sábado, 13 de setembro de 2008

A Rosa do Povo

Começarei a escrever sobre os livros que leio. Aliás, ler não é um passatempo (abaixo o anglicanismo hobby! diriam os puristas), mas um "ganhatempo", e cada leitura nos acrescenta algo. Bem, sem circunlóquios.

Li a Rosa do Povo ontem. Já tinha participado, no primeiro semestre deste ano, de uma palestra de vestibular, no Centro Cultural da Juventude, sobre o livro. O magistral professor, com sua interpretação inequívoca da obra, praticamente nos instou a ler o livro por nós mesmos. É duro perder as anotações, mas devo dizer que foi muito inspiradora a explanação desse ilustre, inominado professor.

Li o livro para a escola e vestibular, o que seguramente não tira o mérito da leitura, de qualquer forma. Sempre que leio poesias, ponho-me de guarda para os trechos que despertam alguma correlação com o que penso, às vezes um ou dois versos, iniciais ou finais, ou mesmo concatenados ao longo do poema, que despertam alguma fagulha dentro de mim - a fagulha que revela alguma identificação que temos com o que foi exposto.

Treze desses pequenos excertos seguem abaixo, com o que ponderei sobre cada um deles. Ei-los:

1.[Carrego Comigo]
"Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível."

O que é este "algo indescritível" que anda consigo? Será a alma? Certamente que sim. Imagine-se, você, a descrever a alma: terminaria por descrevê-la de forma cada vez mais abstrata, até não lhe sobrar mais palavras, porque, de fato, pouco sabemos do etéreo dentro de nós. Pouco ou mesmo nada, se decidirmos por largar, definitivamente, o eufemismo apaziguador de lado.

2.[Nosso Tempo, parte VIII]
"O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme."

Como o eloqüente professor nos expôs, na palestra mencionada no início, Drummond desejava colocar-se, como poeta, em algum lugar dentre a humanidade. Algum lugar que retivesse sua importância, não só para delatar ou explicitar as inconformidades socias - supostamente implícitas ou subjacentes -, mas, também, de alguma forma contribuir para o fim dessas "injustiças". O que é o poeta no mundo contemporâneo? É uma questão que habita cada poema do livro. O que tem ele a dizer, a expressar de seus sentimentos, frente à angústia de ter um Sentimento de Mundo? O sentimento, algo subjetivo. O mundo, em contradição, objetivo, visto de longe, como um todo composto por partes, mas, inevitavelmente, um todo. E ele busca compreender internamente o que é esta coisa externa que nos impele a gritar, a chorar, por vezes a rir e a dele debochar. Quem é o poeta ante aos Tempos Modernos? Eis a questão que o ledor deve ter em mente.

3.[Uma Hora e Mais Outra - dois versos finais]
"[...]pois a hora mais bela
surge da mais triste."

Quem nunca assistiu àquele filme que faz as lágrimas rolarem pela face, de tão comovente? Pode pertencer a virtualmente qualquer gênero, porque a experiência de chorar, assumindo que você não é uma carpideira contratada, é essencialmente individual. Mas o triste evoca o belo, e o belo nos faz, muitas vezes, cair aos prantos. Seja o chorar de alegria ou de tristeza, ou ambos juntos, como muitas vezes ocorre, mas o belo recorre ao artifício das lágrimas, com ou sem nossa vontade. Uma atrocidade nos faz chorar. Guerras, imagens consternadoras, crianças indefesas em um mundo de adultos à la Martim, de adultos armados. As injustiças contra a mulher, a interferência no livre-arbítrio desta, justificado em sistemas machistas, falocráticos, chauvinistas. Mas desses momentos pungentes nasce algo novo: nasce a Rosa do Povo, uma rosa feia, em meio ao asfalto, ao cinza da urbe estressada, virulenta. Mas, sem dúvidas, uma flor. É feia, mas traz ao mundo o belo. O belo que há dentro de si. É a flor que traz na mão o poeta.

4.[Anúncio da Rosa]
"[...]Já não vejo amadores de rosa[....]."

É
um mero verso, aparentemente sem valor, porque vem entremeado a um parágrafo. Porém, é este o verso que remete diretamente ao título: quem são os amadores de rosa? Já não os vê mais, o poeta, Drummond. Serão eles transeuntes a cheirar o perfume exalado pelas rosas nas calçadas da cidade? Podem até ser, mas, neste caso, Drummond está a se referir ao sentido conotativo da Rosa. Os amadores de rosa são os que buscam algo além do chavão, do lugar-comum, do clichê. Releia o título e preste atenção: "Anúncio da Rosa". Quem o anuncia, senão Drummond? E quem é Drummond, senão o poeta? E quem é o poeta, senão o que vê, ou melhor, busca, incasavelmente, ver o "por trás dos bastidores"? O por trás das cenas, o que é sub-reptício, as indiretas, as ilações, tudo o que não salta, de pronto, aos olhos do observador comum. Está, pois, Drummond a anunciar a Rosa e a dizer que os amadores de rosa são poucos. Com seu anúncio aumentarão em número, despertarão os dormentes, acordará a multidão? Quem sabe...

