terça-feira, 5 de maio de 2009

Midnight I

Era noite. Estava eu em casa. Em qual recinto, particularmente, não me é dado recordar - mas estou certo de que estava no andar de baixo. As janelas estavam abertas, não sei por que tão tarde, e meus pais provavelmente já haviam ido se deitar - meu irmão, nem sinal de vida. Portanto, estava eu só.

Até aqui, nada especialmente inusual. Mas o fato é: eu não estava só - havia um cachorro de grande porte, negro, esbelto, longas patas e focinho delgado - azeviche mesmo, chegava a ser belo. Entretanto, minha cachorra é uma cocker spaniel, e esta também, pelo jeito, não estava ali. Mas nem por um momento eu deixei de tomá-lo por meu cachorro, isto é fato. É como se a Mel não existisse, e ele (inominado) estava exatamente onde deveria estar, leia-se, na caminha da Mel, na sala dos livros e da tevê.

Já foi dito que era noite - e eu, naturalmente, fui fechar as janelas para me deitar. Primeiro, segundo a ordem de disposição espacial dos cômodos, fui ao quarto do computador, adjunto à sala, para cerrar a fenestra. Fechada ela, voltei à sala, onde então o cão negro soltou o que eu discerni como um ganido de lamentação, breve, mas enfático (dado que me olhou como um humano, incisivamente nos olhos, mas sem se mover donde quedava) a ponto que respondi o olhar, e segui o curso dos meus passos em direção à janela; sem maiores sobressaltos, numa questão habitual de segundos, dei cabo da tarefa e volvi-me para o meu rafeiro de estimação. "Vamos", o chamado de praxe, ao menos no que tange à Mel.

Com decoro, gravidade e o que eu denominaria uma considerável carga de orgulho ferido - deveras estranho, notei, sem me afetar em demasia - levantou-se ele (suponho que fosse macho) e me precedeu em direção à porta, onde se instalou, pétreo, na soleira.

Com todo o respeito à originalidade do relato, afirmo que aquela figura negra como a noite (sim, Castro Alves), ali estanque e dirigindo-me solene o olhar, em sinal duma paridade existencial que até então não levara em conta, poderia ser um baluarte, um forte, um alcácer, não um mero perdigueiro.

Intrépido, mas no imo já um tanto abalado pelo caráter explicitamente incomum dos fatos, fui à porta, como já o havia feito tão digno e portentoso o melhor amigo do homem. A porta é precedida pela escada de madeira, que leva ao piso superior, e encontrava-se aberta. E foi ao passar pela escada que me dei conta do simples - porém questionável! - fato de que o veadeiro postava-se ali, barrando a minha passagem, e impedindo, resiliente, ainda que de forma não-violenta (pois imóvil), a minha típica ação de conduzi-lo pela outra porta, externa, que dá no quintal, onde ele dormiria, como de costume com a minha cadela.

Impávido colosso, quis eu ser. Segui à porta, passos firmes. Pelos fatos relatados, subentende-se que a luz da área estava acesa, iluminando-o em cheio no batente, mas não a mim, já que havia apagado tanto a luz do quarto como a da sala, e sequer acendera a do corredor, uma vez que a luz da área vaza no corredor, alumiando-o de modo a se enxergar ao menos os passos.

Ele não se mexeu. Era a viva símile do soldado na guarita do Q.G.: a paciência e a resignação solerte, as armas à mão. No que eu fui tocá-lo na cabeça com uma mão e empurrá-lo com meus joelhos, ele se sobreergueu nas patas traseiras, apoiando no batente da porta a pata direita dianteira, e a esquerda, com autoridade, em cheio no meu peito. Foi aí que afinal me deparei com o porte da criatura. Pedigree.

É óbvio que eu me indagava freneticamente por dentro: "O que SER isto?" "Há algo de errado?!?" - e coisas afins percorriam a caixa craniana em nanossegundos. A pressão da pata esquerda na minha caixa torácica era plenamente hostil, e o fato de que seu focinho e seus olhos ocorriam de estar justamente a centímetros da minha face, todos esses fatos relevados não mitigavam de forma alguma a situação.

