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terça-feira, 21 de abril de 2009
Asura, a Deusa das Intrigas (Yoshimitsu Morita, 2003)
Fui conferir a Mostra de filmes japoneses no Centro Cultural São Paulo, e o que era pra ser o primeiro de muitos, tornou-se o primeiro e último filme que consegui assistir. Sem remorsos - peguei um que me agradou suficientemente para dispensar dorzinhas de cabeça por uma ânsia - demasiada - humana de querer tudo.
Faz doze dias que vi Asura - A Deusa das Intrigas (Ashura no gotoku), algo bastante inusual para mim, que após assistir já corro e me debruço sobre o teclado ou sobre o caderno, em busca dos pensamentos que irromperam encadeados no decorrer do filme. Um detalhe que me surpreendeu bastante foi o suporte do filme, que exigiu duas trocas, isto é, não era digital, mas 16mm.. É interessante uma parada obrigatória para troca de rolo, porque Asura é um longo filme - 135 min. - e eu sou um bom apreciador de intermezzos, para esticar, relaxar, e poder refletir melhor sobre o que se passa defronte meus olhos e em derredor dos meus ouvidos. Enfim, dispenso produções que não vou nominar e que só visam a venda, ação desenfreada e estúpida sucessão de diálogos, estupidificante o resultado, estupidificada a platéia. Largo mão desses filmes brochantes para quem aprecia mais do que um coração batendo rápido e um cérebro vazio.
Asura é um relato candente sobre os efeitos da infidelidade numa família, esta, em particular, composta por quatro filhas, todas experientes no desamor. A mais nova é traída e fecha os olhos, pois ama sem barreiras e prefere olvidar o testemunho e expulsar a outra antes de maiores desavenças. A segunda mais nova é extremamente recatada, algo recendente à imagem nipônica tão depreciativamente generalizada, e apaixona-se por um tipo engraçado, amoroso, bastante singular. A terceira tem relações com um homem casado, o que é um ultraje para as demais irmãs, exatamente por elas terem estado no papel da esposa desprezada. A quarta é, para mim, o caso mais curioso: o espectador (que se julga) esperto, terá certeza de que ela é traída, mas nada, absolutamente nada, denotará tal precisão no julgamento, apesar de todos os dedos apontarem para aquilo.
E é claro, tais detalhes não interferirão em nada. Na verdade, as surpresas do filme são completamente outras, e as traições vão sendo relegadas ao plano de fundo, sendo substituídas, belamente, pela catarse. O expurgar do vil pensamento, do mal-querer, da maledicência que se forma cristalina no interior, e tão auto-destrutiva. Perdoar? É possível? Mas até que ponto abrange o perdão? O quanto podemos suportar, o que se pode, de fato, perdoar?
A um nível profundamente pessoal, tais perguntas são a chave para compreender o filme em sua eloquência, moldado pela cultura japonesa, tão distinta em diversos pontos. O que me emocionou foi a proximidade que as filhas mantêm com a mãe, reunindo-se periodicamente para o preparo de um prato gastronômico envolvendo a acelga (não me lembro o que era). E vendo-as todas unidas, ali, naquela comunhão, naquele trabalho em equipe, familiar, compassado, harmonioso, fiquei absorto pelo o que meus olhos, talvez algo além deles, capturaram: o amor, o conhecimento mútuo, conversas que são a pedra de toque para unificar indivíduos consanguíneos. Não basta o "mesmo sangue" correr nas veias, é preciso deveras mais! E foi uma cena no mínimo admirável, porque eu não poderia ter visto quatro irmãs mais diferentes em sua rotina, em seu modo de ver o mundo, em seu agir com o mundo.
Haha... é um filme que embasbaca! De verdade, o diretor reuniu um fortíssimo drama à comicidade, mas de uma forma tão viva, tão verossímil, que nem desconfiar eu pude. Está ali - a ambiguidade humana, as dissenções injustificadas, as rixas intrafamiliares, a aceitação dolorida de um fato amargoso, o desespero, o ódio, a perda do ente mais querido por nós. E de repente uma brincadeira naquele momento de derramar lágrimas faz-nos rir - apesar de tudo, apesar de todos.
É um filme dotado do que eu chamaria de singularidade dramática. Jamais poderei assistir a todos os filmes do mundo, nem ler todos os livros, nem ver todas as peças, nem ir a todas as mostras e exibições e exposições, nem conhecer todas as línguas, nem visitar todos os países (somente o último estritamente por questões financeiras). É melhor deixar isto de antemão muito claro e bem exposto.
Mas o que eu nomearia 'singularidade dramática'?
Bem, é um filme que foge aos padrões, por retratar uma determinada realidade dramática sem precisar recorrer às expectativas da platéia, da claque, daquela que tão avidamente aplaude como depreda. A tão temida turba. Foge também ao padrão americano ou europeu, o primeiro ainda mais dominante, nos aspectos de encadeamento de fatos e composição da tessitura da trama. Prescinde de encaixes firmes, imóveis, intransigentes, entre o bem e o mal - põe de lado essa visão mazdaísta do mundo - tão servilmente abraçada na "Guerra Contra o Terror", na política Bush-Obama, nos personagens fúteis de telenovelas, tão pobres e irreais, por serem ora o ideal da virtude, ora o epíteto da maldade.
Mundo nosso composto por meio-termos. Os pícaros são aberrações...
É um filme pitoresco, digno, uma pincelada pungente sobre a vida pós-crises, pós-depressões, pós-desilusões, colorido pela ótica japonesa, apreciadamente sábia em sua tradição meditativa - e em matérias de amor... haahaha...
Leia James Clavell, Xógum, e você verá porquê...
Conhece a mulher do tapa na pantera? "Fumo um, tomo um chá"?
Pois te direi minha política vivencial, extremamente enriquecedora: leio um livro, assisto a um filme, e vice-versa. Porque além de um bibliófilo, eu sou um cinéfilo. No que tange a bons filmes, a produção poética não se afasta, nem se sobrepõe. Algumas películas são poesia, pura poesia, anáforas, metáforas, cadência, ritmo, flashbacks, o círculo hermenêutico se perfazendo e fazendo-se perfeito. Vários pipocam na minha mente neste momento, porque é verdade - assim como tem livros que eu não leio nem lerei, tem filmes que se enquadram imediatamente nessa categoria, e há tanto por ser lido e por ser visto que verdadeiramente me interessa, que não há tempo para arrependimentos pueris.
Há a vida, e ela é bonita, sim.
Veja o que fiz com Spartacus (Stanley Kubrick, 1960), mais de um ano após tê-lo visto. É o inconsciente, fornecendo a lenha até que o consciente enxergue a necessidade de queimá-la e infundar-nos na abundância de seus vapores e de seu calor embrionário.
Haja. Fico por cá. E não deixe de bater o olho em Spartacus, filme que engendrou O Gladiador (Ridley Scott, 2000) - a temática é evidentemente a mesma. O povo reprimido, uma hora desperta - e os tiranos veem sua vez enfim chegada.
Eu sei que não reproduziria nada igual, caso perdesse o original... em particular a estrofe final.
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