quarta-feira, 27 de maio de 2009

Iracema Renasce

Era um belo dia de abril. Iracema andava por entre as árvores, arbustos, flores, animais. Graciosa, pisava com destreza a alcatifa verde que acolhia seus pés. Tão virgem era a floresta que a moeda de cobre jamais conhecera. Espadas forjadas também não.

Lábios de mel sabia o caminho como quem, na urbe, se guia por nomes de ruas e cruzamentos. Era uma verdadeira piguara, senhora do caminho; aliás, quem, além dela, palmilhava a floresta como quem perscruta a palma da própria mão?

Naquele dia a uiraçaba pesava-lhe imensamente na espádua dorida. Ao galgar uma árvore no dia anterior, batera com o ombro num rijo galho, que sequer se movera. Seu osso sim.

Feixos de luz atravessavam aleatoriamente os vãos por entre a verdura das copas dos mais altos ramos. O dia estava tão húmido que se viam as gotículas, a transudação das folhas. Elas suavam, perspiravam, gotejavam. Caminhava sozinha, olhando, sentindo, escutando. O cheiro dos predadores da floresta lhe era familiar, e ela de cor sabia cada rio onde podia se banhar.

A pele de um tom avermelhado, as madeixas negras como as asas da graúna, e o porte esbelto e ágil, talhado em feminilidade, contribuíam para deixar qualquer homem embasbacado.

Seu olfato, porém, escassas vezes se enganara. E agora a aproximação da jaguatirica ela percebia. Só era difícil lutar pela própria vida, por isso o coletivo era uma questão cotidiana para a vivência no selvagem. Todavia, ela estava só.

Um estalido ecoou, e ela deitou-se a correr. Cada folha, cada galho, raiz e ser vivo que pisava não escapava à sua atilada percepção. Ouvia a pequena onça em seu encalço, mas o vigor de seu corpo jovem igualava-se ao da mente: aguentava correr um dia todo, brandia o tacape como qualquer varão, disparava setas sem errar o alvo, subia em árvores como o guaraciaba vence escadas.

Os marcados pés, acostumados às feridas, incessavam, estava a serviço de uma senhora que via a dor como companheira de veredas. Entretanto, o ombro incomodava-a na disparada, e cada impacto mais forte reverberava-lhe pelo corpo todo. Foi assim que, diminuída sua atenção aos pormenores devido à dor, tropeçou num cômoro de folhas e galhos, quiçá o estopim de uma coivara.

O vigoroso corpo nu ralou-se num chão áspero e frio. Escoriações e filetes de sangue. Ela semiabriu os olhos e nao conseguia acreditar no que via: uma grande clareira, um céu pardacento, ocas cinzas de variadas cores, algumas abeirando-se do céu, uma terra nua insensível à pele, pessoas de tez branca como a seiva que corre dos troncos escarificados. Poucos andavam a pé, como ela, e nenhum estava despido. Estava todos esquisitamente vestidos em peles finas, de nenhum animal que ela vira em vida. Estavam todos com pressa, ela notou. Os pés aqui não andam descalços também. Pessoas de tez negra andam em calçadas diferentes das de tez branca. Quando cruzam o caminho de um branco, prostram a cabeça ao peito e sibilam palavras baixas em uma língua que não me diz nada. Quadrúpedes cujos lombos encontram-se na mesma altura que minha espádua, de tez branca, negra, marrom ou pintados, puxam árvores mortas calcadas em estruturas circulares, movimentando-se. Sobre eles sentam-se pessoas, objetos, conversam e são deslocados sem precisar mover um dedo. Máquinas barulhentas seguem trilhas delimitadas. Rápidas. Soltando fumaça ocre.

Onde estou? pensava. Qualquer transeunte jamais se aperceberia que, sob seus pés, encontrava-se uma silo remanescente da ida primeira guerra mundial. Muito menos desconfiaria que funcionava ali no suposto lugar abandonado uma casamata. Ou seja, tendo a aparência de uma casa, aquilo guardava um verdadeiro arsenal. Um bunker. Uma casa falsa. Uma casa falsa que permitia o interno ver o mundo externo com um amplo panorama, quase fílmico, holywoodiano.

Era ali que ela se encontrava, em meio a tílburis, carroças, carros, numa cidade que votara em plebiscito pelo regresso, pois as cicatrizes daquela guerra custavam a fechar. Mas a discriminação não terminara com a volta dolorosa ao passado.

A casamata, infeliz reminiscência de uma beligerância que sacrificara peões para satisfazer o apetite de jogadores invisíveis, tornara-se simplesmente uma estrutura alheia à vida daquela gente. Ninguém entrava ali, e quando e quem entrava, saía não mais, pois os dédalos de corredores subterrâneos, cômodos e esconderijos, eram de endoidecer a mente mais sã.

Inexplicavelmente ali se encontrava um portal do tempo, ativado por alguma disfunção; funcionava transportando um indivíduo de uma civilização ou comunidade de um passado que já fenecera ante ao progresso hodierno da humanidade. Ela topara com um cômoro, e este, assim como outros objetos espalhados pelo passado remoto, era um ativador do portal.

Iracema mirava cada movimento exterior em êxtase. O bruaá, a balbúrdia, o quiproquó, o vai-que-não-vai, vem-que-não-vem, o blábláblá. Que cenário inadmissível, que ar irrespirável, que céu cinzento, que terra árida! Cada um andava como se os outros com quem trombava na rua não existissem. Eram sombras. Cada qual alheio ao seu semelhante, e o coletivo não era senão uma massa disforme, incongruente e desprovida de qualquer valor para as criaturas que o compunham. A sociedade como totem e camisa de força.

Tudo isso retinha os olhos castanhos puxados de Iracema, quando o solo sem mais nem menos cedeu e tudo que a envolvia ruiu. Estava de volta à sonoridade da floresta, ao nhenhenhém das aves, ao ciciar, ao som que sempre lhe acalentara o coração. Adeus, admirável mundo novo, suspirou em sua língua natal, o nheengatu. Adeus, seres extravagantes, almas errantes. Este é o mundo a que pertenço. Este é o mundo no qual a sonoridade incessável e incessante da natureza é, ao mesmo tempo, lindo silêncio. Adeus.

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