quarta-feira, 27 de maio de 2009

Ela

No bonde encontrara aquelas pessoas de sempre. Era pouco mais de meia-noite, e eu vadiava pelas ruas de São Paulo, após me embebedar. Era o ano de 1907, e eu tinha então 25 anos. As calçadas estavam frias, como que pesarosas. Cada passo ressoava e o vento, nas minhas orelhas, sibilava.

A valise na minha mão direita apertava-me o passo, e a lua cheia resplandecia no negrume da noite. Minha pequena casa ficava a duas quadras dali, na Avenida Tiradentes. Como era fútil passear nessas horas ermas da noite! Chegando em casa, abri a mala. Dentro estava todo o espírito do meu ofício.

No dia seguinte, voltei à casa onde investigava certos acontecimentos. Era uma casa sombria, mal-arejada, erigida sobre uma calçada de mármore preto. Era apavorante, temerosa. Ficava na curva de uma esquina, cujo nome me foge à mente agora.

Naquele castelo reinava um imperioso silêncio, um silêncio de morte. Um silêncio de terror. Ali empregava em frenesi minhas faculdades, perspirando, tremendo frio nas extremidades. Cada canto, cada almofada, cada cortina era objeto de minuciosa observação. Um marricídio ocorrera nessa sorumbática residência, e eu não podia me esquivar dos fatos.

Procurava-se em ritmo alucinado a filha, desaparecida. Sim, pois os indícios nos faziam crer na possibilidade dela retornar para extrair os últimos pertences de sua malograda mãe. Portanto, deixamos aquelas relíquias intactas, como iscas.

Após o fim da manhã, quando o sol estava a pino, meu chefe mandou-me dar uma volta, trabalhava demais, dizia ele com o cenho carregado. Resolvi levar a sério a admoestação e fui correndo a esmo, até um parque deconhecido. Era o Parque da Luz, saberia posteriormente.

Sentei-me num banco de madeira com encosto, reclinando minha cabeça ao alto a fim de melhor ver os pássaros. Adejavam, brincavam, saracoteavam, sururucavam, pipilavam... era uma delícia sinestésica. Mas meu relaxamento foi cortado de forma abrupta. Vinha uma senhora já bem idosa, com cerca de 75 anos, rosto enrugado, cabelo encanecido à chanel, roupas de frio. Estranho. Era um dia de sol forte. Disse-me bom dia e começou a falar de si, muito melancolicamente.

De súbito ergueu-se e me pediu que a acompanhasse. Estranhou-me pela segunda vez, mas agora por causa de seus braços fortes e seu andar desenvolto. O que ela faz? Pois, conduziu-nos até uma região que eu pensei reconhecer. Sua voz foi tornando-se rouca, sua expressão facial assumiu feições de maldade. De repente,... percebi. Por que não desconfiara? No parque a bela senhora pediu-me que a deixasse no primeiro portão depois da curva, ali residia. Minha cabeça dava voltas e voltas, emaranhada, embaçada, meus sensos embaciando-se, os arredores rodopiando, rodopiando, rodopiando... eu não reconhecera aquele lugar terrível. Como fui parar no porão, não sei. Uma sucessão mecânica de passos, algum encanto às esconsas, uma tática de hipnose, vudu, catimbó. Algo me levara ali, algo me prendera, me guiara, me enganara. Fora um títere, uma marionete, um sujeito passivo. Do outro lado do mundo pessoas morriam de causas naturais, negros, brancos, amarelos, vermelhos, não importa. Outros morriam assassinados. Outros abduzidos, subtraídos, simplesmente sumidos. A lua os engolira, consumindo-os por partes, degustando o filet mignon. De algum modo as pessoas morriam, eu não podia negá-lo. E será que elas esperavam a morte? É capaz que não, aliás, bem provável que nem sequer tinham pensado na possibilidade de morrerem no mesmo dia em que haviam acordado tão bem. Estava tudo perfeito, tudo rotineiro, como de costume. Não houve empecilhos, manobras arriscadas, mas ... elas simplesmente haviam se esquecido de sua condição de mortais.

Isso eu também esquecera. Mas na hora tudo veio à tona, num burbulho voraz, meus olhos se inflamaram. Eu resisti. E somente isso vale. Ter vivido.

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