quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Grão-passarinho

Piou, piou e morreu
Penas marrons, pintas pretas
Perguntou quem era eu
Sou a escuridão da greta

Sou o inominável mal
Sou um néscio sem igual
O buraco fundo em cal
Ser humano e animal

Sou sem me reconhecer
Cada dia nulo
Cada noite engulo
Meu incognoscível ser

Piou, piou e morreu
Perguntou quem serei eu
Ah! Se eu pudesse piar
Saberia lhe salvar

Mas não posso e estou vivo
Vendo-o morrer em mias mãos
Eu, ignorante e cativo
Um fratricida entre irmãos

Quereria lhe ajudar
Causei, porém, tua morte
Vossos olhos feito mar
Sob a sombra da mia sorte

Perdão, meu grão-passarinho
Chorei quanto pude a ti
Pois quis lhe dar outro ninho
E assim seu passar sofri

Reverbero vãs palavras
Sondando meu sofrimento
Perdido em trevas ignavas
É o pó meu alimento.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Comunidade Armênia de SP

Quase dois meses sem postar nada, não por falta de tempo, mas por um ressecamento da criatividade. Espero que seja passageiro, mas talvez não o seja e eu estou preparado (ou ao menos preparando-me o máximo possível) para isso.

Faz um mês que venho buscando descendentes armênios que morem em São Paulo - capital, devido ao meu projeto de Iniciação Científica da faculdade de Letras, no qual venho empenhado desde março/11. Já entrevistei 0ito pessoas, o que já é em si um sucesso, para um curto período de um mês, descontados fins de semana.

Quem conhecer descendentes armênios que morem na capital de SP, ou se por ventura houver algum descendente armênio que leia essas páginas, por favor entre em contato comigo:

fejapimenta@gmail.com

Meu trabalho é idôneo, de caráter e rigor acadêmicos. Sou orientado pela excelentíssima profª Dra. Deize Crespim Pereira, que leciona todos os módulos das matérias de Cultura e Literatura Armênias, no Departamento de Línguas Orientais da USP (Universidade de São Paulo). Eu respondo os e-mails no mesmo dia, ou no máximo no dia seguinte.

Ah! Como se identifica um descendente armênio? Pelo sobrenome terminado em -IAN. Ou se ele for seu amigo e te disser, claro.

Obrigado e um grande abraço a todos.

Fernando

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Despetalada Rosa

Minha nítida memória
Não retorna à minha infância
Não me traz a paz tão glória
De estreitar essa distância

Minha límpida memória
De todo o mal cometido
Não me esclarece a história
Dalgum bem ali contido

Não sou Proust, não recordo
Dos mais mínimos detalhes
Da idade em qu'eu acordo
E perdoo todos males

Não sou Jung, não sou gênio
Não me relembro hoje adulto
Cena por cena o proscênio
Quando o cérebro era inculto

Há em mim uma semente
Plantada entre pedras duras
Teimosa e resiliente
Erguida em negras agruras

Foi um milagre irrompido
Um sussurro no silêncio
Da Terra em guerra um gemido
Seca lágrima no lenço

O sorriso ofuscante
Dentre as trevas da tristeza
Rebrilhava o diamante
Uma prece ao céu acesa

Clareou-se a mente, a noite
Luziu-se inteira em clarão
A lua, em forma de foice,
Projetou-se alva no chão

A memória veio ao homem
Lúcida, clara, divina
E se os outros seres somem
Ela ainda os ilumina

Esquecer o mal passado
É negar o maior dom
Apartar-se do cuidado
De dizer o mau do bom

É negar-se ser humano
A via mais dolorosa
De eleger-se o vil tirano
E pisotear a rosa.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Ínvio Mar

Aceitar sua própria morte
Quem sequer a aceitou
Ver-se fraco, fora forte
Sua força fraquejou

Dolorosa nostalgia
Ver a luz se amaciando
Ao olho o que antes não via
Sem saber jamais o quando

Hoje lampeja e fulmina
A pálida e fosca luz
Nesta funda e escura mina
Onde o sol não mais reluz

Nos calabouços da alma
Na masmorra agonizante
Nada se agita ou se acalma
Ouço eu um só mesmo instante

Minha trilha ao Minotauro
Nesta senda apavorida
Reconstruo e restauro
Passo a passo minha vida

Não fosse este tênue fio
Fino, feio, quebradiço
Esticado no vazio
Deste meu real feitiço

Esta linha tão-só minha
Retilínea, tensa, inerte
Com meus bravos pés caminho
Quem sabe eu um dia acerte

Há saída ao labirinto?
... ou dá voltas sobre si...
Mas só eu sei o que eu sinto
E o que eu jamais senti

No infinito desafio
Posto à prova pelo fio
Pois não foi senão aqui
Onde o cérbero ladriu

Dédalo pranteia ainda
A vã queda do anjo alado
É a dor do pai infinda
Ver o filho morto ao lado

