lá por quê tal procedimento.

Sua aparência era de fato frágil, sendo ele um homem de fenótipo magro, as bochechas sugadas, os olhos estranhamente azuis... havia trabalhado "no Estadão", ganhava uma boa grana, mas o enganaram, dizendo-lhe para largar aquele emprego pois haviam lhe encontrado "coisa melhor". Viera e se desiludira. Novamente tapeado pela vida, ou por aqueles que a transformaram pouco a pouco num inferno. Já dentro do ônibus, desatou a tossir. Tossiu uma ou duzas vezes, mas foi o suficiente para ter uma ideia precisa do estado de seus pulmões. Haviam-lhe tirado a moradia, e "nem que fosse para andar lá dentro" [da USP], ele queria porque queria encontrar o tal lugar onde se pudesse fazer a tal denúncia.

O problema era que... ele não conhecia absolutamente nada da USP... nunca estivera sequer lá dentro. Pensei: esse homem não sabe o que está fazendo... ninguém quererá ouvi-lo lá dentro, e caso peça informações a algum transeunte, de três, uma: ou lhe ignorarão ao ver suas vestes malcuidadas, ou tirarão graça da cara dele (há sempre quem se divirta com a miséria alheia), ou, por fim, não saberão lhe informar aonde ir, como ir. Para todos os três casos, a certeza única é que ele se encaminhava para a própria perdição.

Disse-lhe: Senhor, pergunta para o motorista qual é o ponto do hospital lá dentro (Hospital Universitário), e desça lá. "Hospital? Por quê?". Porque lá é capaz que lhe deem a informação [de onde fazer a "denúncia"]. Ele agradeceu, sempre olhando-me direto nos olhos, mas permaneceu estanque. Num determinado ponto de sua história pessoal, antes de chegar nosso ônibus, lágrimas quase lhe brotaram dos olhos. Era ou um ator, ou um sofredor. Mas isso de ficar estanque após minha sugestão de indagar ao motorista, eu não pude compreender. Perguntar no lugar dele, eu não perguntaria. Se esse homem tivera a capacidade de dirigir-se a mim e pedir informações, e contar sobre seu maldito passado, inegavelmente poderia perguntar o que fosse ao motorista. A fala ele tinha.

Apesar de sua situação, verdadeira ou não, morador de rua ou não, vítima da maldade alheia ou não, fosse ele salafrário ou honesto, o fato que me avivou a memória foi que esse homem retinha consigo uma certa dignidade, e olhava bem nos olhos - característica já mencionada -, sem, no entanto, dar a impressão de que intencionava manipular pelo olhar, ou retirar desse contato visual qualquer favor para si, explícito ou implícito. Parecia mesmo que ele estava procurando fazer a tal "denúncia", e tudo leva a crer que ele cria piamente que isso pudesse ser realizado dentro da USP. Em qual faculdade, ele não sabia... A rua, o endereço, o número desse tal lugar no seio da cidade universitária, tampouco conhecia...

Eu não sei quem era esse homem de boné com temática de exército, à venda em qualquer camelô. Mas se um dia eu ficar lelé da cuca, ou me tomarem por algum lunático ou coisa similar, a imagem, a voz, a tosse e a pungência - real ou não - da vida desse homem, haverão de me vir à memória. Contra todas as minhas suspeitas, eu devo ter "cara de conversa", ou de ouvinte aberto, ao menos a algumas pessoas. Não é possível... não foi a primeira vez que alguém me contou sua história, sem nada pedir em troca... Exato. Sem nada pedir ou pegar em troca. Meu digno pagamento é calar, ouvir e aprender com os erros alheios.

Não posso senão me pôr a imaginar onde esse homem está neste exato instante, e o que faz...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Haicai Insubmisso (XVI)

Mãos e dedos
Nãos e medos
Irreconciliáveis.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Admirável Mundo Novo

A Aldous Huxley

Ferraduras nos cavalos
Focinheiras nos cachorros
A mordaça em nós humanos
Civilização. Bem-vindo!

Antes carroças
Hoje carrões
O mundo na roda
E a roda no homem.

