sábado, 13 de dezembro de 2008

A coerência de Vasily Grossman e Ernst Jünger


Li, seguidamente, Um Escritor na Guerra (A Writer At War), do escritor ucraniano Vasily Grossman, e Nos Penhascos de Mármore, de Ernst Jünger, escritor, este, alemão.

Para a minha surpresa, Jünger foi um nacionalista de estirpe aristocrática, isto é, por muitos anos debateu-se com o conceito de super-homem (übermensch) nietzschiano, segundo o qual a humanidade está dividida entre servos e senhores. Nem todos podem ser senhores, e muitos remanescem servos, não importante a potencialidade de se tornarem senhores. Senhores de quê? naturalmente se pergunta. Senhor de si mesmo. É uma alegoria para um patamar mais consciente, que o homem pode alcançar, somente por meio de infatigáveis esforços, de ordem intelectual, física e emocional.

É claro que, portanto, Nos Penhascos de Mármore é uma obra difícil de se conceituar. Tercio Redondo, o tradutor desta edição brasileira recentemente lançada pela CosacNaify, a conceitua como uma obra alegórico-simbólica. Porque o botânico e escritor Ernst Jünger, cujo irmão fez importantes estudos sobre Friedriech Nietzsche no âmbito literário, adora trabalhar, com vividez e perspicácia, a temática do obscurantismo e do simbolismo dentro deste seu aclamada escrito.

Publicado nos tempos em que o Führer ainda reinava totiponte sobre o solo e os corações germânicos, teve uma publicação polêmica em sua época. Em questão, é óbvio, de ser uma incisiva análise da ascensão e estabelecimento do totalitarismo, se bem que atenuada por seu caráter aparentemente ficcional. Como aponta este talentoso tradutor, várias paisagens descritas no livro correspondem às suas equivalentes reais na Europa, assim como vários dos personagens retratados. Goebbels e Hitler não são exceção no decurso da narrativa.

E o que Vasily Grossman teria a ver com a temática aqui abordada? Ué, é outra questão que necessita ser esclarecida. Cito-o, a começar, pela razão de que Vasily, na condição de jornalista, viu lado a lado aos soldados do Exército Vermelho soviético, os horrores da guerra imposta aos homens comuns, e todo o ônus que a bestialidade bélica trouxe em maior parte aos civis (homens, mullheres, crianças e idosos) do outrora extenso e culturalmente variegado território da URSS, muitos dos quais foram conscritos contra a sua absoluta vontade - e a maior parte dos quais (uma cifra horripilante, superior a 20 milhões) feneceram em um conflito que não lhes dizia respeito.

Por quem haviam sido arquitetados tão maquiavélicos planos? Quem constitui a eminence grise (eminência parda) que se oculta por trás dos bastidores? Isto, decerto, não nos é revelado, até porque seu autor o desconhecia, e porque muitos poucos sobre este planeta têm conhecimento de quem de fato opera os peões e os títeres que são submetidos às leis e às carnificinas humanas. Mas algumas perguntas são respondidas, tais quais: o autoritarismo é obra exclusiva dos nazis? Os nazis seriam mais malévolos do que seus adversários russos? Os inimigos infligiram mais sofrimentos humanos à população civil do que o próprio governo que os combateu? Não pense, antecipadamente, que tal indagação é pueril e estéril.

Comecemos por responder a primeira - e talvez menos polêmica questão: não, o autoritarismo, e em uma dinâmica mais ampla, o totalitarismo político, não são exclusivos a este ou aquele lado. Pelo contrário, Grossman, por sucessivas vezes, foi censurado nos artigos que datilografava diretamente do front e submetia as autoridades superiores. Seu editor não raro deu uma mãozinha para a sua publicação, em virtude de serem exemplarmente bem escritos e por constituirem obras de um espírito jornalístico e inquisitivo consumado. Grossman relatou muitos horrores, aos quais deu o grave epíteto de "a verdade da guerra". São sobretudo as cruezas realizadas contra a população civil eslava (que envolve tanto os povos nativos russos quanto muitos outros, diversificados no aspecto lingüístico e cultural) - isto tanto pelas mãos alemãs quanto pelas próprias conterrâneas.

