domingo, 22 de março de 2009

Intuindo Maus


História gráfica de Art Spiegelman, Maus figura entre meus favoritos, ao lado de Persépolis (Marjane Satrapi), V de Vingança (Alan Moore) e Berserk (Kentaro Miura).

A leitura de Maus é enriquecida e ampliada com A Lista de Schindler (Thomas Keneally) e A Escolha de Sophie (William Styron) - ambos livros aclamados, que posteriormente se tornaram filmes, estes talvez mais divulgados que os próprios livros. Isto me entristece. Parece-me que as pessoas leem menos, e creem que uma obra cinematográfica possa substituir o original. Não inferiorizo a qualidade do que é produzido para as telas, mas a questão não é essa. A questão é o caráter único de se conhecer uma obra, tal qual ela foi concebida por ser autor.

Pelo maior grau de autenticidade que um filme possa reter, volta-se sempre ao original. O original dá ensejo a mais reflexões, a mais críticas, a uma maior assimilação de conteúdo. A uma bagagem cultural maior, portanto. Tendo-se lido o original, pode-se fundamentar uma discussão frutuosa e abrangente, com um potencial ainda maior que sua adaptação possibilitaria. Entre as sagas injustiçadas pelas telas, faço questão de citar Senhor dos Anéis, cuja temática é sobretudo humana e retentor de um vocabulário impressionante da língua inglesa.

Volvendo a Maus. Maus alcança em partes o que um livro escrito jamais alcançaria: a nuância, a sutileza, o perfilar da cena e suas paricularidades. E Art Spiegelman dá-nos a oportunidade de co-participar do plano de fundo de sua criação - a dificultosa relação com o pai, traumatizado pelas experiências de que foi vítima, a dúbia cobertura midiática de uma obra tão provocante e instigante.

Maus dá-nos a sensação de que estamos ali, vendo (literalmente, neste caso) os pormenores das fugas, das incríveis escapatórias de seu pai e de poucos afortunados membros de sua - antes - extensa família. Como ele burlou certas leis com as próprias posses, como se abrigou, como amou em tempos de guerra. Os frutos da amarga separação entre ele e sua esposa nos tempos áureos de seu relacionamento - sem contar a perda do filho primogênito, que crescera sob tantos cuidados e carinho, nutrido de uma cultura ortodoxo que o próprio Art Spiegelman não gozou.

Art Spiegelman produz essa mágica que nos faz acreditar que um detalhe sequer não nos foge à vista e à compreensão imediata. É tudo lançado às claras e vem direto ao lume - da publicação, da divulgação de uma hecatombe planejada. Agora, todas essas sementes germinam no solo do testemunho vivo e excitante do pai. Puxa, ele viveu aquilo, não deve ter sido fácil! De modo algum! É isto que somos levados a pensar e remorder. Maus alcança o patamar da epopéia do povo judeu sob os muros da opressão, remetidos aos guetos do esquecimento, ao apartheid criminoso e racista.

Era hora, aliás, de algum talentoso sul-africano trazer à tona a saga de sobrevivência, luta e morte dos negros submetidos à segregação por um período de quase cinquenta anos (1948-1994). Nem preciso aludir aos nossos compatriotas sem terra (pura ironia), os palestinos (1948- ). Algumas obras têm essa missão, se é que se pode chamar assim o produto de sua divulgação: escancaram os férreos portões da realidade omitida, tergiversada, titubeada, quase apagada. Mas a memória persiste, parece nos dizer. A memória persiste, e o ser humano resiste. Mas quanto tempo durará tão tênue resistência?

A que resiste, pergunta-me.

Respondo-lhe de foma diferente: o ser humano é vítima de si mesmo. Suas próprias decisões o podem levar ora ao precipício, ora à sabedoria. O conhecimento que obtém pode salvá-lo, mas a ignorância é prazerosa. Enquanto persistir o prazer, é dominado pela consumidora e auto-destrutiva ignorância. E enquanto for ignorante, cego, volta-se ao prazer infecundo. Gira, gira, tal o mundo, rumo o abate final.

Desesperançado?

Não. Reconfortante é a busca - a estagnação nos mata. Pouco a pouco deixa rouco. Pouco a pouco deixa mouco. pouco a pouco. deixa louco.

Rota, rota, ser humano
Tua alma há de guiar
Rota rota,
Inspira fundo. Vá!

P.S.: Aliás, para você que não quer comprar o Maus - e pode lê-lo em inglês - use a liberdade e a dica (foi o que fiz):

Maus - 1ª parte

Maus - 2ª parte


Bon chance!

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