Custou caro a aventura
Da prisão se libertar
Foi sua ideia madura
Afogada no ínvio mar.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Fútil Fardo

No derradeiro momento
Na hora final. Adeus
Neste assento em que me sento
Eu morri por erros meus

Minha certeza almejada
Minha ilusão construída
Ruiu a minha morada
Destruiu a minha ermida

Confiei no corpo, inércia
De estar bem até o além
De por muitas peripécias
Encontrar-me eu lá também
Tornar-me um herói da Grécia
Enganar... não sei a quem

Fiei-me no acaso, o prazo
De chofre expirou, se foi
Veio talvez com atraso
E eu pereci como um boi

Não fosse esse sol nascente
A me dizer: ei, acorda!
Pondo-me aos olhos a lente
Ver em meu pescoço a corda

A corda da morte aqui
Enlaçada firme e forte
Por fim eu a vi, a vi
A vida rumo a um norte

Tortuosos bairros, ruas
A noite escurece o olhar
Dia a dia a alma nua
Não consegue se mirar

Se o corpo rege a mente
O tirano toma o trono
A descrente mente mente
É o meu mundo sem dono

Barreiras intransponíveis
Pedras, cacos e destroços
Desce-se ao inferno em níveis
Já não posso... eu não posso

Talvez possa e quem dirá
O contrário, a negação
Desse sonho acolá
Antevendo a salvação

Morrer de uma vez pra sempre
Sorrindo por dentro ainda
Sem vergonha que me lembre
A terrível vida infinda

Semivida dum zumbi
Semimorto, semivivo
Em seu receio de si
Sem poder dizer: eu vivo.

Desacorrentado enfim
Não nos outros, mas na vida
Não em sonho, mas em mim
Minha terra prometida

Ancorar na tempestade
Na luta épica da alma
Coroar-me majestade
No deserto que desalma

A futilidade orgânica
Duma vida sem sentido
O pó, a cinza vulcânica
Dum nobre vulcão extinto

Cospiu feroz - e morreu
Tossiu, engasgou-se em si
Embevecido no eu
Múltiplo, vário, saci

O perneta traiçoeiro
O curupira nostálgico
Meteu o pé no bueiro
Perdeu a noção do mágico

Não escondido ou obtuso
Mas real, escancarado
Ai de mim quando eu acuso
Ser a vida eterno fardo.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Luziluzem Luzes

Labutei dias a fio
Foi sorrindo, foi suando
E no fim um elogio
Transmudou tudo em brando

Eu emagreci, sofri
Sem sequer saber por quê
E no fundo quem eu vi?
O reflexo de você

Objeto ou pessoa?
Era imagem ou miragem?
Ou uma súplica boa
Que os anjos me encorajem

A olhar valente a frente
Estendida horizontal
Não tornar-me um descrente
Na crua cela de cal

E talvez me ver no espelho
Duplicado em você
Com a morte me aconselho
Onde a sombra não se vê

Minha luz fraca e opaca
Pouco ilumina o semblante
Paira hesitante e estaca
De esperança radiante

Quem o resgata em naufrágio?
Meu espírito escravo
Um sussurro embora frágil
Resiliente... e bravo!

Ora! Não vá agora embora
Hoje não fuja de mim
Só vim à esta má hora
Tirar-te o não, dar-te o sim!

Não pergunto qual o prêmio
Se é nobre a iniciativa
Pois bêbado ou abstêmio
Trago mia mente cativa

Meditar a dor, compor
Um espectro reluzente
O hipócrita em horror
Jamais soube o que a alma sente

Se fraqueio ou cambaleio
O passo ébrio e desregrado
E o fogo em mim ateio
Faço tudo de bom grado

Já me desfaço em pedaços
Tal qual eu nasci e sou
A verdade qu'eu rechaço
Ela mesma me matou

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sonho

Sóbrio e róseo céu lilás
Partido em luz e negrume
Novas que só você traz
Embora eu não me acostume

O estertor do respirar
Corta o fogo, a comoção
Um trator a ronronar
Vejo a morte de Abraão

A última hora: o agora
Foi o perdão postergado
Eis a criança que chora
E afoga o fogo do afago

Nao há possível consolo
Perdeu o colo o calor
Reduziu-se o riso a tolo
Por prantear tanta dor

Infante, o que é a morte?
A vida, o amor, o amanhã...
Sul, oeste, leste, norte
Pálida face louçã

Pagou e apagou-se a vida
Moinho d'águas passadas
A vã prece à paz erguida
Chega a guerra à nossa estrada

Não enxergamos quem chega
Passos pesados e firmes
No pão se passa a manteiga
Não suspeitando de crimes

Quem se aproxima de cima?
E vem do alto olhando abaixo...
Tantas vozes, graves, finas
E na greta eu me agacho

As risadas como estrondos
Estalam as tábuas velhas
Treme as paredes o gongo
Toda a casa se destelha

Cessam os ruídos - gritos
Tomam logo seu lugar
Inflama-se o cor aflito
A alma a lacrimejar

Ouço o clamor da chacina
Desnorteado emudeço
A mente não mais atina
O meu corpo fez-se em gesso

Avanço às cegas no escuro
Tudo imagino e cogito
Ao rastejar no chão duro
Gélido como granito

As pálpebras entreabro
Não foi nada, foi um sonho
Sob a luz do candelabro
Me entristeço e me envergonho...

