Estavam todos se entrosando tão bem. Os olhares se comparavam, entreolhavam-se todos eles. Eles e elas, três cá, cinco acolá. Primeiro dia, todos se confraternizando, irmandade ressurgida no micro-experimento social que construíam - sem a menor consciência de o estarem fazendo. Segundo dia, mais aconchegados, aproximados, amigados. Todos eles. Todas elas. Portas e janelas, sem juízos de certo e de bem, errado ou mal. Tal qual... tal qual uma vida bucólica, campestre, idílica por si mesma.
Comiam, bebiam, tomavam, deitavam. Divertiam-se, gargalhavam, ficavam sérios, mas nunca sisudos. Eram pensamentos e reflexões ímpares, de indivíduos vivendo em conjunto. Tudo junto. Piscina, pingue-pongue, natação, diversão. Cambalhotas, conversas, jogos, ecletismo musical. Nada boçal. Aprendiam a compartilhar tarefas, a ajudar o outro, a compreender as minúcias de relacionamentos e ficarem na sua. Como o seriam mui naturalmente. Queriam paz, sossego, e quiçá sua devida porção de jovialidade.
Pebolim, mestre, detetive, status, pôquer, Natasha, Smash Bros (alguns), filmes (O Último Rei da Escócia, Beleza Roubada, O Senhor Dos Anéis - Duas Torres, Contos Proibidos do Marquês de Sade), vôlei na água, frescobol, montinhos sobre a bóia. Toda uma reunião de brincadeiras - e talvez asneiras, mas quem se importa, fomos felizes - e situações inusitadas.
Terceiro dia: o mais quente, fervente, borbulhante. Foi de fato um dia de Sol e novas descobertas. Terminou como começou: no calor da juventude e na concretude de atividades desenvolvidas em grupo. Auto-descoberta reinou. O princípio era o fim, e o fim, o começo. O tempo não necessitava ser prolongado, era tudo mui pouco premeditado. Não se precisava pensar para trazer o conforto ao amigo. Consideração pelos gostos diversos, pelos hábitos de cada qual.
De repente, o quarto dia terminou em fúria. Prantos, raiva e arrogância mal-contidas, expressadas em meias-palavras, meios-olhares, meios-esgares, mui mal-disfarçados, se é que se precisa asseverar tal obviedade. Trombávamos, soltávamos palavrões cá com nossos botões, esbarrávamos com bancos e cadeiras. Tudo uma sorte de atos falhos que faria Freud se remexer na tumba. O véu da felicidade balouçava com o vento e mostrava uma inquietude, uma certa desobediência, um instinto anti-social.
Puxa! Mas estávamos em sociedade, éramos amigos, poxa! Que angústia de expressão era aquela? Que vento sombrio soprava pela janela? Por quê?
Era preciso fazer algo. E esse algo foi feito. Quatro dos oito se agruparam, sob a motivação de um deles, e, claro, sob a força das circunstâncias. Eram os quatro solteiros. Quatro descompromissados que poderiam tentar uma improvável reconciliação naquela mesma hora, naqueles mesmos instantes - gritantes, gritantes!
Pois aquele que os incentivou ao diálogo e à re-visão do ocorrido puxou a conversa. Puxou também sua cachimbada. Fumo de corda, cortado enquanto a cabeça estava fria. Era preciso esfriar as brasas. Era preciso um gelo para acalmar aquelas mentes jovens atiladas, atracadas. Ninguém queria ouvir ninguém. Todos queriam falar. Mas ele tentou manter a calma, a alma, e as manteve. Que força o dirigia, não se vale deliberar abstratamente.
Portanto eles chegaram num consenso: estavam todos nervosos, a raiva havia emergido. O calmo mar sofrera ressaca, revelara
tsunamis incipientes e altamente destrutivos. Mas, ressaltou o falante, necessário, sim, era fazer uma avaliação das causas, possíveis causas, é claro, pois nem ele mesmo sabia o porquê de tanta adversidade emocional entre amigos chegados, bem-apessoados e relacionados. Com seus interesses e
hobbies, de fotografia à música, de literatura às Artes. Nem mesmo ele sabia porque estava tão rude e tão agitado, tão turbulento em seu imo. Por que aquela sensação ardente, malévola, em suas tripas, em seu cérebro, em suas extremidades. Todo o corpo era uma revolução e uma reviravolta.
A voz de todos havia se alterado. Era entrecortada, cepácea, malcheirosa. Era uma voz agônica, um urro de insatisfação, de desesperança, de desfalecimento. Estavam todos em atrito. Mútuo atrito. O frio não fizera ressalvas à conversa psicanalítica. Tremiam as pernas para afastá-lo, até que foi feita a sugestão de adentrarem e se acomodarem num ambiente mais propício - pois um deles já estava rouco e com evidentes sintomas de gripe.
Sentaram-se, achegaram-se, sorveram gelatina, de uva, de morango - muito pouco desta, por sinal. Que saúva os picara, desconheciam. Procuravam na memória situações semelhantes de brigas intrafamiliares e as compartilhavam - de forma proveitosa. Até que se sugeriu que assistissem a'O Último Rei da Escócia. Viram, um deles dormitou em algumas partes e as ouviu em detalhes de outro, que se encontrava ativo e solícito para os ensonados.
Ela saiu para fazer não-sei-o-quê e, ao voltar, recebeu uma síntese do que se havia passado no decorrer de sua ausência não-explicada. Ainda estavam fumegantes e raivosos, é fato. Não se pressiona um bicho acuado. Ele te pula na face, ele te fere no coração. Tu morres, só. Deixasse as perguntas pra mais tarde, quando a noite já se houvesse ido, e os raios solares pudessem reaquecer e reavivar as almas mortas. E se deixou ficar.
Muito contentes com suas observações no decorrer do filme, persistiram ainda nelas por poucos minutos.
Ela foi se deitar, e os três foram mirar o céu e seus corpos, estelar, lunar. O gelo da varanda não amainara. Foram checar se alguma roupa seca ainda estava no varal. Contaram seis aranhas com cerca de quatro a cinco centímetros de corpo, sem levar em consideração as patas. Viram, embasbacados, a maior delas agarrar uma mosca sonolenta e dar cabo à esperança de sobrevida da infeliz - em frações de segundo.
Una morte. Má sorte, ou apenas a ordem das coisas. Já naquele momento percebiam como era útil e aprazível abster-se de juízos morais ou quaisquer outros que prejudicassem a alteridade e o bom-humor do grupo. Este último saía de voga naquelas últimas horas escondidas da civilização escorreita e urbana.
Com a algidez da noite, restaram apenas dois do lado de fora. Viram no horizonte (uma limpa visão panorâmica percorrendo incríveis 180º) uma coloração glauca - azul-esverdeada, verde-azulada - tingindo e sorrindo. Ressurgia o Sol, o dia - e a alegria. O assunto ia e vinha, e ambos se entendiam. Finalmente. A cor glauca passou a dividir o espaço celeste com traços purpúreos em meio à negritude da noite inda inacabada. O rosicler se fez aparecer. Ah, o arrebol! Quantos arrebóis já não haviam visto aquels dois mancebos, mas nenhum que se igualasse àquele!
Depois das tormentas de um oceano trágico e tempestuoso, o renascer da vida se mostrava nas paletas infinitas da natureza. Nos tons, nos timbres, nos recessos da noite. A transição das trevas para a Luz.
Puxa vida!
E pensar que tudo poderia ter sido dado por perdido!
Quão fracos somos nós.