Eu estava lendo sobre a questão indígena da reserva Raposa/Serra do Sol neste domingo, e recortei tudo referente a esse assunto, dos jornais Folha e Estado. Como sempre me interessei em antropologia e tenho inclusive alguns livros sobre o assunto (especialmente sobre índios) em casa, acho que posso contribuir para uma leitura crítica deste tema que tem tudo de atual. É um longo
post, mas foi, também, um longo trabalho de dois dias e espero que o artigo não esteja muito complicado de entender. Eu mesmo pesquisei várias coisas que não sabia, como, por exemplo, o que é "homologação de terras", e descobri que esse termo que à primeira vista parece ser tão complicado, significa "reconhecer oficialmente [as terras em questão]". Bom, boa leitura para os corajosos ^^
Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e considerado "o" antropólogo da atualidade, tem o seguinte a dizer sobre os conflitos envolvendo indígenas e rizicultores (informalmente chamados "arrozeiros") na distante reserva Raposa Serra do Sol (Roraima):
"As terras não são dos índios, mas da União. Eles têm o usufruto, o que é bem diferente. Já os arrozeiros querem a propriedade."
Para o professor e antropólogo, não há por que os indígenas serem vistos como uma ameaça à soberania nacional.
Pelo contrário, eles contribuiriam para alcançar a tão chamada soberania. Nas palavras dele (em entrevista ao caderno Aliás):
"A argumentação de que a reserva indígena represente um problema de soberania está mal colocada [porque] há outras reservas em terras contínuas, em fronteiras. É o caso da [reserva] Cabeça de Cachorro, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas. E o exército está lá, como deveria estar. A área indígena não teria como impedir a presença dos militares. O que a área indígena não permite é a exploração das terras por produtores não-índios. Dizer que o Exército não pode atuar é um sofisma alimentado por políticos e fazendeiros que agem de comum acordo, num coalizão de interesses típica da região."
Viveiros de Castro ainda contextualiza a problemática da reserva dentro de um Estado como Roraima:
"Roraima é um Estado que não se mantém sozinho, ou melhor, que depende do repasse de recursos federais. Um lugar onde 90% dos políticos nem sequer são nativos."
Sobre a importância histórica dessa área onde se localiza a reserva para os indígenas, diz o seguinte:
"Os índios foram decisivos para que o Brasil ganhasse essa área, numa disputa que houve no passado com a Guiana, portanto, com a Inglaterra (isto é, na época em que a Guiana era colônia da Inglaterra). Dizer que viraram ameaça significa, no mínimo, cometer um injustiça histórica. Até o mito do Macunaíma, que foi recolhido por um alemão, Koch-Grünberg, e transformado por um paulista, Mário de Andrade, foi contado por índios daquela área, os macuxis, os wapixanas. Eles são co-autores da ideologia nacional."
O conflito na reserva Raposa já tem cerca de 30 anos. Em 2005, quando Lula homologou(
=reconheceu oficialmente) as terras, foi selado o compromisso de retirar, no prazo de um ano, os produtores rurais que estavam dentro da área reservada. A situação, no entanto, somente deteriorou. A explicação do antropólogo esclarece o porquê da polêmica gerada:
"Há o jogo político. Disseminam-se inverdades, como a de que a área da reserva ocupa 46% de Roraima, quando apenas ocupa 7%. As terras indígenas de Roraima, somadas, dão algo como 43% do Estado. Mas a Raposa tem 7%.
Castro ainda aponta para o conflito de interesses existente:
"Sabe quantos são os arrozeiros que exploram terras da reserva? Seis. Não há dúvida de que o que se quer são poucos brancos, com muita terra. [...] As notícias que temos são as de que, desde a homologação, produtores rurais que estão fora da lei atacaram quatro comunidades indígenas, incendiaram 34 casas, arrebentaram postos de saúde, espancaram e balearam índios. [....] Sinceramente, acho que o general [Augusto] Heleno está sendo usado por esses barões do agronegócio, que o envolveram numa questão de soberania totalmente artificial. [...] Ele disse à imprensa:
"O risco de áreas virem a se separar do território brasileiro, a pedido de índios e organizações estrangeiras, pode ser a mesma situação que ocorreu em Kosovo."
Muito bem, o general raciocina como se nós fôssemos os sérvios? Por acaso seria o Brasil a Sérvia e os índios, minorias que precisam ser eliminadas?"
O exemplo abordado pelo antropólogo é relevante: o general Augusto Heleno está exacerbando os perigos, para polemizar. E, já neste ponto, está claro que se nos perguntarmos "quem se beneficia dessa polêmica?", a resposta certamente não será afirmativa para os índios, e, sim, para os arrozeiros.
Para reforçar quão artificial é esta polêmica a respeito da suposta "ameaça à soberania nacional", decerto instigada pelos poderosos arrozeiros latifundiários, Viveiros de Castro responde à questão [Existe o risco de reivindicação de autonomia por parte dos índios?] da seguinte forma:
"A terra ianomâmi está demarcada desde o governo Collor [1990-1991] e nunca houve isso. Alguém imagina que os ianomâmis queiram reivindicar um Estado independente, justamente um povo que vive numa sociedade sem Estado? Chega a ser engraçado."
