terça-feira, 28 de abril de 2009

Saiba, pois

Qual é minha jaça...
Ser humano
Qual é minha raça...
Ser humano

Quem sou eu?



Sim, você pediu sinceridade da minha parte, e eu fui terrivelmente sincero. Mas o fato é que eu não pedi em hora alguma semelhante sinceridade de volta, me compreende? Se eu fui fraco o suficiente para corresponder à sua sádica vontade, eu não esperava de maneira alguma que você me fustigasse com palavras, arrancando-me o pêlo e a razão.

Fosse uma obra romanesca, eu estaria, deveras, infinitamente agradecido. Ma é, no entanto, a álgida realidade que me vem bater à porta. Não, não se espera de um mortal humano levar açoitadas em lugares públicos, ou que fossem privados. Pois ser tratado como um cão não me apetece - nem a Diógenes! -, como não apeteceria - disto estou certo - a nenhum confrade meu humano.

Uma vez que com seu chicote você vergastou minha humanidade, seria muito de você exigir um tratamento que lhe coubesse. Largo de lado, e passo muitíssimo bem, sem qualquer empreendimento vingativo. Saiba que Gandhi, com quem jamais falei, ensinou-me a não-violência. E é agora que me volvo às escritas desse mestre para reencontrar minha alma. Você me destruiu - e só me resta reedificar o espírito.

Hei de procurar no Novo Testamento e no Corão, em Gandhi e Paramahansa Yogananda, toda a auto-dignidade que tuas palavras venenosas e coleantes me surripiaram. Hei de invocar a homérica Odisseia e a mítica Ilíada em busca de mim mesmo e nada mais. É demais querer saber o mundo sem compreender minimamente, de modo sadio, a minha própria solidão.

Não posso te julgar. Jesus, seja ele quem tenha sido, legou-me as sábias palavras: "Não julgueis e não sereis julgados" (Jo 11,45-56). Que atire a primeira pedra quem nunca julgou o próximo, pois eu não serei virtuoso a ponto de arremessar pedregulho algum. Só não quero mais julgar. Só. E é o bastante para uma vida inteira de auto-observação rigorosa e imparcial. Eu peço imparcialidade de mim mesmo, e sei o quão anátema eu me torno dentro duma sociedade mesquinha, auto-gratificante, auto-compassiva, vil.

Os meus valores são diversos dos seus. Eu li A História do Olho, de Georges Bataille, com 16 anos, e senti-me profundamente enojado. Você redarguiu que eu era imaturo. Forço-me a discordar: eu era, pelo contrário, maturo o suficiente para compreender a torpeza dum mundo orquestrado pelo orgasmo do sexo como forma ulterior de auto-gratificação. Me dá ânsia saber que o ser humano lê jornais para poder fornicar de consciência limpa e imperturbada - não houvesse o pré-requisito à guisa de intelectualidade, seria até pecaminoso morder a maçã de Eva.

Você me diz que amor e sexo para você são coisas distintas. Pois são - e eu escolho sem um piscar de olhos o amor. O amor é a luz, que é o conhecimento. O conhecimento é a luz, que dá vazão ao amor. O mundo não pede sexo, minha alma não pede sexo. Minha alma pede antes amizade e aventura, e eu prefiro morrer um gladiador celibatário. Perceval. Não me torno mais útil a ninguém com sexo - menos ainda a mim mesmo.

Uma vida regrada pelo prazer é uma vida inescapavelmente fatal. Jesus só é símbolo do divino e do esotérico porque se absteve de determinados hábitos tão demasiadamente agradáveis a seus conterrâneos. E só ascendeu aos céus, que quer que sejam os céus, mas estes nunca deixarão de significar algo mais etéreo, em virtude de sua auto-abnegação, castidade e pureza de alma. Ele pôde, ele quis, ele soube, e sentiu em si o dever. Madre Teresa e Mohandas Gandhi depreenderam muito de seus ensinamentos, possivelmente mais do que 94% da população atual deste mundo. A cifra não é exacerbada - nos 6% eu já excluí toda a população estimada de psicopatas, porque é preciso ter ao menos alma para sacrificar os prazeres do corpo.

Esqueço-me que você nada sabe do sufismo. Pois é, só então você compreenderia que eu não estou falando de valores exclusivamente cristãos, católicos, evangélicos, como lhe soer denominar. Estou a falar de uma tradição de celibato e procura da alma que delineia todas as religiões em sua origem. O celibato como coroamento da virtude e da busca pelo Graal. Sim, todos os nobres cavaleiros do Graal são castos e não abrem mão de atitude sacra perante tudo e todos. É a cabeça de cima que sempre me aconselhou em tempos de tormentas. A de baixo só me trouxe problemas. Lancelot não pôde alcançar o Graal, Guinevere era sua deusa, e sua perdição.

Eu sou homem - meramente homem - mas antes ser humano. E, nesta condição, resta-me desembainhar o gládio, em prol de minha ulterior liberdade - gerir o meu corpo e renegar o que é torpe em mim, pois eu quebro o liame terreno, para fortalecer o elo sagrado. Não vou ignorar os iôgues, faquires, monges e monjas que precederam esta minha breve reincidência à Terra.

A verdade há de doer, e nossos laços hão de quebrantar. Se o corpo é o receptáculo da alma, hei de transformá-lo em veículo e veiculação, minha vida, sobriedade e solidão. A busca é infinita, o corpo não. Eu honro o eterno, e vivo em júbilo.

Não haveria de ser diferente
Eis a trilha que me cabe
Sigo eu peito valente
Só age, pois, quem sabe

Ágil, só a alma
Fora ela, tudo é morto.

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