5.[Resíduo]
"[...]E de tudo fica um pouco
Oh abre os vidros da loção
e abafa
o insuportável cheiro da memória[....]."

Drummond está a discorrer sobre o incenso que queima, o inceso da memória, que não pára, não cessa de revelar-se a nós. A memória é invencível, ela está sempre a nos mostrar as facetas escondidas de quem somos, e sua fragrância é freqüentemente intolerável. Não queremos reler o passado, não queremos reencará-lo, peitá-lo mais uma vez. Já passou, já é passado. Por que enfrentá-lo novamente? Mas a memória não nos deixa em paz. "De tudo fica um pouco", e o odor de certo nos virá às narinas...

6.[Morte no Avião]
"[...]Fecho meu quarto. Fecho minha vida."

Mais uma vez, um pequeníssimo trecho, de simples seis palavras. Mas ao analisá-las, vê-se a labuta do poeta: Fecho meu quarto. Três palavras. Fecho minha vida. Novamente três palavras. Um ponto separa uma tríade da outra. Um ponto fecha as duas. O que é o fechar o quarto? Veja você mesmo como o poeta, "amador de rosas", é capaz de transcender uma ação tão vulgar de "fechar [a porta d]o quarto", para o ato de "fechar a vida". E fechar a vida desperta no leitor uma abstração delirante. Fecho [a porta d]a minha vida. Eis a morte, poética e trabalhada de uma forma que Drummond soube fazer tão magnificamente em Morte no Avião. Anos atrás, antes mesmo de 2006, meu irmão me mostrou este poema inesquecível, sibilando as palavras "Olha que foda esse poema!" Talvez nem ele se lembre. Mas quem o viu pela primeira vez, não o esquece jamais.

7.[Desfile]
"[...]Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver[...]."

Cada poeta tem um certo modo de ver, isto é indubitável. Cada qual com seu aparato subjetivo, influenciado pelos arquétipos comuns a todos, genialmente expostos por Carl Gustav Jung, psicanalista que, ao contrário de Freud, merece ser lido na íntegra, sem medo de ficar paranóico ante à sexualidade. Desculpe-me, caso tu sejas um Freudiano inveterado, mas ao entrarmos no campo da psicologia, que está presente no trecho acima, torna-se necessário dar nome aos bois, e, aqui, Jung e Freud se entrelaçam, pois um revelou os arquétipos, comuns a todos nós, e o outro, o Inconsciente, o Id, o Ego, o subjetivo, o particular, o individual. Drummond afirma que, ele morrendo, com ele morrerá uma determinada forma de enxergar o mundo. O que não deixa de ser verdadeiro. O grande quebra-cabeça é formado por grandes pensadores, que enxergaram, cada um, certo aspecto que ficou obscuro para outro, e assim por diante. O que um viu, foi o que o outro deixou de ver, e vice-versa.

8.[Como Um Presente]
"[...]É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A identidade do sangue age como cadeia,
fora melhor rompê-la.[...]"

Tal trecho, devo dizer, é de difícil interpretação, porque, nesta parte em especial, minha "bagagem cultural" bem possivelmente tenha sido um pouco diferente da tua. Em 2004 e 2005 eu andei bem entrosado com ascetas-escritores, se é que se pode denotá-los assim, entre os quais G.I.Gurdjieff e I.P.Ouspensky. Segundo seu relato, nas antigas tradições esotéricas do Oriente, os que desejavam a vida espiritual, comparável, grosseiramente, à vida monástica, deveriam largar família, parentes, amigos, o mundo. E ingressavam numa escola especial, onde treinavam movimentos, exercícios e danças, cujos objetivos eram a elevação da alma, o transcender do espírito. Eles ficavam sob os auspícios de mestres, que, por sua vez, já haviam sido lecionados por mestres anteriores, pertencentes a uma seleta linhagem, conhecedora das próprias origens da tradição esotérica (por favor não confundir com os supostos gurus da atualidade, a corruptela do esoterismo em sua forma mais grotesca). Entre as muitas danças por eles realizadas, a única divulgada é a dos dervixes rodopiantes(link para vídeo no youtube), que seguem a vertente sufista do maometismo. Releia, agora, os três versos, para fazer sentido o que escrevi. Era exatamente isso que os ingressantes tinham em mente, para poderem incursar em uma vida que os isolaria do restante do mundo. Os laços eram rompidos, sem peso na consciência. Caso tenhas interesse, há um filme que deveria figurar entre os 250 melhores do mundo da lista do imdb, chamado "Encontros Com Homens Notáveis" (original: Meetings With Remarkable Men). Ele está disponível para baixar pela web, e legendas em português são facilmente encontradas buscando-se no google: "Meetings With Remarkable Men em português".

