sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Urbe-orbe, a metrópole que tudo absorve

Urbe-orbe, a metrópole que tudo consome em sua selvageria inigualável:

-Tá vendu aquele macambúziu, cabisbaixo, ali? Todu silenti, queixu impelidu pra frenti, nem pareci genti?
-Veju, veju. Quem seria, essa nossa celebridade magricela?
-É mais um dentri a incontável multidão de ovelhas a pastar nos campus inférteis di uma cidadi dita civilizada.
-Eh, eh. I eu seria um outru comu tantus outrus, loucus soltus pelas ruas, intão?
-Por que loucu? Qui nada. Loucus i lunáticus não são tabeladus a esmu, à tortu i à direita, não é tão simplis comu pareci. Tudu qui é vivu evanesci cum u passar; classificar a esmu é discriminar comu cegu. I cegu num inxerga, inxerga?
-Tá, tá. Mas ondi cê qué chegá?
-Queru, não. Já cheguei. Ficu pur aqui mesmo. Desçu aqui na estação Paraísu. Se issu for o ditu cuju, vamu ver o quê é u infernu ainda. Uma turba dessas, apinhada comu gadu, tá mais pr'uma Comédia, qui di divina num tem é nada. Macacada.
-Ai, ai. Ô visionáriu, eu vou descê na Liberdadi, quais são us augúrius pra hoji?
-Paga adiantadu na próxima. Aí sim nóis prosa direitu, colhendu e semeandu, como nu Evangélhu. (fecham as portas). Malditu apitu! Mal abriu já fecha, a danada?! Vai, segue cambada. Cadê o vaqueiro com a vindima pra tangê us boi brabu i musculosu? Vai, saradão, empurra mesmu, você qui treina tantu pra adquiri braçu de orangutangu, não podi deixá passá a feliz oportunidadi de empurrá, né.

Carros, ônibus, metrô, trens, helicópteros, jatinhos, aviões, motos, skates, patinetes, bicicletas, patins, lambretas barulhentas, caminhões, vans, camionetes, faltam só o cavalo, o burro e o jegue. Falta só a concretude em meio a tanta abstração numérica visual. Incontabilidade reinante - terra incognita, terra da abstração alienadora. Mas esses dois últimos - o burro e o jegue - somos senão nós mesmos, que labutamos que nem uns acorrentados, no fundo, pra conseguir fundos. Mas nada é definitivo. Ah, falta amor também. Falta contato humano, que não seja abraços que nada dizem, e beijos por demais convenientes.

Arranha-céus, edifícios, prédios, presídios, asfalto, pneus, janelas em série, fordianas, condomínios, casas geminadas, casas com tijolos à mostra, na América Latina barrios, aqui favelas mesmo. No tio Sam, slums. Chuva ácida, céu vermelho à noite, Tal é a cidade lotada, inchaço urbano, mega inchaço, ultra inchaço. Ultra violência. Estupro, cídio, cídio, cínio, cínio. Começo é o que não falta.

O visionário segue seu afã diário, no ônibus:

-Entra, multidão, vamu qui cabi mais, ondi cabi um, cabi trezentus - rumbora!
(multidão, várias vozes:) - Ê, quem é esse engraçadinhu aí? Êe, já começa às seis a aporrinhação na vida? Pô, fora essi apertu, tem genti querendu encher logu pela manhã?
-Vamu fazê uma oração pra mudá essi trânsitu, pessoal. Por que mi xingá? não façu mal im dizê a realidadi. Pior qui lata di sardinha essa condiçau. Muitu pior. Porque sardinha vem azeitada e consumível. Cheirosa até. Agora, tem genti aqui qui não passa desodoranti, não aprendeu a lavá suvacu, a usá camisa anti-transpiranti. Cês vê: acorda cedo, anda e pega o transporti. Lotadu, suadu, ninguém qué siqué olhá na cara du outru. Se Guimarães Rosa tivessi pur aqui, ninguém ia reconhecê. É a correria de todu dia, dizem pur aí. Mas qui correria u quê, issu daqui é só pra divergi a todus de uma vida essencial e dedicada à verdadi i ao estudu di nós mesmus.

Ao descer no ponto, o visionário enxerga na margem oposta do rio de carros pessoas degradadas e degredadas, em farrapos, passado mais de século da verídica Farroupilha. Pobres de espírito bem-vestidos. Pobres de fato com olhares perspicazes. Ruas suspicazes, suplicantes, sinuosas, serpentinas, sinaladas em ésse, sestrosas, sulcadas, seixosas, suspensas sobre sombras, sibilantes, sabendo a suor e sáxeas, assexuadas, sem suntuosidade, sem-sabor.

Milhares de partículas de fuligem entram em suas narinas, numa tosse surda. A paisagem se abre e se fecha, veredas suspirantes, ressabiadas. As alamedas negras de sujeira onde passam executivos e funcionários, professores, estudantes, ledores, o centro de uma cidade que arfa de impudores e novas formas de apropriação.

-Qui você faz, senhor?
-Estudu Direitu.
-Pois qui num estudasse...
-Está brincandu comigo?
-Não, somenti ti gozando um bucadu.
-Olha, mulequi.

Diálogos profundos, repletos de conteúdo, como aquele entre João e Maria, após trabalharem por dez horas na montagem de uma exposição:

-É, Ma, não mi agüentu nas pernas, quiria sentá...
-Ah, mas foi bom, num foi não?
-Bom em qui sentidu? U resultadu ficô satisfatóriu, eu achu. Pelo menus, né?
-Não, concordu cum você, mas tô falandu di tudu qui a genti aprendeu, di martelá a pendurá i tal...
-Ah, na hora é bom, né Ma, mas depois a genti cansa i só qué sabê di sentá, deitá e puxá um roncu até u raiá du outru dia. Ah... essi cansaçu todu e depois o repousu é o verdadeiru elixir da alegria. Não há nada melhor, nu'é verdade?
-Pô, cê só pensa em discansá. Ia perguntá si você num quiria i pro cinema comigo, i essi papu di isticá as pernas. Pareci velhu, meu!

Diálogos edificantes, maestria no logicismo empregado, na resolução de problemas. Contextos desprovidos de injúrias e opiniões que nada acrescentam. Desprovidos mesmo de exclamações inverdadeiras e comentários pejorativos sobre outrem. Urbe-orbe, quê mais poderá engolir em sua ânsia de alimento? Resta-nos somente a metafísica de Guimarães para podermos desarmá-la de seus intuitos nefastos.

Os bois ainda ouvirão o garoto que roga pela morte de seu contra-mestre no sono - e trucidarão o algoz num ímpeto brusco que não deixará remorsos.

Há de se ver, Guimarães, há de se ver.

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