segunda-feira, 2 de março de 2009

O Canhoneiro do Yang-Tsé (The Sand Pebbles, 1966)



Este filme é um marco. Pôe-se ao lado de Os Sete Samurais (Shichinin no Samurai, 1954), de Akira Kurosawa e de Doutor Jivago (1965), de David Lean, no patamar da alta cinegrafia: aquela que nos tem algo a contar. Mais que um filme, é um ensaio sobre as chagas da guerra, e o alcance do heroísmo. E mais, vai além desses mesmos conceitos, pois os questiona no início, no meio e no fim, deixando a nós, espectadores, entre a cruz e a espada.

Jake Holman é um engenheiro designado para servir na costa chinesa, operando o maquinário da canhoneira estadounidense Sand Pebbles ("Grãos de Areia"). Mal tendo chegado lá, é recebido com as seguintes palavras, nada calorosas ou animadoras, do - entretanto - amistoso Frenchy: "Ela [a canhoneira, nossa embarcação] chama-se Grãos de Areia (Sand Pebbles). Nós somos os grãos de areia." Frenchy de fato está certo. Os incontáveis grãos de areia de uma praia são únicos pelo fato de nela estarem. Porém, uma vez retirados de seu solo natal, descaracterizam-se por completo, e podem integrar a figura homogênea de qualquer outra praia arenosa. Tal pronunciamento, é óbvio, terá sua repercussão no desenrolar do filme.

A análise fílmica, ao deparar-se com o que eu denominaria produção clássica do cinema, chega a ao menos uma importante conclusão: Obras como Spartacus (Stanley Kubrick, 1960), Os Sete Samurais, Doutor Jivago e O Canhoneiro do Yang-Tsé - entre outras merecedoras do renome - contêm nos diálogos a chave do desfecho. E, por serem filmes particularmente longos, almejam sobretudo a reflexão do espectador. Almejam que este pense por si mesmo, em tomadas nas quais não predominam cenas de ação, ou de suspense, terror ou caos. O que há são diálogos que abrem horizontes do pensar, e modos alternativos de interpretar e assim vivenciar aquela realidade descrita e mostrada.

Filmes que deixam o sexo em segundo plano, não por este ser vilipendiado pelos diretores de então, ou por ser repudiado das telas por parte da sociedade. Pode ser, sim, que ambos os fatores tenham existido, para não mostrá-lo em uma cena sequer. Todavia, o espectador atento nota que o sexo, ali, ou aqui, ou em qualquer momento que fosse do filme, nada acrescentaria. Parece mesmo que tais diretores lograram o êxito de compor um todo hermético. Não há o que acrescentar, nem o que extrair. Não há retoques ou tomadas passíveis de substituição. Como no caso de um bom livro, a substância formadora dessas obras seria prejudicada caso houvesse a menor intervenção que fosse.





Steve McQueen, que atua no papel de Jake Holman, o protagonista da película, mostra uma performance de arrepiar os pêlos - de nos faltar o ar. Com destaque à cena final, que não vou contar, pois nada justifica um comentário spoiler, que estrague o bel-prazer do cinéfilo. Mas eu ressalto - sou useiro e rezeiro, oras! -: o último monólogo, as últimas linhas, conseguem fechar o filme de forma fascinante e assombrosa. As linhas e as sendas que se abriram no prenúncio do filme encontram um destino convergente no término conclusivo de um filme épico. É épico porque grava uma determinada mensagem da guerra que não iremos esquecer.

Não, longe de um pacifismo barato e supostamente covarde, há no imo do filme um papiro, que, uma vez aberto, revela as seguintes palavras: olhai a guerra! olhai atento à miserabilidade dos homens convocados a lutar por uma causa imperialista, ornada com falsas pretensões de se estar protegendo o próprio país, com enganosas nuâncias de se estar lutando contra um Mal absoluto e contraposto à bandeira de nossa nação - "nosso inimigo". O que é o inimigo? Quem é o verdadeiro criminoso?

O peão de guerra? Aquele que é despojado com o mesmo sorriso de escárnio reservado a grãos de areia apanhados - e descartados -, a esmo, à beira do mar? Quem somos nós que lutamos por causas alheias à nossa vida diária, que temos de obedecer ordens ufanas e distópicas que nos levam ao ataúde, ao mármore do cenotáfio, ao esquife, ao ulterior estertor da morte? Quanto vale a vida de homens portadores de armas, que seguem do catafalco ao cadafalso, numa vida construída à beira da destruição iminente, e de um aterrador mise-en-abïme, no qual os soldados acordam de um pesadelo para descobrirem que estão inseridos num ainda mais cavernoso e inescapável.

...

O soldado vai à guerra, o soldado volta à terra
Que o germinou, que o nutriu, que o fez emergir
Para então rastejar, e então andar, e de lá correr
E assim crescer, tornar-se adulto e ser haurido...

Enfrentado seus piores medos, pelejando, vitalício degredo
Não tropeçará em pedra, mas topará com o maior Penedo:
A morte, que depende da sorte, intrínseca à vida, que já não é sua...

...




Em meus artigos Crianças de Huang Shi e Spartacus, aludi ao heroísmo existente no peito de certos homens. É necessário mais do que a tão chauvinista hombridade para arcar com tamanha responsabilidade perante à humanidade. Homem ou mulher, órfão ou pai, pouco importa. Há pessoas que fazem a diferença, não por serem grandes estrategistas bélicos, como Hitler cria ser, assim causando mortes de milhares e milhões de inocentes civis de seus gabinetes pomposos; mas porque tais indivíduos vieram ao mundo com um tato e uma carisma todos seus. Porque objetivaram, desde cedo em seus corações, devolver, ao Mundo, Sua dignidade perdida.

Sacrificar a própria vida em prol dos outros é um ato veementemente ignorado por esta geração fornicadora e leitora de jornais, tal qual a sociedade prevista por Albert Camus - em seu romance A Queda (1956): a mulher grita por sobre a ponte, mas não é ouvida... Oras! Ouvimos, nós, algum som que não nossa própria voz? Vemos, nós, imagem que não nossa própria, nos outros, nas coisas? O narcisismo obscurece o heroísmo. O arquétipo da atitude heróica jaz na capacidade de abstrair a própria existência, para, então, enxergar a existência do outro, e vê-la com olhos límpidos o suficiente para poder se abdicar da auto-piedade consigo mesmo. Com a efêmera existência de um corpo, que pode ser usado, num ulterior esforço, para resguardar a vida de outrem. De mais de um, de vários. Escolher a própria morte, num átimo de consciência desobstruída, e encarar o fato de forma natural, porque somente com sua vida poderia salvar a vida de todos que dependeram de você para escaparem. Escolheu o destino que os abraçaria, caso recorrese a um modus operandi narcísico.

Num modus operandi narcísico, o inferno são os outros, fazendo uma citação sartriana. Olvida-se muito rapidamente que os outros somos nós, e nós somos os outros, porque a Natureza só existe na Unidade da Diversidade - e sem o Diverso não se formaria o Uno. O heroísmo é mais que um mecânico e inconsciente e geneticamente programado esforço destinado à continuação das espécies. O heroísmo requer caráter, reflexão existencial e empatia.

Um psicopata é simplesmente incapaz de um ato heróico. Este filme atinge um status digno, ao distingüir a coragem da covardia. A atitude psicopática e narcísica, da atitute verdadeiramente altruísta. Para salvar seus próximos, quão longe você iria?

Possivelmente, não tão longe.

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