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Raptada Empatia

Austera sombra silvana
Ambivalente suástica
O meu espírito emana
Da insana Via Láctea

Percorrida madrugada
Só querendo um sinal Vosso
Minha cama arrumada
E sequer dormir eu posso

Quereria eu afirmar
Hoje o dia não me agrada
Sinto falta de um mar
Mas... desculpa esfarrapada

Quentes pés na areia fria
Solidão e completude
A luzidia abadia
No campo inóspito e rude

A penitência era a lei
E por nós era seguida
Mas já pouco agora eu sei
Da sagrada e ida ermida

Pelos vícios volteei
Rebuscando uma virtude
Ser meu vitalício rei
Tão embora a vida mude

Aos céus alcei os meus sonhos
Mal meus pés roçando o chão
Os outros, tão enfadonhos
Eu gigante, o mundo anão

De antemão não saberia
Todos próximos pesares
A catástrofe do dia
Ares nada salutares

O enforcamento da alma
No patético patíbulo
A morte cruel e calma
Deste índio desgarrido

Ó, Sol, teus raios não bastam
Para alumiar-me a face
Por ter crido n'algo casto
Antes o algo me matasse

Mas morrer sem direções
Pasmo, inerte, vegetal
Dado à boca dos leões
Eis o mais supremo mal

Ter crido no colorido
Avesso ao vão preto e branco
Para achar-me aqui tolhido
Cego, surdo, mudo e manco

Estupraram meu orgulho
Restou-me este roto corpo
Na raiva e no ódio eu mergulho
Em meu panorama morto

A perspectiva infértil
Ladra uivosa do meu âmago
Já alojou-se o projétil
Tornando o vivaz em lânguido

Foram-se as minhas proezas
Exaltadas, aclamadas
Minha voz, refém e presa
Corre interminável escada

Fraqueja o brilho celeste
Minha alma gela e inverna
Não foste tu quem disseste...
Ser a vida chama eterna?

Pois a luz ensombreou-se
Mutilou-se a mão da tocha
E verteu-se amaro o doce
Do coração feito em rocha.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Verbo d'O Pai

Pai, que foi que tu dissestes?
Taciturno, saturnino
Quando despi tuas vestes
Roupas tuas de menino

Pai, tu trabalhaste tanto
Extraíste o teu gozo
Teu feitiço, teu encanto
Teu trabalho laboroso

Tutear-te agora é bom
Reavivado recordo
Tua voz e o teu som
Quando estávamos a bordo

Desferindo a mesma terra
Esplainada pelo sol
E ninguém, pois, exagera
O poder do arrebol

No sertão caía a noite
O negrume estelar
Só eu sei o quanto dói-te
Separar-te do teu lar

A dicotomia urbana
Esta nunca nos fez bem
Já cortar com força a cana
Eis a paz que nos contém

Eis a luz que não reduz
A bravura e o vigor
Nosso angu e o cuscuz
Para o suor repor

Acordar co'a corda toda
Pôr a bota, a calça jeans
Nossa mão desperta doida
Lavourar é bom assim

A camisa cobre os braços
O chapéu sobre a cabeça
Para trás o torpor lasso
Cuida co'a vaca travessa!

Leite e aveia, pança cheia
Café, água, pão, manteiga
Borbulha o sange na veia
Quão belo café, mia nega

Pôr o berrante a berrar
No topo do cupinzeiro
Seu ruído rasga o ar
Meu sorriso sai matreiro

Os pés nus entre as formigas
Em defesa de seu lar
As picadas mais amigas
Que se pode esperar

Mirando o arcano horizonte
Vastidão extraterrena
Animo a quem quer qu'eu conte
Ser o sertão mia Viena

A terra é pequena, plena
Nada vale a quem mente
Cravejar na alma esta cena
E retê-la eternamente

Faz dum ateu homem crente
Vislumbrar este luar
Gente que vive entre a gente
O anacoreta tornar

Dizer demais diminui
Enfraquece o imaginar
E passa uma impressão ruim
A rei, sultão e czar

Calar-se então é melhor
Já dizia isso o Pai
E sempre saber de cor
Aonde é que alma vai

Se te escapa ou te acompanha
Isso faz-te cego ou sábio
Se é brio ou mera manha
O Verbo a sair-te ao lábio.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Beirada

Todos dedos deformados
Num pé preto de sujeira
Pela dor, pelos calçados
Pela à vida à margem, à beira

Vida beirando a beira dos beirais
A existência suspeita
Só, suspensa, sussurrada
Psiu! E se for cilada...

