Mais ri que sorri, ainda assim enregelado. Silente, suave, alazão - numa palavra, a tristeza e a razão. A dor de não poder peitar, só, o mundo; de ter de perder, sentir-se imundo. Ver-se fadado a perder a mulher que acreditou amar e amou acreditando. Não, não infeliz, mas um gladiador resignado - Bravo, ereto, mas sabedor da própria impotência.
Sem o diálogo, já não pode nada, torna-se besta enjaulada, remordendo-se, autoferindo-se por não poder contatar a alteridade, por sentir em si o vazio e perder o outro, sombra e reflexo de si. Não quer violência, mas o que pode querer? Não sabe maldizer ninguém - eis seu vigor e sua miséria. "A unidade na diversidade", "O complexo no simples", todos epítetos auto-explicativos acerca do outro, o outro como si mesmo.
O outro respondendo às nossas inquietações, o outro que reage conforme agimos - e de repente estamos no papel do outro, tudo mui sutilmente, de praxe tapeados pelo Real.
Sofrer é bom, dignifica. Mas, que modo, como é o idealizado "sofrer"? Há algum protocolo, alguma risca traçada no chão, um parâmetro qualquer? Será preciso chorar, entrar em convulsões, revolver-se freneticamente, ulular em lamentos, manter-se cabisbaixo horas a fio, transformar lar em casamata, enterrar-se no chocolate, pitar sem parar?
Não, nada disso. Por debaixo da pele do camaleão há sua substância. Mas pelá-lo em busca da recôndita essência o matará.
De que vale tê-lo morto e viva sua essência? Tão rápido o invólucro perece, o imo se esvai. De que vale?
De que vale ser o que eu sou, se nem isto é minha essência, e vivo em contradição? O que posso fazer para mitigar a dor de ser um hipócrita? Devo mitigá-la? Eis a questão. E se for melhor senti-la... Será que irei tão longe a ponto de mentir para mim mesmo, reconfortar-me em meu leito com palavras doces - balbuciadas em meu ouvido por ela, ilusórias (ela e as palavras), - como a mãe que mente ao filho em tempos de guerra?
Não - nem mais isso basta. "É preciso fazer algo" - mas não, há engano já na proposição. Para fazer é preciso antes ser. Não digo "ser alguém (na vida)", isso não retém valor algum para os nossos olhos, a despeito dos valores sociais.
Nem sou, nem faço. Rastejo. Culto, douto, mas um verme. Irônico, não? Risível? Capaz de ser. Mas um riso sem ar de graça, porque estou a falar de um ser que se decompõe em múltiplas facetas no decorrer dum único dia, desdobrando-se de tal maneira, que à noite não se encontra - nem à noite, nem à tarde, nem jamais. Encontrar-se ao acaso é objeto de relatos, não da minha vida. Já reinventei a mim e a meu passado incontáveis vezes (faço-o neste instante), toda vez que procurei e que procuro recordar-me do passado, eu o reinvento. Recrio os fatos pondo novas cores na paleta - fi-los graciosos para suportar tamanha desolação.
Nem uma pedra sequer ficou incólume. Tudo foi tirado e retirado, metodicamente, do lugar. Se houvesse ocorrido de maneira desordenada, a harmonia hipócrita da vida estaria certamente perturbada, e o caos se instalaria, com direito e pompa. Sim, se algo tivesse dado errado na alteração dos dados, talvez eu não fosse mais considerado um indivíduo mentalmente sadio. Sándor Márai suicidou-se com 88 anos, Kawabata com 72 - ou era 73? Gógol não chegou à quinta década de vida muito são; após dez anos peregrinando, viajor eslavo indefatigável, tomado por visões religiosas, matou-se à moda cátara, ou albigense, como conhecer melhor: inanição. Kakfa soube descrever - duramente - bem tal processo, em Um Artista da Fome. A única forma verdadeiramente corajosa de suicídio. Em Algum Lugar do Passado (1980, dir. Jeannot Szwarc) ilustra essa passagem lenta da vida à morte. Referências abundam, a quem interessar.
Há 13 horas
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