sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sonho

Sóbrio e róseo céu lilás
Partido em luz e negrume
Novas que só você traz
Embora eu não me acostume

O estertor do respirar
Corta o fogo, a comoção
Um trator a ronronar
Vejo a morte de Abraão

A última hora: o agora
Foi o perdão postergado
Eis a criança que chora
E afoga o fogo do afago

Nao há possível consolo
Perdeu o colo o calor
Reduziu-se o riso a tolo
Por prantear tanta dor

Infante, o que é a morte?
A vida, o amor, o amanhã...
Sul, oeste, leste, norte
Pálida face louçã

Pagou e apagou-se a vida
Moinho d'águas passadas
A vã prece à paz erguida
Chega a guerra à nossa estrada

Não enxergamos quem chega
Passos pesados e firmes
No pão se passa a manteiga
Não suspeitando de crimes

Quem se aproxima de cima?
E vem do alto olhando abaixo...
Tantas vozes, graves, finas
E na greta eu me agacho

As risadas como estrondos
Estalam as tábuas velhas
Treme as paredes o gongo
Toda a casa se destelha

Cessam os ruídos - gritos
Tomam logo seu lugar
Inflama-se o cor aflito
A alma a lacrimejar

Ouço o clamor da chacina
Desnorteado emudeço
A mente não mais atina
O meu corpo fez-se em gesso

Avanço às cegas no escuro
Tudo imagino e cogito
Ao rastejar no chão duro
Gélido como granito

As pálpebras entreabro
Não foi nada, foi um sonho
Sob a luz do candelabro
Me entristeço e me envergonho...

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Raptada Empatia

Austera sombra silvana
Ambivalente suástica
O meu espírito emana
Da insana Via Láctea

Percorrida madrugada
Só querendo um sinal Vosso
Minha cama arrumada
E sequer dormir eu posso

Quereria eu afirmar
Hoje o dia não me agrada
Sinto falta de um mar
Mas... desculpa esfarrapada

Quentes pés na areia fria
Solidão e completude
A luzidia abadia
No campo inóspito e rude

A penitência era a lei
E por nós era seguida
Mas já pouco agora eu sei
Da sagrada e ida ermida

Pelos vícios volteei
Rebuscando uma virtude
Ser meu vitalício rei
Tão embora a vida mude

Aos céus alcei os meus sonhos
Mal meus pés roçando o chão
Os outros, tão enfadonhos
Eu gigante, o mundo anão

De antemão não saberia
Todos próximos pesares
A catástrofe do dia
Ares nada salutares

O enforcamento da alma
No patético patíbulo
A morte cruel e calma
Deste índio desgarrido

Ó, Sol, teus raios não bastam
Para alumiar-me a face
Por ter crido n'algo casto
Antes o algo me matasse

Mas morrer sem direções
Pasmo, inerte, vegetal
Dado à boca dos leões
Eis o mais supremo mal

Ter crido no colorido
Avesso ao vão preto e branco
Para achar-me aqui tolhido
Cego, surdo, mudo e manco

Estupraram meu orgulho
Restou-me este roto corpo
Na raiva e no ódio eu mergulho
Em meu panorama morto

A perspectiva infértil
Ladra uivosa do meu âmago
Já alojou-se o projétil
Tornando o vivaz em lânguido

Foram-se as minhas proezas
Exaltadas, aclamadas
Minha voz, refém e presa
Corre interminável escada

Fraqueja o brilho celeste
Minha alma gela e inverna
Não foste tu quem disseste...
Ser a vida chama eterna?

Pois a luz ensombreou-se
Mutilou-se a mão da tocha
E verteu-se amaro o doce
Do coração feito em rocha.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Verbo d'O Pai

Pai, que foi que tu dissestes?
Taciturno, saturnino
Quando despi tuas vestes
Roupas tuas de menino

Pai, tu trabalhaste tanto
Extraíste o teu gozo
Teu feitiço, teu encanto
Teu trabalho laboroso

Tutear-te agora é bom
Reavivado recordo
Tua voz e o teu som
Quando estávamos a bordo

Desferindo a mesma terra
Esplainada pelo sol
E ninguém, pois, exagera
O poder do arrebol

No sertão caía a noite
O negrume estelar
Só eu sei o quanto dói-te
Separar-te do teu lar

A dicotomia urbana
Esta nunca nos fez bem
Já cortar com força a cana
Eis a paz que nos contém

Eis a luz que não reduz
A bravura e o vigor
Nosso angu e o cuscuz
Para o suor repor

Acordar co'a corda toda
Pôr a bota, a calça jeans
Nossa mão desperta doida
Lavourar é bom assim

A camisa cobre os braços
O chapéu sobre a cabeça
Para trás o torpor lasso
Cuida co'a vaca travessa!