Novas angústias modernas
Maus e velhos pesadelos
Quando a voz tão doce e terna
Não nos permite esquecê-los

Como o homem muda o mundo
Sem a si obter o mesmo
Basta olhar petrificado
Pasmo olhar e assim ficar

Mudo - quieto - teso - só.
Para então se recordar
De quando ousara sonhar
No firme aperto da avó

Naquele aperto de abraço
Olhos nos olhos... tão vivos!
Para afastar o fracasso
O tenro amor de um amigo

Sem gênero, raça ou cor
Amor sem pudor - Amor.
Como só podem os velhos
Por verem o invisível

Verem iguais as lições
Repetidas nos seus netos
E as mesmas reações
E seus gostos prediletos

Quão estranho este Universo
Refletido nesta Terra
Vêm e vão filhos submersos
A lutar sua própria guerra

Para alguns, muito difícil
Para outros - corriqueira
Escrita como um ofício
Cada letra à sua maneira

Para estes, sempre mística
Para aqueles, sempre asneira
Uma neta nasce tísica
Depois cresce uma guerreira

Outro, com tanta saúde
Sequer teve uma virtude
Vivendo à custa de todos -
Lábia, carisma e engodos.

Reflete a velha anciã:
Alguns são bem mais que os outros
Mais de vida e mais de alma...
Sempre são trapaceados.

Até um dia aprender
Esta mais dura lição
A quem querer ver: os olhos.
Quem os negar não terão

Quem os negar tentará
Espalhar sua cegueira
Para aqueles com maná
Engolirem a besteira

De que todos são iguais
Alguns menos, outros mais
Os valentes rechaçados
Acorrentados ao Cais

Para verem o mar infindo
E assim morrerem rindo
Crendo ter vivido tudo
Sendo prisioneiros mudos.

domingo, 8 de agosto de 2010

Vanilóquios do Armagedão

Fruto que nasce malandro
Também vai cair do pé
Não importa qual meandro
Vai cair como um mané

Se até isso fosse injusto
Nem viver teria custo
Nem morrer seria justo
Nem a vida existiria

Nem a luz teria o dia
Nem a noite brilharia
Onde o mal reinasse impune
Sem a força que nos une

Homem bom seria mito
Na vitória pelo grito
Coisa nenhuma haveria
Na total misoginia

Na total misantropia
Onde a luz não alumia
Sacrifício humano é regra
E a lei humana é cega

Cega-cega de verdade
Rima de passividade
Quando os fatos inventados
São a última verdade

Ser gente é futilidade
Na ausência de amizade
E o pássaro alegre
Vira rara raridade.

Vira mera vaidade.

sábado, 7 de agosto de 2010

Liberto

"Todos temos os nossos momentos de fraqueza, ainda
o que nos vale é poder chorar, o choro muitas vezes é
uma salvação, há ocasiões em que morreríamos se
não chorássemos."
(Ensaio Sobre A Cegueira, do benquisto, finado José Saramago)


***

Ah, não! Veja só quem veio
De seu campo de centeio
O jovem apanhador
Preso às rédeas do amor

Ah, sim! Olha quem chegou
Lutou e se libertou
Piruetas, traquinagens
E um punhado de coragem

Índio de instinto selvagem
Boca larga, riso sempre
Peito cheio de contente
Mente livre de bobagem

De ser maior ou menor
De ser melhor ou pior
De ser quem nunca será
De ser aquele acolá

Não se pode ser que é
Aspirando a ser igual
Não se pode nem ter fé
Se a fé é desigual

Cultivada no amplo templo
Onde Deus não somos nós
Presos soltos neste Tempo
No Universo de almas sós

Onde o amor é findo e morto
E o saber padece roto
Nossas lágrimas enxutas
Seco o sangue desta luta

Onde o fim não recomeça
Numa parva finitude
Onde a vida corre às pressas
Nada vale qu'eu me mude

E por mais qu'eu me emudeça
Não tirarei da cabeça
Antes morro a me esquivar
Deste rarefeito ar

O trabalho não liberta
A verdade nunca é certa
Valho mais que esta oferta
De uma vida após a morte.