Sim, de certa forma eu concordo que pode ser engraçado, mas se essa hipocrisisia [de que a soberania está em jogo] for repetida diariamente pela imprensa, muitas pessoas podem acabar formando uma opinião bastante conveniente para os arrozeiros que desejam tomar a região. Se levarmos em conta ainda, que soberania é um termo bastante delicado, ainda mais em contextos como "Soberania do Povo Brasileiro em Jogo!" (que facilmente viraria manchete de jornais de direita, por mais cômico que possa soar ao leitor), então torna-se claro que devemos desde cedo nos informar sobre esse assunto, para não sermos "convertidos" pela lábia latifundiária.
Quanto à Amazônia, Castro expõe a dolorosa verdade, para a maior parte de nós brasileiros:
"A Amazônia já está internacionalizada há muito tempo, não pelos índios, mas por grandes produtroes de soja ligados a grupos estrangeiros ou pelas madeireiras da Malásia. O que não falta lá é capital estrangeiro. Por que então os índios incomodam? Porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário."
O
Aliás pergunta, em seguida:
É uma questão fundiária?
Viveiros de Castro: É. Essa história de soberania nacional serve para produzir pânico em gente que vive longe de lá. [...] O que prevalece é o conflito fundiário e a cobiça pelas terras. [...] Em Roraima (Estado em que se situa a reserva) não se deve bater de frente com o Planalto(=governo). Representa esse estado o senador Romero Jucá, que é pernambucano e hoje atua como líder do governo. Jucá tem interesses claros e bem definidos. É dele o projeto que regulamenta a mineração em terras indígenas. Regulamenta, não. Libera.
Realmente, dessa forma fica difícil bater de frente com o governo. Se o próprio governador deseja usufruir de terras indígenas, que deveria estar protegendo, por sinal, então a situação está pior do que eu imaginava a princípio. Castro ainda lembra outro aspecto referente à homologação da reserva indígena Raposa Serra do Sol:
"[...]até que saísse a homologação da Raposa, o que demorou anos e anos, muito foi tirado de lá. A sede do município de Uiramatã, com 90% de índios entre seus moradores, foi transferida para fora da área. Estradas federais cortam a reserva, bem como linhas de transmissão elétrica. A rigor, já não é uma terra tão contínua."
Sobre a temática do índio no Brasil, Castro é contundente:
"[E]ste país reconhece direitos originários e isso, por si só, é um gesto histórico de proporções imensas. O País reconhece que tem uma dívida para com os índios. Apesar disso, reina uma abismal ignorância sobre a realidade desses povos de quem somos devedores."
Outro fato de especial relevância levantado pelo antropólogo está no trecho a seguir:
"Os [índios] da Raposa brigam com meia dúzia de arrozeiros que, por sua vez, não representam o Estado brasileiro. Uma coisa que me parece estranha: encarregado pela ONU, o Exército brasileiro lidera um missão militar no Haiti, mas não consegue tirar de uma reserva indígena seis fazendeiros?"
Aí está o 'x' da questão. Quais são os interesses por trás do governo em relação às terras indígenas? A questão fundiária parece falar mais alto do que a indígena - são os interesses do agronegócio
versus comunidades indígenas, que compõem minorias étnicas, e cujos direitos vêm sendo desrespeitados desde os primórdios da colonização portuguesa. Todos os indígenas do território brasileiro, somados, dão um total de 600 a 750 mil indivíduos, divididos em 225 povos distintos.
Pergunto-me: "Que grupo é mais forte, política e economicamente: os latifundiários, representando o poderoso agronegócio, com grande poder de lobby
(isto é
, pressão) frente ao governo, com seus interesses defendidos por numerosos políticos atualmente no poder; ou as 225 nações indígenas, esparsas e divididas quanto aos seus interesses, todas elas virtualmente sem qualquer representação de peso no governo, isto é, sem voz para reivindicação dos seus direitos?
Viveiros de Castro esclarece tal discrepância de poder político, no trecho abaixo:
"Há pelo menos 70 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, [no campo referente aos direitos indígenas], e todos pretendem diminuir as garantias do direito às terras. Mais de 30 dessas proposições querem alterar os procedimentos de demarcação. [...] Os oito deputados federais do Estado de Roraima apresentaram projetos para suspender a portaria que criou a Raposa Serra do Sol. Toda a bancada é contra a reserva. [...] O que existe, claramente, é a tendência de redução de proteção jurídica aos povos indígenas. E, conseqüentemente, de redução da presença e da soberania da União nessas áreas. (Fonte consultada: Aliás, O Estado de São Paulo, 20/04/2008)
Bom, pessoal, muito obrigado pela atenção. Estarei escrevendo a segunda parte quando chegar da escola, pois minhas costas estão doendo e eu ainda preciso estudar para a prova que vai acontecer daqui a menos de três horas.