9.[Idade Madura]
"[...]Antes de mim outros poetas,
depois de mim outros e outros
estão cantando a morte e a prisão.[...]"

O poeta é o dissidente, o que fala sobre a morte e a prisão enquanto as pessoas estão a falar da alegria e da felicidade. Que prisão é esta, a que Drummond se refere? Será a material, a de grades e ferro, superlotada em quadrículos de concreto? Não. É a prisão que jaz dentro do homem, a prender-lhe o pensar, a derrotá-lo antes do vôo, a dizer-lhe incessantemente: "Perdeste. És um fracassado". São as grades que o impedem a todo momento, o cão-guia que o conduz às paisagens dantescas, aproveitando-se de sua cegueira à la Mito da Caverna. O poeta des-venda o véu da morte. O poeta des-cobre o caixão denegrido pela sociedade. O poeta encontra a morte e diz a ouvidos surdos: "Ei-la como é!". Poucos lhe dão ouvido, daí Drummond dizer que antes dele vieram outros poetas, e depois dele virão outros e outros...

10.[América]
"[...]Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado."

É um poema que merece ser relido. E, somente após atenta releitura, enfim comentado.

11.[Visão 1944, última estrofe]
"Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
-mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados."

Foi o segundo poema que mais me marcou. Mostrou a guerra sob outros olhos. A compreensão dele se faz fundamental para quem anseia pela resposta à pergunta: o que é guerra?... leia-o, e saberás.

12.[Os Últimos Dias]
"E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global[...]."

Meus comentários estão ficando enxutos não porque estou cansado, mas, sobretudo, porque estes últimos merecem ser lidos na íntegra, e o meu comentário só serve de incentivo a quem não os leu, e de um empurrão para relê-los, a quem já se deu o prazer de desfolhá-los. Este é especialmente perfunctório. "Qual lâmina"(figura tirada de algum poema contido em A Rosa do Povo), ele alcança o cerne da questão: "cada homem é diferente, e somos todos iguais." Como sublinhado por minha professora de Literatura, Drummond é o "poeta cerebral". Cada verso é trabalhado, seja ele sem rimas ou métrica, mas desprovido da mensagem não será. Leia a segunda linha e note que ele usa "[cada] homem é diferente"..."e somos todos iguais." Perceba: primeiro ele constata, como de uma distante tomada cinematográfica, que "cada homem é diferente" - até aí, nada dignamente poético. Para, em seguida, afirmar "e somos todos iguais". Há dois fatores poéticos nesta derradeira afirmação. Em primeiro lugar, o "e". Drummond diz "e somos todos iguais", contrariando o já bastante comum "mas somos todos iguais". Para o poeta, não há antagonismo. Não está negando ou contrapondo a primeira afirmação. E, em segundo e último lugar, ele vai do longínquo e impessoal: "cada homem é diferente", para mergulhar de cabeça no "e somos todos iguais". A segunda frase não só deixa de expressar uma contradição, como expus, como também coloca-o dentro do coletivo denomindado humanidade, dentre os demais homens. É como se ele estivesse a bradar: "eu pertenço a esta homogeneidade heterogênea!" (e não o inverso).

13.[Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin, parte VI, duas últimas linhas]
"[...]ó carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
[caminham numa estrada de pó e esperança."


Se tu já assististe a Charles Chaplin, reassista (como eu, não se arrependerá). Caso não o tenhas feito ainda, faça-o com urgência. Tempos Modernos (1936) não se sobrepõe aos, em parte, menos conhecidos: O Grande Ditador (The Great Dictator-1940) e Em Busca do Ouro/A Quimera do Ouro (The Gold Rush-1925). Essa "tróica" de filmes chaplianos merece ser assistida e, ao menos uma vez, reassistida. A exaltação com que Carlos Drummond canta Charles Chaplin não é, de modo alguma, falsa. Chaplin soube mostrar a esperança e a alegria nas mais duras cenas desses três filmes. Chaplin comendo a bota de couro; Chaplin dando bundadas no Globo Mapa Múndi e fazendo um discurso em prol da humanidade de, literalmente, arrepiar os pêlos; Chaplin comicamente preso entre as engrenagens... são cenas relembráveis... cenas que, desta vez, não exalam o "insuportável cheiro da memória"...

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