Leite e aveia, pança cheia
Café, água, pão, manteiga
Borbulha o sange na veia
Quão belo café, mia nega

Pôr o berrante a berrar
No topo do cupinzeiro
Seu ruído rasga o ar
Meu sorriso sai matreiro

Os pés nus entre as formigas
Em defesa de seu lar
As picadas mais amigas
Que se pode esperar

Mirando o arcano horizonte
Vastidão extraterrena
Animo a quem quer qu'eu conte
Ser o sertão mia Viena

A terra é pequena, plena
Nada vale a quem mente
Cravejar na alma esta cena
E retê-la eternamente

Faz dum ateu homem crente
Vislumbrar este luar
Gente que vive entre a gente
O anacoreta tornar

Dizer demais diminui
Enfraquece o imaginar
E passa uma impressão ruim
A rei, sultão e czar

Calar-se então é melhor
Já dizia isso o Pai
E sempre saber de cor
Aonde é que alma vai

Se te escapa ou te acompanha
Isso faz-te cego ou sábio
Se é brio ou mera manha
O Verbo a sair-te ao lábio.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Beirada

Todos dedos deformados
Num pé preto de sujeira
Pela dor, pelos calçados
Pela à vida à margem, à beira

Vida beirando a beira dos beirais
A existência suspeita
Só, suspensa, sussurrada
Psiu! E se for cilada...

Viadutos, minhocões
Pulsa em roda a vida alheia
Lendo em rostos bonachões
Sã saúde duma ceia

Qual foi a última vez...
Sobre a mesa a sobremesa
Um cumprimento cortês
Sem a sobrancelha tesa

Qual foi o dia benquisto
Amado, bem recordado
Sem ser pego para Cristo
Sem a exclusão ao lado

Quando foi a ida infância
Se sequer a possuiu
Pacífica vida mansa
Noites inteiras sem frio

O último olhar carinhoso
Apertado abraço humano
Última instância do gozo
O amor em primeiro plano

A insânia se aproxima
Consciência desintegra
O azul céu soberbo acima
E abaixo a alma em quebra

A mole mão esmoler
Tresandando forte cheiro
Não é homem nem mulher
Súplica ao ouro faceiro

Oiro, prata, cobre esnobe
Estendido ao pavimento
Prece ao firmamento sobe
Do chão sórdido, cruento

Pois eu passo e peço apenas
Ao longínquo Pai Noel
Galgue rápido as renas
Traga o prato mais pitéu.

domingo, 17 de abril de 2011

O Ódio

Ai, o ódio me rodeia
Grande roda a girar
Uma agulha em minha veia
Latrocínio em meu lar

Ai, o ódio me permeia
E range a serra da raiva
Arrendei minh'alma à meia
Sem que a outra parte o saiba

Grito surdo me esfaqueia
O tudo entorna-se em nada
Meu amor prendeu-se à teia
Da aranha alucinada

Ai, qual lado em mim odeia
Esvozeia e vocifera
Desfaz meu paço de areia
Prenhe e pútrida pantera

Ai, inveja, angústia e lágrimas
Resvalando-se mesquinhas
Vingam-se, anulam-se máximas
Quisera eu não serem minhas

Que posso eu fazer, dormir?
Esquecer, lutar, amar?
Ver do apogeu ao nadir
Ébrias vagas deste mar...

Potentes como o tsunami
Tudo arrastam insensatas
Deitaram-me no tatame
Seu peso sufoca e mata

Reerguer-me renovado
Talvez seja a solução
Sem virtudes, sem pecados
Sorridente e folgazão

Mas e quanto a meu passado
Violento e malquerido
Sigo sempre endividado
Meu remorso cá comigo

Atar-te eu quero à correia
Pôr-te o cabresto e o punhal
Ódio, que ao amor cerceia
Germe do azedo mal

Judas, na última ceia
Cínico, ri e sorri
Cospe, escarra e escarneia
Fez tamanho mal a Ti

Não sei se isso aconteceu
Vejo nisso a alegoria
Diferir o Tu do Eu
E a luz que a nós alumia.

sábado, 16 de abril de 2011

Tchau Tristes Dias

Ah! dores da diarreia!
Quase vós me destruístes
Me influindo ideias tristes
Como o rosto de Medeia

Sentir-me um animal roto
Sentado sobre o mau cheiro
Tresandando a podre esgoto
Fétido de vil bueiro

Horas prostrado no vaso
Co'a face rente ao chão
Já não era brincalhão
Mal-amado pelo acaso

E pensar sempre no ocaso
Nessa morte ignomínia
Afogado em poço raso
Desta pútrida vã sina

Ah! Penitente é quem sente
A vida escoar em berros
Extraídos como a ferros
Na marrom e preta enchente

A matéria nauseabunda
Vai jorrando miserável
A verborreia da bunda
Vai rápida como um sável

Mas não é o mar que singra
Em um ar auspicioso
É o meu corpo que sangra
Esse líquido asqueroso