Viadutos, minhocões
Pulsa em roda a vida alheia
Lendo em rostos bonachões
Sã saúde duma ceia

Qual foi a última vez...
Sobre a mesa a sobremesa
Um cumprimento cortês
Sem a sobrancelha tesa

Qual foi o dia benquisto
Amado, bem recordado
Sem ser pego para Cristo
Sem a exclusão ao lado

Quando foi a ida infância
Se sequer a possuiu
Pacífica vida mansa
Noites inteiras sem frio

O último olhar carinhoso
Apertado abraço humano
Última instância do gozo
O amor em primeiro plano

A insânia se aproxima
Consciência desintegra
O azul céu soberbo acima
E abaixo a alma em quebra

A mole mão esmoler
Tresandando forte cheiro
Não é homem nem mulher
Súplica ao ouro faceiro

Oiro, prata, cobre esnobe
Estendido ao pavimento
Prece ao firmamento sobe
Do chão sórdido, cruento

Pois eu passo e peço apenas
Ao longínquo Pai Noel
Galgue rápido as renas
Traga o prato mais pitéu.

domingo, 17 de abril de 2011

O Ódio

Ai, o ódio me rodeia
Grande roda a girar
Uma agulha em minha veia
Latrocínio em meu lar

Ai, o ódio me permeia
E range a serra da raiva
Arrendei minh'alma à meia
Sem que a outra parte o saiba

Grito surdo me esfaqueia
O tudo entorna-se em nada
Meu amor prendeu-se à teia
Da aranha alucinada

Ai, qual lado em mim odeia
Esvozeia e vocifera
Desfaz meu paço de areia
Prenhe e pútrida pantera

Ai, inveja, angústia e lágrimas
Resvalando-se mesquinhas
Vingam-se, anulam-se máximas
Quisera eu não serem minhas

Que posso eu fazer, dormir?
Esquecer, lutar, amar?
Ver do apogeu ao nadir
Ébrias vagas deste mar...

Potentes como o tsunami
Tudo arrastam insensatas
Deitaram-me no tatame
Seu peso sufoca e mata

Reerguer-me renovado
Talvez seja a solução
Sem virtudes, sem pecados
Sorridente e folgazão

Mas e quanto a meu passado
Violento e malquerido
Sigo sempre endividado
Meu remorso cá comigo

Atar-te eu quero à correia
Pôr-te o cabresto e o punhal
Ódio, que ao amor cerceia
Germe do azedo mal

Judas, na última ceia
Cínico, ri e sorri
Cospe, escarra e escarneia
Fez tamanho mal a Ti

Não sei se isso aconteceu
Vejo nisso a alegoria
Diferir o Tu do Eu
E a luz que a nós alumia.

sábado, 16 de abril de 2011

Tchau Tristes Dias

Ah! dores da diarreia!
Quase vós me destruístes
Me influindo ideias tristes
Como o rosto de Medeia

Sentir-me um animal roto
Sentado sobre o mau cheiro
Tresandando a podre esgoto
Fétido de vil bueiro

Horas prostrado no vaso
Co'a face rente ao chão
Já não era brincalhão
Mal-amado pelo acaso

E pensar sempre no ocaso
Nessa morte ignomínia
Afogado em poço raso
Desta pútrida vã sina

Ah! Penitente é quem sente
A vida escoar em berros
Extraídos como a ferros
Na marrom e preta enchente

A matéria nauseabunda
Vai jorrando miserável
A verborreia da bunda
Vai rápida como um sável

Mas não é o mar que singra
Em um ar auspicioso
É o meu corpo que sangra
Esse líquido asqueroso

Ai, convolutas da vida
Luta contra a voraz fera
Devoradora quimera
Das digestões espremidas

E venço, afinal! É lindo
Ver um novo sol sorrindo
Esperanças renovadas
Dentre airosas cachimbadas

Sem correr mais ao banheiro
Branca face, pé ligeiro
Rio e gozo do passado
Gargalho maravilhado

Bau bau, desditosos dias
Sopa de arroz e batata
Sem sal, refeição ingrata
Quando acre eu me desfazia

Alegre e festeiro eu canto
Ter-me desfeito do encanto
Que mia alegria roubava
Fazendo a vontade escrava

Um viva à saúde! um viva!
Longa vida ao coração
Pois hoje transborda em vida
São, airoso e bonachão!

***

Que for ler ou já tiver lido Bernardo Guimarães, entenderá este meu poema. E rirá comigo!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Apocalipse

Já meus joelhos gelados
Rejeitam o teu calor
Jazem juntos lado a lado
Enrijecidos, sem cor

Descoroçoado, eu
Inicio a noite só
Acabrunhado no breu
Assimilado ao pó

Sento e sinto o som silente
Da chuva ciscando o solo
É a paz do sono à mente
E a cruz da calma em meu colo

Me belisco a ver se é sonho
O obelisco mais medonho
Sóbrio ergueu-se sobre a prece
Sua sombra sempre cresce

E se prostra à minha face
Nem se eu lhe suplicasse
Pararia a travessia
Do ermo gélido ao dia

Assombrosa transição
Do amplo universo à terra
E os homens, que farão?
Ao destino que os desterra

Rompe o mar, o chão, a serra
Inaudita explosão
O humano jamais erra
E os homens, chorarão?

