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(10.01.2005)
Lauren Bacall, por favor
Conheço pessoas que não fumam. E conheço pessoas que não fumam e não querem que os outros fumem. As primeiras são infelizes. As segundas são miseráveis. Miseráveis mas realizadas: no mundo moderno, não fumar é marca de saúde física, mental --e, atenção, gente, moral também. Basta ver as medidas sanitárias que a Europa pretende aplicar. A curto prazo, os pacotes de cigarros dos europeus terão imagens-choque para afastar fumantes ativos ou passivos, presentes ou futuros. Como no Brasil. Mas pior, muito pior que o Brasil: corpos mutilados pelo câncer, cadáveres putrefatos. E, claro, a imagem triste de um pênis triste, precocemente arruinado. A idéia não é prevenir. Os fanáticos querem mais: querem humilhar o fumante, enfiar o fumante numa jaula de circo e dizer: "Olhem só como é decadente! Olhem só como é impotente!" Hitler não faria melhor.
Exagero? Longe disso. Robert Proctor, que as patrulhas higiênicas deviam ler, explicou tudo em The Nazi War on Cancer (Princeton University Press, 379 pp.). A leitura de Proctor é arrepiante mas a tese é magistral: as campanhas antitabagistas do mundo moderno nasceram na Alemanha das décadas de 1930 e 1940. Nasceram com a preocupação nazi em combater o vício e, óbvio, humilhar publicamente os viciosos. Humilhar consumidores de morfina. Cocaína. Coca-Cola. E enfiar os fumantes no gueto da vergonha social. Quando Hitler chegou ao poder em 1933, o tabaco era reconhecido como semente do mal. Causa de tudo.
Infertilidade. Impotência. Câncer. Enfarte. Comunismo. Uma ameaça direta à pureza da raça ariana e sua excelência física e mental. O próprio Adolfo se empenhou pessoalmente no caso. Ele não fumava. Ele gostava de dizer que não fumava. Nem ele, nem Mussolini, nem Franco --tudo boa gente. Pelo contrário: Churchill e Roosevelt eram conhecidos fumantes, exemplos de ruína pessoal e moral. A evitar.
Falou e disse: a partir de 1933, as campanhas estavam nas ruas. Gigantescas imagens onde o fumante típico era tratado como débil sem dignidade ou vergonha (tradução: um judeu manipulador que introduzira o cigarro na Alemanha para exterminar o povo nativo). Ninguém escapou. As donzelas viciosas eram pintadas em pose masculina, a versão clássica da 'mulher com barba', fenômeno de circo para horrorizar a burguesia. E homens fumantes eram seres sexualmente arruinados, com traços femininos, lânguidos, tristemente adocicados. O tabaco surgia em sagrada aliança com tudo que era condenável. Jazz. Swing. Álcool. Jogo. Cupidez. Devassidão. Orgia.
Azar: seis anos depois, os alemães estavam fumando a dobrar. Em 1933, o alemão médio fumava 570 cigarros por ano. Em 1939, antes da Segunda Guerra, fumava 900. Proctor avança razões. Todas elas sublinham o essencial: fruto proibido é mais apetecido. Histórica clássica. Bíblica. Razão de nossos prazeres e nossas desgraças. Ninguém deixa de fumar por causa do fanatismo de terceiros. Pior: o fanatismo de terceiros acaba por ser inútil --e até contraproducente. Conheço gente que não fumava -- e começou só por rebeldia. O velho spleen de que falava Baudelaire. Existe nos seres humanos um mecanismo de destruição que é preciso compreender, aceitar e tolerar. Se o mundo fosse feito de anjos, etc e tal.
Fumar faz mal. Mas também faz bem: as pessoas que fumam são mais tolerantes, mais calmas, mais interessantes. E invulgarmente mais pecaminosas. Uma mulher é uma mulher. Uma mulher que fuma é uma mulher que arrasa. Por isso proponho: todos os pacotes de cigarros deviam ter duas imagens. De um lado, o pênis caído. Do outro, Lauren Bacall chupando um Marlboro clássico. De um lado, pulmões enfiados em sujeira. Do outro, o rosto de Bacall enfiado em fumaça.
Fazemos assim: vocês ficam com o pênis, eu fico com Lauren.
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