sábado, 12 de março de 2011

Além da Vida (Hereafter, Clint Eastwood, 2010)

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Eastwood teve a brilhante ideia de reproduzir a catástrofe ocorrida na Indonésia em 2004: o tétrico tsunami, cujas imagens percorreram os ávidos olhos televisivos e internautas do mundo inteiro. Abrir um filme dessa maneira, convenhamos, prende sem esforço a atenção do espectador.

Não bastasse isso, temos o excelente ator Matt Damon em um dos papéis principais, protagonista de filmes da qualidade de Gênio Indomável (Good Will Hunting, dir. Gus Van Sant, 1997) e O Talentoso Mr. Ripley (The Talented Mr. Ripley, dir. Anthony Minghella, 1999), numa das performances mais convincentes de sua carreira. Se na maior parte dos filmes nos quais Damon atuou ele se se mostra infalivelmente sorridente e sedutor, aqui ele pouco sorri e se apresenta consternado com um dilema: usar o seu dom (ou seria maldição?) da clarividência, ou tentar levar o que a sociedade denomina uma vida normal.

À semelhança de filmes como Amores Brutos (Amores Perros, Alejandro González Iñárritu, 2000), Crash - No Limite (Crash, Paul Haggis, 2004) e Babel (Alejandro González Iñárritu, 2006) , neste último filme dirigido por Eastwood as vidas de distintos personagens se cruzam e nos deixam a indagar: a que ponto nossas vidas inevitavelmente se entrelaçam às de outras pessoas, impactadas da mesma maneira que nós? Aproximamo-nos daqueles que nos podem ajudar de maneira absolutamente acidental? Ou haveria algo místico e mágico tramando invisíveis fios de ouro ao nosso redor?

Como o audacioso e às vezes injustiçado filme Babel, Além da Vida propõe uma improvável ("forçada", como já tanto ouvir dizer de Babel?) união entre os protagonistas, uma "globalização", assim por dizer, da relação entre as pessoas, mas desta vez pondo em maior evidência a oposição entre experiências limítrofes à morte e a derradeira opção por seguir vivendo, apesar de tudo, que esses personagens tomam.

O amadurecimento desses heróis e heroínas do dia a dia aqui representados se dá de modo doloroso, envolvendo rupturas de laços familiares, afetivos e uma retomada da autoconfiança no curso de suas vidas, após terem sido vítimas da profunda descrença e incompreensão alheias. Aonde quer que vão deparam-se com barreiras, simplesmente por expressarem uma maneira de enxergar o mundo (ou, antes, o além-mundo) alternativo ao estrito escopo de uma sociedade materialista, no pior sentido que esse adjetivo pode abarcar: vive-se uma vida espiritualmente vã, cerceada de necessidades imediatas, e mesmo após desgraças de proporções enormes nos atingirem, poucos são aqueles que se permitem uma reflexão mais adensada sobre quem são e o que, afinal, querem com a presente vida.

O filme não faz senão mostrar que os vigaristas e os falsos profetas e gurus roubam a cena desse mundo "esotérico" (tomou uma desproporcional e incrédula conotação pejorativa esta palavra), os primeiros sapientes de sua má fé, estes últimos em autoengano quanto aquilo em que creeem. Turvam esses mágicos ilusionistas as águas de um rio já suficientemente turvo devido aos nossos próprios preconceitos, inculcados desde cedo pela abjeta efemeridade de valores do oco mundinho ocidental no qual vivemos, e que o mundo inteiro já contaminou: há questões deixadas para trás quando dessa nossa busca irrefreável pela satisfação ordinariamente mundana, extraída às pressas de nossas vidas mais que corridas. Há indagações que deixamos de fazer com sinceridade - e com igual sinceridade buscar suas talvez pouco agradáveis respostas -, pelo inescrutável medo de "perdermos nossa credibilidade" e sermos humilhantemente ridicularizados e menoscabados até mesmo pelos mais próximos de nós. Não foi isso que quis Jesus dizer, em Marcos 6:4, Novo Testamento: Nenhum profeta é tido em pouco senão em sua pátria e entre seus parentes e em sua casa

Poucos não serão os espectadores que sairão da sala de cinema com a impressão de ser um filme "meia boca". Imagino-me por quê. Meia boca não seria nossas vidas a nos empurrar ao inevitável fim, escravizados pelo trabalho e acabrestados por uma questionável superficialidade de valores diariamente postulada pela grande mídia? Vivemos cada vez mais, mas paradoxalmente cada vez menos, cada vez pior, à medida que poucos são aqueles entre nós que, rodeados por esse inferno de bestialidades e besteiróis que nos sufocam, conseguem divisar um horizonte mais amplo às suas vidas, que não o mecanicamente financeiro, corriqueiro e ulteriormente ba-nal. Verdadeiramente entrever e atribuir um sentido à própria vida, esquivando-se desse contagioso individualismo ultranarcísico que nos assola, eis o desafio proposto aos poucos (ou seriam muitos?) que o queiram por fim enfrentá-lo. Ora, se a vida nesta abençoada terra é irremediavelmente finita, o que esperamos nós?

Transparece no filme esse embate aparentemente tênue, mas em essência visceral, ao que eu agradeço tê-lo visto. Muitos de nós estamos cansados de vermos a velha e gasta fórmula de heróis e vilões holywoodianos, não importa de qual maneira seja readaptada, pois cujo fim já sabemos de cor e salteado. Não me surpreende, portanto, que o mesmo diretor de Menina de Ouro (Million Dollar Baby, 2004) tenha proposto uma reflexão inquietante e que nos define como seres humanos. Agimos como dignos representantes dessa nossa espécie em desconstrução e decadência frente a uma cultura pop que nada nos responde no que mais nos diz respeito e é mais unicamente nosso? Agimos?

Assistam e me contestem.

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¹tradução do texto original grego pelo P. Dr. Frei Mateus Hoepers, O.F.M. 9ª edição, editora Vozes Limitada (Petrópolis, RJ, 1973).

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