Repeti, brusco: "Vamos!", apoiando-me como dava para empurrá-lo - desta vez - definitivamente para além do limiar da porta. Estava transido de medo, lógico, mas quem manda sou eu - é minha casa, e eu sou o bípede pensante aqui; se não venço na força maxilar, sobrepujo na coerção alimentícia, em virtude de ser eu quem te reabastece dia a dia com comida, água, quem te fornece cobertores no frio, e mantém tua casa limpa. Tuteava mesmo, se apenas no interior da cachola.

Ah, pujança canil!! Não é que me empurraste com o punho dum policial-estandarte, no meu precioso plexo solar?! Pois foi assim. Nada verossímil tamanho gesto humano, mas o vigor da patada sobre os pulmões me trouxe de volta à realidade hierárquica, levando-me de encontro ao segundo degrau da escada, onde fui posto em meu lugar. Irônico, mordaz - sei bem o que transpirava daquela fantástica realidade, que não deixou de sê-lo por ser fantástica. O fantástico não exclui a propriedade Real e substanciosa dos fatos (oníricos? Quem sabe?).

Fiquei na miúda, mas isso não bastou. Tão rápido me forçou ao degrau quanto veio me vigiar numa proximidade pouquíssimo agradável, e, no mínimo, temerária (Ó besta! Tu que me afrontas no molde canino, sendo humano, tu, Tu - tens o domínio!). Emiti um grunhido de insatisfação, medo e morte (não era isto a Sina, que era então?).

De súbito, oiço três leves batidas no taco de madeira do piso superior, que se repetem, o que também alerta o negro algoz. Pensando ser meu irmão (Ó irmão celícola! Vieste me salvar na hora oportuna, em que me vejo impotente e subjugado!), revesti-me outra vez de viço (não estou só! não estou só!), empurrei a fera, mas esta então tomou minha mão direita entre as presas, e só não a mastigou por capricho - mas fez questão de premi-la a ponto de eu (tentar) grunhir de novo, para logo descobrir que estava sem voz; o máximo que saía não era mesmo audível.

Cogito ergo sum - eis a condição, dos humanos pra riba. Tamborilei com os dedos da mão sinistra na madeira do degrau acima, nada sabendo de código Morse, não era preciso. Ah, esperança! És a última a morrer, e morres comigo! Só então auscultei passos no piso superior - alguém de fato me ouvira! Empunhei-me a esgoelar: "Socorro!", mas nem voz, nem nada, além dum parco, pouco, azeitado movimento das engrenagens vocais. Forcei-as e forcei-as, e, numa resposta ameaçadora, o Cão apertou a mordedura já humilhante e dorida na mão direita, mas continuei forçando as cordas e batendo mais e mais forte a mão livre no degrau - conseguindo enfim sibilar um: "Socorro!".

Fiat lux! Let there be light! Acende-se a luz da escada, os passos se fazem soar, e eu distingo às claras minha mãe, pondo a cabeça no vão do balaústre, que indaga: "Onde?", ao que eu juntei toda a força para gritar (mas só saiu um murmúrio): "Aqui!".

Ah mãezinha! És tu quem vem me salvar! Não sabes quão bela é tua imagem, algures no céu! Não, mãezinha, teus filhotes não estão esfaimados, mas tu não acreditas... Não, mãezinha, teus filhos não passam frio, mas ó...! Já trazes o agasalho! Ah, mãezinha, ah, mãezinha, neste orbe e nesta urbe ou alhures - serás mãe e serás mãe, e transbordarás de sacrifício, sempre! Somente teu amor é incondicional e sem igual! És tua a Mão, mia salvação! Oh, mãezinha, vem, que necessito socorro e amparo e teu embalo, nada mais!

Mancando na perna direita, e soltando uma exclamação baixa e distinta, ela (a Luz!) sumiu de repente de vista, mas logo discerni seus passos auspiciosos dirigindo-se à escada, e então... sim! os passos pausados nos degraus! Até o cão diminuiu de tamanho e relaxou a mordida, não a ponto de soltar, mas era o derradeiro enunciado da esperança aquela vinda materna, é só o que importa!

Mas os passos se interromperam e de súbito a figura materna desvaneceu na curva da escada - não a vendo mais (desaparecera!) e tomado pelo mais pungente terror já vivido, berrei com tudo o que me restava, repetidas vezes, num crescendo assustador:

SO - COOR - RO! SO - COR - RO! SO - CORrr...! So...

Era noite.


Nada mais.

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