Mas a paz desfaz o pranto
Faz do sórdido, homem santo
Tudo quanto havia antes
Esmigalha-se em instantes

Ondas, anacondas, bichos
Fogem, ferem-se, fatais
O efêmero luxo é lixo
Matam-se nos matagais

Palavras trôpegas, tépidas
Ah! Aquecem-nos não mais
Das relíquias restam réplicas
Vis, inválidas, banais

Outro beliscão: desperto
A destruição tão perto
Fora sonho ou vaticínio?
Malsão sabor assassino

Dobram os sinos solenes
Qual moça ou moço não teme
Pesadelos iguais, tais
Quais os meus sonhos mortais

Tão povoados de gritos
Infernais e incisivos
Mito do mal dos aflitos
Todos morrem e eu vivo

De que vale essa vivência
Solitária e seca e crespa
Nessa ignorância imensa
Onde o homem é asno e besta

Bateria de andróides
Mecânico, maquinal
Suas ações debilóides
Dignas dum animal

Bem ou mal, pois tanto faz
Tudo o homem é capaz
Mas nada novo o inova
Néscio renasce à cova

Sábios e sabiás não sabem
Tampouco sabemos nós
Ocultos na cruz do frade
Cobertos no albornoz

Escusos perdões, os mesmos
Milhões de línguas, as mesmas
Mentiras reverberadas
Em petas, contos de fadas

Acerba usura o condena
A tirar do outro à marra
O que nunca será seu
Sobre o Sol um Deus ateu

Amarga ambição o atrela
À covardia mais falsa
Deixa o vizinho sem calça
Inda o põe no cadafalso

O patíbulo é justo
O juiz sequer tem custo
Em pôr-lhe as amarras, garras
Férreas, e sobr'ele escarra

As leis de sua nação
Seu Deus Uno, e por que não?
Noções de pátria e traição
Civilizado está. Bênção!

Ó, pesadelo macabro
Azedume do curtume
Sobe-me e cala-me a boca
Geme mia goela rouca

Ruge e ri já arrastada
Mia parca voz amurada
Em corpos, detritos. Caos
O Nada. Minha morada.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Penas

Pintassilgo, pintainho
Pintarroxo, pinta o céu
De mel, de fel, passarinho
Põe à página o pincel

Meu piar apavorado
Por estar sempre apressado
O preço da pressa oprime
Meu pensar já apoucado

Pernoito em profundidades
Intransponíveis metades
Prestes a perder as penas -
Plumas e pôr-me pelado

Aplainado, pobre, apático
Procuro em mim o viático
A pleno voo, pasmado
Aprendo a premir o vácuo

Em meus poros, palpitando
O vazio que me espicaça
Ameaça e me aprisiona
A morte à sorte é mia dona

O ápice, o nada
O nado sem água
O pico, a praia
Aprazem-me não mais.

Sequestraram minha paz
O rapto o roubo a pilha
Meus pertences eu jamais
Reaverei, não sou rei.

Não mais, já mais, sem mais paz
Sem mais pontes aprumadas
A pender no horizonte

Fontes dos meus principescos
Sonhos, hoje pesadelos
Apenas perdi eu tudo.

domingo, 13 de março de 2011

Incêndios (Incendies, Denis Villeneuve, 2010)

(clique na imagem para ampliá-la)

Começar um filme ao som de Radiohead não é nada mal, vamos lá. Cenas que provocam, desde o início, indagações, ainda mais com uma trilha sonora empolgante até para quem não é fã de carteirinha da banda. Já faz do limão a limonada. Amarga, por sinal.

Filmes que surpreendem, livros que surpreendem, mulheres que surpreendem... (a lista é infinita quanto a que ou quem nos pode surpreender)... apreciamos um bocado todas essas coisas. E eu não sou uma pedra, tampouco uma ilha, como diz a letra da famosa música de Paul Simon & Garfunkel. Completamente entediante, e então profundamente devastador. O filme faz uma transição inacreditável do fastio ao ápice. Um terremoto (isto eu escrevi antes do recente terremoto no Japão, tristes coincidências...) cinematográfico que nos deixa sem chão, eira e beira.

Genial retratar um drama humano, genial em sua abordagem no início pouco ambiciosa, subindo uma espiral até o clímax. Lembrou-me vagamente do pouco conhecido filme romeno, O Entardecer de um Torturador (Dupa-amiaza unui tortionar, Lucian Pintilie, 2001), do qual lembro-me infelizmente o insuficiente. Mas este romeno é um tanto mais modesto em sua amplitude, embora igualmente bombástico em suas dimensões, visto que tange à lástima de ser humano em condições ultimamente desumanas. Quão fortes somos? A que ponto aguentamos pontos e mais pontos de interrogação, os quais, uma vez resolvidos, trazem as mais indesejáveis respostas do mundo - dum desmundo. A canção que rebenta de nosso peito convulsionado e encanta como um mantra o pesadelo sem fim que nos rodeia e apodera, amurados e sós.

