domingo, 24 de maio de 2009

Ninguém se mata


"Ninguém se mata. A morte é destino. Só se pode aspirar a ela." *


Se tomada de forma literal, a primeira sentença já não faria sentido. Ora, não há o suicídio? Mas parece ser exatamente a esse fato que se refere Cesario Pavese. Pavese foi encontrado morto, com um único exemplar de Diálogos com Leucó ao seu lado. É algo a se levar em conta, certamente. Era, pois, a obra sua que mais lhe falava ao coração, à mente. A tragédia, os temas saturninos, sobrecarregos de dor, da inexorabilidade do fadário.

Aspira-se à morte, como ao ser intangível. É inexpugnável, é inatingível. Quando houver de vir, virá. Que escolha permeia o processo vivente? Que estranha vontade imprime vitalidade ao homem para seguir vivendo? Será o anseio por conhecer-se - e descobrir-se - dos invólucros da mortalidade, e assim espiar por dentre as fresta do infinito? E o destino, por sua vez, que álgida mão é essa que se assenta imponente sobre o homem?

O homem. O que tem o homem? O que é seu, verdadeiramente seu? Respondo: nem todos os homens têm algo plenamente seu. Aquilo não é dado, mas adquirido. Não com dinheiro, não. O homem que tem aquilo não carece de ter vida longeva, de achar em vida Eva, tem ele a luz em meio às trevas. Tem ele tudo. Tudo, tudo. Pode ser cego, surdo, mudo, mas, tendo aquilo, ele tem tudo. Tem à mão a mezinha que desfaz a solidão.

Por que o silêncio é tão caro ao homem? Por que, de todos os momentos recordados, destacam-se nitidamente as ocasiões em que, sozinho, encontrou o homem o mundo, seu mundo, mergulhou a fundo... e encontrou a si. Esse homem crê em algo imortal - esse algo, bordando a imaterialidade inteligível, é o resguardo da única parte indivisível ao homem. Nada, nada há de deter um homem que se conhece, após todas as vergastadas que o fizeram antes se curvar e suplicar por socorro. Nada há de balouçar o bambu flexível, mas flexível apenas na superfície; a força, inquebrantável, que se reveste de fragilidade, demonstrando-se nos instantes férreos da necessidade.

Será isso o homem, então... o perene dentro do perecível, as cinzas imorredouras... algo perdura, obdura, persiste e procura. Talvez não a cura, mas sim o veneno do êxtase. O alento à percepção. Busca isso o homem então... o irracional e a razão, a maçã de Eva, o pomo de Adão, a continuidade na solidão. É este o badalar do sino, que remonta ao homem sua infância: quando primeiro sonhou, talvez acordado, em devaneio, porém daí a faísca que irrompe e o traz à tona. A faísca faz-se fogo, queima e chamusca, no curso da vida, todos que ama. Ternos sentimentos, tenros acalentos, e de todos, todos os momentos, restam senão o quê? Meros fragmentos.

É por isso que deve desiludir-se o homem? Não. O homem é o baluarte. A casamata derruída que se reconstrói. E nisso há esperança. Pois não, a esperança: incandescente flâmula que dança, bruxuleante, ante olhos impávidos. Olhos humanos. Cegas órbitas que apalpam e delineiam a realidade e o derredor. É tudo falso. Nós o sabemos. Sabemos e cremos haver um céu azul, por detrás dos cirros plúmbeos e tempestuosos. Provamos do amargo para distinguir o doce, chafurdamos no mal para redescobrir quem éramos. Quem éramos... poxa! Éramos alados, mas de que vale afogar-nos nessa mágoa? Pode-se fazer algo a respeito? A despeito do etéreo cintilar que perdemos, por optar pelo baú de ouro da fisicalidade sensual?

Uma decisão tomada em grupo... nem sequer me lembro de ter dela participado. Aliás, nem sequer me lembro do que restou ontem na panela do jantar. Ou talvez me lembre, e me negue como subsídio, reconforto - é mais suave, bem mais suave, fingir não me lembrar.

Álgido e suave, como o ermo e frio dezembro. Que já se foi e não será já mais.

*Sárpedon, A Quimera (Cesário Pavese, in: Diálogos com Leucó)

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