Se pudesse resumir em poucas palavras, eu (e não Grossman) diria que uma guerra é um conflito em que, sempre, as duas partes saem perdendo. Sim, as perdas se diferenciam pela gravidade e pela extensão. Sim, os sofrimentos se diversificam pelo modo como são infligidos na população. Não, a nacionalidade não faz nenhum indivíduo um ser alheio ao outro, no principal quesito aqui referenciado: a humanidade. Com grande desgosto e amargura, Vasily Grossman é forçado a admitir, neste livro às vezes revirador dos estômagos mais fortes, que os soldados vermelhos russos estupraram e saquearam, talvez até mais compulsivamente do que os próprios alemães, nos seus próprios territórios, retomados das mãos adversárias.

Findando a 2ª Guerra, em 1945, era possível ouvir de dia, relata Grossman, gritos de mulheres, ecoando às ruas através de janelas escancaradas da Berlim ocupada. Quando retomaram o território polonês, os soldados russos pilharam os camponeses que, na verdade, eram seus próprios concidadãos. Grossman reporta, no entanto, ações humanas que merecem todo o digno mérito da atenção: soldados alemães feridos mortalmente, ao implorar por água, muitas vezes a receberam das mãos inimigas, num ato - não direi de piedade, porque estabelece uma relação hierárquica entre as partes, mas - da propriamente dita: humanidade.

Grossman foi criticado ostensivamente e sofreu perseguições políticas (o que mais fortemente ilustra este fato: após ter conquistado um dos mais célebres prêmios literários instituídos na URSS, Stálin pessoalmente riscou seu nome da lista dos concorrentes, consignando a honra a um outro escritor, conhecido de Grossman, que exaltava de peito e alma as autoridades). Durante a vida, não gozou da mesma saúde e disponibilidade de tempo que Ernst Jünger, que veio a falecer com seus longevos 102 anos, um homem extensamente viajado e, ainda, nas cercanias da morte, surpreendentemente em plena saúde física e atividade literária e mental. Mas esse diferenciado escritor russo soube como só ele aproveitar suas oportunidades e salvar a própria pele nos vários riscos em que incorreu ao dormir e viver ao lado daqueles que portavam armas (Grossman foi um exímio atirador, mas não sabemos se infligiu a morte a ninguém, pelo livro).

Ernst Jünger, por sua vez, goza de um mérito equiparável como escritor: tal qual Camus, o qual fez d'A Peste um relato assombroso do que sucederia caso uma epidemia catastrófica assolasse uma cidade. Perdão, se fiz parecer que era essa a intenção de Camus. Não, Camus merece um estudo direcionado a si próprio muito mais extenso e menos deliberado do que este breve artigo propõe. Mencionei-o para efeito comparativo, apenas. O caso é que, tanto Nos Penhascos de Mármore como A Peste, soam verdadeiros. São verossímeis. Tangíveis, palpáveis.

Pensamos: "ué, é como se tivesse acontecido." E é assim que Camus e Jünger obtêm, ambos, enorme êxito em demonstrar o totalitarismo que se assenhora de nós quando menos o esperamos. E Grossman, paralelamente, expõe o totalitarismo que de fato se apossou do jornalismo e da literatura russas sob Stalin.

Boa leitura, se vos convenci da importância de lê-los. Aliás, o fascismo na América já mostrou suas asas... a suástica não tarda a aparecer. Que tal um segundo 11/9 para nos aterrorizar de vez, para, de peito aberto, aceitarmos e nos subjugarmos a leis tirânicas e draconianas? Minhas desculpas, mas algo aqui recende ao incêndio de Reichstag.

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