Ciclos e ciclos de violência intermináveis - ou será que se os pode afinal terminar? De que modo subtrair as perdas de modo que a soma resulte ainda positiva? A bem da verdade, é preciso estar presente, ainda que a alma almeje ausentar-se. É necessário ser o que nascemos para ser, mesmo que a esmo o venhamos a saber. Senão, o que seríamos de nós? Detritos em meio ao mar de areia da vida? Não. Ou antes, sim. Alçamo-nos à altura do que nos nega, para só assim nos afirmarmos integralmente, sem chance de retroceder.

E ainda que a canção, nossa mais íntima e única canção, soe absurdamente ridícula e sem sentido aos surdos ouvidos alheios, nem mesmo esse parecer fatalista parará nossa voz, embargada em soluços, mas ainda e sempre nossa, nada mais nada menos. Será possível? Ah, bem mais que possível, bem mais que impossível. Tudo o que é essencialmente nosso - e o que não é? - é tão-somente definido por quem somos e quem queremos ser. Não para as próximas gerações, que muito possivelmente não quererão ou poderão nos compreender, ou que jamais ouvirão nossos nomes, mergulhadas em suas próprias ilusões. Mas para nós mesmos. Em situações limite reportamo-nos a nós mesmos e a ninguém mais. Caso esperemos um ressurgido herói ou Cristo interceder por nossa graça, não veremos herói nem Cristo algum. E nem os viveremos jamais em nossa própria pele, e eis ante nós a mais sólida desgraça.

Ter um livre-arbítrio que ninguém nem nada pode nos tirar, conquanto infringido, pisoteado, amordaçado, destroçado. Olhar-se no espelho d'água sujo e abjeto formado no chão pútrido diante de nossos olhos e dizer com firmeza: tentaram, sem o conseguir, tentam, em vão e tentarão com os mesmos resultados anteriores! Minha canção reverberará mais alto que quaisquer alto-falantes que a tentem reprimir e ador de muitos ou ao menos a muita dor que eu sinto esta canção a irá dirimir. Esta anônima canção sem título e sem nação, e sem notas de rodapé anexas, é autossuficiente em sua infinita dimensão. Escopos apertados a verão como tolice de uma mente insana, mas eis que nela se resguarda justamente o poderoso germe de uma sanidade que a tudo resistiu, impassível de dissolver-se na insânia e maldade reinantes. Impassível de ser anulada a pó, à sombra, a pretérito perfeito, pois que é imperfeito este pretérito e ressoa harmonioso e verídico a quem o quer ouvir.

Mas quem quererá auscultar os terríveis batimentos cardíacos coletivos daqueles tenebrosos tempos? Poucos, certamente. Mas são sempre poucos os corajosos, os que não se descoroçoam, e poucos e fiéis são seus seguidores. E a coragem, subjetiva e impessoal como só ela sói-o ser, inexplicavelmente persiste em bravos corações, sem que o tempo a consiga adulterar.

Um hino - porque há de ser musical - a todos que resistem morrer por dentro. Aos sempre poucos eles e elas, um hino harmônico, eufônico e eterno.

sábado, 12 de março de 2011

Além da Vida (Hereafter, Clint Eastwood, 2010)

(clique na imagem para vê-la no tamanho original)

Eastwood teve a brilhante ideia de reproduzir a catástrofe ocorrida na Indonésia em 2004: o tétrico tsunami, cujas imagens percorreram os ávidos olhos televisivos e internautas do mundo inteiro. Abrir um filme dessa maneira, convenhamos, prende sem esforço a atenção do espectador.

Não bastasse isso, temos o excelente ator Matt Damon em um dos papéis principais, protagonista de filmes da qualidade de Gênio Indomável (Good Will Hunting, dir. Gus Van Sant, 1997) e O Talentoso Mr. Ripley (The Talented Mr. Ripley, dir. Anthony Minghella, 1999), numa das performances mais convincentes de sua carreira. Se na maior parte dos filmes nos quais Damon atuou ele se se mostra infalivelmente sorridente e sedutor, aqui ele pouco sorri e se apresenta consternado com um dilema: usar o seu dom (ou seria maldição?) da clarividência, ou tentar levar o que a sociedade denomina uma vida normal.

À semelhança de filmes como Amores Brutos (Amores Perros, Alejandro González Iñárritu, 2000), Crash - No Limite (Crash, Paul Haggis, 2004) e Babel (Alejandro González Iñárritu, 2006) , neste último filme dirigido por Eastwood as vidas de distintos personagens se cruzam e nos deixam a indagar: a que ponto nossas vidas inevitavelmente se entrelaçam às de outras pessoas, impactadas da mesma maneira que nós? Aproximamo-nos daqueles que nos podem ajudar de maneira absolutamente acidental? Ou haveria algo místico e mágico tramando invisíveis fios de ouro ao nosso redor?

