segunda-feira, 11 de maio de 2009

Fad'jal (Safi Faye, 1979)

Tarsila do Amaral - O Vendedor de Frutas (1925)

"Na África, um velho que morre é
uma biblioteca que se queima."
(
Amadou Hampâté Bâ)

"Quem trabalha é feliz. Quem
não trabalha, riremos dele.
É assim em Fadial."
(ancião da comunidade)


Neste filme da diretora senegalense Safi Faye, busca-se retratar - e dessarte resgatar - os costumes, as tradições, a oralidade duma aldeia, a grande família de Ibou Ngong. Retrata-se, i.é, resgata-se a obliteração de uma sociedade anterior, calcada na manutenção hereditária da própria história, por meio da faculdade rapsódica de se propagar a tradição, contando-a aos novos - de forma a não olvidar, e assim valorizar, o registro de todas as gerações que os precederam. "É assim em Fadial."

Mostra-se, numa instância facilmente memorável, uma grávida dando à luz seu filho, mas via um processo um tanto singular - ao menos a quem se habituou às macas de hospital e ao parto cesariano. Pois essa mulher, acompanhada doutras duas, num cômodo de paredes de barro e chão terroso, vai emitindo uma cadência quase equidistante de "ais", baixos, e só constatamos sua gravidez após alguns minutos dos tais gemidos, soltos como que estivesse saudando outrem ("oi", "oi", "oi",) repetidas vezes. E, de súbito, pondo-se de cócoras, irrompe a ênea e diminuta figura humana, chorando - estupefaciente, pois mal a mãe havia prostrado-se agachada por 10 segundos, sequer! Chega-se rápido à ilação que aqui se trata dum povo feito à dura lida e ao labor, ao Sol, ao cansaço, à dor. Relevo que ela não grita em momento algum - são apenas leves, mesmo discretos, curtos, "ais". Fazendo um corte ao dedo, eu seria capaz de emitir um "ai" muito mais alto.

Passado esse ponto, deparamo-nos então com toda sorte de trabalhos manuais, levados a cabo em uníssono. Ora são as mulheres separando o sorgo da parte não comestível, inclinando, sobre a cabeça, cumbucas cheias do grão, e inclinando-as, de tal forma a dispor da ação natural do vento, que dispersa a matéria menos densa para longe, caindo aos pés somente o próprio sorgo. Belas cenas em que a natureza parece estar em conformidade com a inteligência humana, ou esta àquela (para não cair em antropocentrismo velado), tamanha a eficiência da labuta. Ora são os homens pescando com redes ou arpão, ou trabalhando a madeira. Vemos uma espécie de "arauto", que vai dum lugar a outro na aldeia fazendo percutir seu tamborilete atado ao ombro. Anuncia "as novas" e segue imprimindo ritmo à voz, soando o instrumento com uma pequena baqueta e com os dedos longos e livres da outra mão.

São eles os retratados e os intérpretes de sua história, fazendo frente às lentes nada mais nada menos que prosseguir em suas tarefas diárias. O respeito, beirando a veneração, destinado aos anciãos da aldeia, é um aspecto especialmente cativante. O mais velho contador de histórias, dotado, apesar dos anos diuturnos, dum belo sorriso e saúde inquestionável, tem ao derredor de si mais d'uma dúzia de infantes (~ 4 aos 15 anos), ouvindo ávidos. Isso se dá ao pé dum gigantesco e sombreado baobá, de raízes tabulares protuberantes, de impressionar. Fazem-lhe perguntas, às quais ele responde com detalhes. À medida que alcança as "vírgulas" da história, o elegante ancião anui e meneia com a cabeça, revelando que, nos bastidores de sua memória facunda e prodigiosa, há uma série de elos mnemônicos, conectando um fato ao outro, permitindo uma uniformidade narrativa.

Mas são tempos de reviravolta - 1977, e o Estado decreta uma medida conforme a qual as terras passam, da pertença as esses povos, à propriedade do País, que nutre interesse em loteá-las, fomentar o turismo, modernizar-se como o restante do mundo, isto é, "superando" os arcanos e totêmicos substratos linguístico e cultural, os "Pangol" (ancestrais deificados, cultuados em maneira bastante análoga à xintoísta), os "Bobos" (xamãs/pajés/feiticeiros) - ou seja, esmagando sem remorso os elementos constituintes duma cultura local, estabelecida no decorrer de séculos. Imagine agora o "progresso" na figura d'um imenso buldôzer, talvez o mesmo buldôzer israelense que passou por cima da ativista norte-americana Rachel Corrie. Temerário, não?

O filme, portanto, ancora-se numa perspectiva antropológica a-dogmática, justo porque não revela a pretensão de fincar um juízo de "certo" e "errado". É no decurso das cenas que o embate entre modo capitalista e modo silvícola de vida aflora à superfície, na discrepância de opinião entre a geração octagenária e a dos mancebos frustrados por se acharem entre a cruz e a espada - a cruz da religião monoteísta, trazida nos gérmens civilizatórios, e a espada que outorga estatutos sobre a propriedade de terras, em nada favoráveis a tradições a duro custo mantidas, mesmo assim em vias de extinção.

O ponto alto da película é que esta não soçobra numa mensagem de desesperança e desespero, mesmo pondo, inevitavelmente, a indubitável realidade de que mudanças estão por obrar nos meios primitivos de existência e subsistência remanescentes no planeta. É um processo irrefreável, que, caso não acabe por sobrepujar a cultura antecessora em sua totalidade, há de suplantá-la em uma vária gama de aspectos.

Infiro que a cena final traz ao lume a mensagem que Safi Faye intencionou passar. O ancião aedo, isto é, o exímio relator, caminha a sós até um magnânimo baobá, perante o qual roga, sobreerguendo cabeça e braços: "Pangoool!" (Ó, ancestrais!). Deixara de mencionar que o brônzeo e mítico rapsodo é a réplica mais perfeita de Van Gogh, com seu chapéu e cavanhaque simetricamente análogos aos do pintor holandês. Imagino Van Gogh negro - não seria uma pinta diferente.

(ei-lo) (tire as suíças, e está pronto o retrato!)

É inefável a sensação que dá aperceber-me da coexistência tão conflitiva do velho e do novo; nenhum sendo maior ou melhor, visto ser inatingível a imparcialidade. É simplesmente impossível (um indivíduo) trazer (em si) a rúbrica de dois modos amplamente distintos de vida, de forma a poder julgá-los com equidade, sendo ambos mutuamente anacrônicos.

Sou imensamente grato às cine-sessões gratuitas do CCSP, que tanto ensinam.

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