Como o audacioso e às vezes injustiçado filme Babel, Além da Vida propõe uma improvável ("forçada", como já tanto ouvir dizer de Babel?) união entre os protagonistas, uma "globalização", assim por dizer, da relação entre as pessoas, mas desta vez pondo em maior evidência a oposição entre experiências limítrofes à morte e a derradeira opção por seguir vivendo, apesar de tudo, que esses personagens tomam.

O amadurecimento desses heróis e heroínas do dia a dia aqui representados se dá de modo doloroso, envolvendo rupturas de laços familiares, afetivos e uma retomada da autoconfiança no curso de suas vidas, após terem sido vítimas da profunda descrença e incompreensão alheias. Aonde quer que vão deparam-se com barreiras, simplesmente por expressarem uma maneira de enxergar o mundo (ou, antes, o além-mundo) alternativo ao estrito escopo de uma sociedade materialista, no pior sentido que esse adjetivo pode abarcar: vive-se uma vida espiritualmente vã, cerceada de necessidades imediatas, e mesmo após desgraças de proporções enormes nos atingirem, poucos são aqueles que se permitem uma reflexão mais adensada sobre quem são e o que, afinal, querem com a presente vida.

O filme não faz senão mostrar que os vigaristas e os falsos profetas e gurus roubam a cena desse mundo "esotérico" (tomou uma desproporcional e incrédula conotação pejorativa esta palavra), os primeiros sapientes de sua má fé, estes últimos em autoengano quanto aquilo em que creeem. Turvam esses mágicos ilusionistas as águas de um rio já suficientemente turvo devido aos nossos próprios preconceitos, inculcados desde cedo pela abjeta efemeridade de valores do oco mundinho ocidental no qual vivemos, e que o mundo inteiro já contaminou: há questões deixadas para trás quando dessa nossa busca irrefreável pela satisfação ordinariamente mundana, extraída às pressas de nossas vidas mais que corridas. Há indagações que deixamos de fazer com sinceridade - e com igual sinceridade buscar suas talvez pouco agradáveis respostas -, pelo inescrutável medo de "perdermos nossa credibilidade" e sermos humilhantemente ridicularizados e menoscabados até mesmo pelos mais próximos de nós. Não foi isso que quis Jesus dizer, em Marcos 6:4, Novo Testamento: Nenhum profeta é tido em pouco senão em sua pátria e entre seus parentes e em sua casa

Poucos não serão os espectadores que sairão da sala de cinema com a impressão de ser um filme "meia boca". Imagino-me por quê. Meia boca não seria nossas vidas a nos empurrar ao inevitável fim, escravizados pelo trabalho e acabrestados por uma questionável superficialidade de valores diariamente postulada pela grande mídia? Vivemos cada vez mais, mas paradoxalmente cada vez menos, cada vez pior, à medida que poucos são aqueles entre nós que, rodeados por esse inferno de bestialidades e besteiróis que nos sufocam, conseguem divisar um horizonte mais amplo às suas vidas, que não o mecanicamente financeiro, corriqueiro e ulteriormente ba-nal. Verdadeiramente entrever e atribuir um sentido à própria vida, esquivando-se desse contagioso individualismo ultranarcísico que nos assola, eis o desafio proposto aos poucos (ou seriam muitos?) que o queiram por fim enfrentá-lo. Ora, se a vida nesta abençoada terra é irremediavelmente finita, o que esperamos nós?

Transparece no filme esse embate aparentemente tênue, mas em essência visceral, ao que eu agradeço tê-lo visto. Muitos de nós estamos cansados de vermos a velha e gasta fórmula de heróis e vilões holywoodianos, não importa de qual maneira seja readaptada, pois cujo fim já sabemos de cor e salteado. Não me surpreende, portanto, que o mesmo diretor de Menina de Ouro (Million Dollar Baby, 2004) tenha proposto uma reflexão inquietante e que nos define como seres humanos. Agimos como dignos representantes dessa nossa espécie em desconstrução e decadência frente a uma cultura pop que nada nos responde no que mais nos diz respeito e é mais unicamente nosso? Agimos?

Assistam e me contestem.

***

¹tradução do texto original grego pelo P. Dr. Frei Mateus Hoepers, O.F.M. 9ª edição, editora Vozes Limitada (Petrópolis, RJ, 1973).

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Bão dia, São Ão

Minha peregrinação
No deserto do sertão
Onde eu conheci São Ão
De chinela e tamancão

Ele ria e dizia
Faz um sol de meio-dia
Essa minha travessia
É um banho de água fria

No meu corpo quase nu
Esfolado pelo sol
Trago a vaca que fez mu
Entoado em si bemol

E por pouco a chifrada
Nesta pele depenada
Não fez um rombão enorme
Onde o intestino dorme

Eu fiquei foi mais esperto
Nunca mais cheguei tão perto
Doutros bois de cara preta
De espingarda de espoleta

Ai, mamãe, que é qu'eu fiz
Nesta vida de aprendiz
Pra nascer tão infeliz
Co'esse rosto bonachão

Se fui salvo por um triz
Foi porque o fado quis
Co'essa linda flor-de-lis
Recheada de emoção

Respirar o ar do mar
Por aqui não consegui
Só o belo bem-te-vi
Pude ver no céu silvar

O pedreiro desta terra
Faz do alto sua mansão
O joão-de-barro é fera
Jamais erra uma mão

Pelejei com a enxada
Chapéu coco na mia cuca
Esse cabo que machuca
Grita, berra, urra e brada

Capinei, rocei, suei
E gritei: E-í E-í e Ei
Ô-í ô-í ou, eu vou
Procurar em mim o ouro

Ouro fino, ouro preto, ouro
Branco de joias reais
Elas em mim valem mais
Que um simples, fixo agouro

Predestinado da vida
Tão precoce e resumida
Por rezas e esconjuros
Prisioneiros de seus muros

Onde eu conheci São Ão
Rima de libertação
Forte como a explosão
De um vivo e rico Não

Não à mão que esmurra e bate
Nas bochechas escarlates
Dessa moça nova e bela
Pra mantê-la sob a sela

Não a todas bagatelas
Ditas por um Zé Ruela
Cuja vida é mentir
Com astúcias seduzir

Se eu amo a aventura
Foi devido à vida dura
Adoçada à rapadura
Quando a noite vinha escura

Foi devido aos meus amigos
Os meus cães qu'eu sempre sigo
Me livrando do perigo
De focar meu próprio umbigo

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Não quer...

Minha mão na contramão
Torto escreve, reto apaga
Não é mão de homem são
Nem herói de uma saga

Quer carícia, mas afaga
O papel de cor pastel
E a moça de anágua
Tão longínqua como o céu

Quer as curvas da mulher
Mas só acha o caderno
Despe, dobra, toca o terno
A frieza da colher

Quer cabelos anelados
Para enrodilhar os dedos
E com toques saciados
Relembrar de manhã cedo...

Quer o talhe de Iracema
Romanesca e rebuscada
Sua voz doce e amena
Convocando ao tudo ou nada...

Quer... apalpar superfícies
Planas e heterogêneas
Bruscas, lisas e difíceis
Como as montanhas do Quênia

Quer, bem-me-quer, malmequer
Se são flores ou quereres
Se são cores ou mulheres
Escrever a mão não quer.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ato de Cidadania

Um grande amigo meu pediu, a todos que pudessem, ajudá-lo lendo o pequeno post no blogue do grupo dele: LINK

Parece que para o projeto dele ser viabilizado será levada em conta a quantidade de votos (clicando no coraçãozinho abaixo do artigo) e de comentários, preferencialmente comentários que gerem feedback dos autores (fazer uma pergunta é um jeito de gerar feedback...). Já li, votei e comentei.

Eu agradeço por ele, já que ele é um grande camarada meu.

Muito obrigado!
\O/

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Mouro Mar

Desmanchando a machadadas
Chagas dum amor doente
Xícaras de chá deixadas
Cheias de vil aguardente

Nas prateleiras ruídas
De minha fiel estante
Onde um dia vi saídas
À mia vida inconstante

Por só ser um ser humano
Em um mundo animal
O único bicho insano
Dividido em bem e mal

Como eu posso ser um deus
Se resido neste corpo
Se vejo dejetos meus
Como besta serei morto

E memória infalível
Nunca tive nem terei
E o sublime alto nível
Não pertence nem ao rei

Sobre o trono como um mono
Babuíno empoderado
Assombrado em seu sono
Com um mundo inalterado

Por reger e comandar
Sob o peso da coroa
Tudo no mesmo lugar
E a inércia amaldiçoa

Longas noites sem dormir
Debruçado em seu cachimbo
E as volúpias do devir
Lascivamente sorrindo

"Ficarei louco", murmura
Poço de sexo e cobiça
Minha mente é uma tortura
Se aqui ou na Suíça

Pouco importa onde estou
Sigo sendo sempre o mesmo
Sem saber o que eu sou
Singro esta selva a esmo

Miro o céu e as estrelas
Abundando o fundo breu
Minha vida quero enchê-la
Mas o quão vazio sou eu

E se olho o denso mar
Auriverde glauco azul
Pura glória de estar
Norte oeste leste sul

E não mais me ensimesmar
Em vãs vaidades chãs
Maravilhado no mar
Feminino das cunhãs

Das sereias endeusadas
Prata cobre açafrão
Como um conto de fadas
Onde o mal e o bem estão

Sabiamente separados
Numa oposição polar
Inatravessável a nado
Mouro mar a marulhar...