Ai, convolutas da vida
Luta contra a voraz fera
Devoradora quimera
Das digestões espremidas

E venço, afinal! É lindo
Ver um novo sol sorrindo
Esperanças renovadas
Dentre airosas cachimbadas

Sem correr mais ao banheiro
Branca face, pé ligeiro
Rio e gozo do passado
Gargalho maravilhado

Bau bau, desditosos dias
Sopa de arroz e batata
Sem sal, refeição ingrata
Quando acre eu me desfazia

Alegre e festeiro eu canto
Ter-me desfeito do encanto
Que mia alegria roubava
Fazendo a vontade escrava

Um viva à saúde! um viva!
Longa vida ao coração
Pois hoje transborda em vida
São, airoso e bonachão!

***

Que for ler ou já tiver lido Bernardo Guimarães, entenderá este meu poema. E rirá comigo!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Apocalipse

Já meus joelhos gelados
Rejeitam o teu calor
Jazem juntos lado a lado
Enrijecidos, sem cor

Descoroçoado, eu
Inicio a noite só
Acabrunhado no breu
Assimilado ao pó

Sento e sinto o som silente
Da chuva ciscando o solo
É a paz do sono à mente
E a cruz da calma em meu colo

Me belisco a ver se é sonho
O obelisco mais medonho
Sóbrio ergueu-se sobre a prece
Sua sombra sempre cresce

E se prostra à minha face
Nem se eu lhe suplicasse
Pararia a travessia
Do ermo gélido ao dia

Assombrosa transição
Do amplo universo à terra
E os homens, que farão?
Ao destino que os desterra

Rompe o mar, o chão, a serra
Inaudita explosão
O humano jamais erra
E os homens, chorarão?

Mas a paz desfaz o pranto
Faz do sórdido, homem santo
Tudo quanto havia antes
Esmigalha-se em instantes

Ondas, anacondas, bichos
Fogem, ferem-se, fatais
O efêmero luxo é lixo
Matam-se nos matagais

Palavras trôpegas, tépidas
Ah! Aquecem-nos não mais
Das relíquias restam réplicas
Vis, inválidas, banais

Outro beliscão: desperto
A destruição tão perto
Fora sonho ou vaticínio?
Malsão sabor assassino

Dobram os sinos solenes
Qual moça ou moço não teme
Pesadelos iguais, tais
Quais os meus sonhos mortais

Tão povoados de gritos
Infernais e incisivos
Mito do mal dos aflitos
Todos morrem e eu vivo

De que vale essa vivência
Solitária e seca e crespa
Nessa ignorância imensa
Onde o homem é asno e besta

Bateria de andróides
Mecânico, maquinal
Suas ações debilóides
Dignas dum animal

Bem ou mal, pois tanto faz
Tudo o homem é capaz
Mas nada novo o inova
Néscio renasce à cova

Sábios e sabiás não sabem
Tampouco sabemos nós
Ocultos na cruz do frade
Cobertos no albornoz

Escusos perdões, os mesmos
Milhões de línguas, as mesmas
Mentiras reverberadas
Em petas, contos de fadas

Acerba usura o condena
A tirar do outro à marra
O que nunca será seu
Sobre o Sol um Deus ateu

Amarga ambição o atrela
À covardia mais falsa
Deixa o vizinho sem calça
Inda o põe no cadafalso

O patíbulo é justo
O juiz sequer tem custo
Em pôr-lhe as amarras, garras
Férreas, e sobr'ele escarra

As leis de sua nação
Seu Deus Uno, e por que não?
Noções de pátria e traição
Civilizado está. Bênção!

Ó, pesadelo macabro
Azedume do curtume
Sobe-me e cala-me a boca
Geme mia goela rouca

Ruge e ri já arrastada
Mia parca voz amurada
Em corpos, detritos. Caos
O Nada. Minha morada.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Penas

Pintassilgo, pintainho
Pintarroxo, pinta o céu
De mel, de fel, passarinho
Põe à página o pincel

Meu piar apavorado
Por estar sempre apressado
O preço da pressa oprime
Meu pensar já apoucado

Pernoito em profundidades
Intransponíveis metades
Prestes a perder as penas -
Plumas e pôr-me pelado

Aplainado, pobre, apático
Procuro em mim o viático
A pleno voo, pasmado
Aprendo a premir o vácuo

Em meus poros, palpitando
O vazio que me espicaça
Ameaça e me aprisiona
A morte à sorte é mia dona

O ápice, o nada
O nado sem água
O pico, a praia
Aprazem-me não mais.

Sequestraram minha paz
O rapto o roubo a pilha
Meus pertences eu jamais
Reaverei, não sou rei.

Não mais, já mais, sem mais paz
Sem mais pontes aprumadas
A pender no horizonte

Fontes dos meus principescos
Sonhos, hoje pesadelos
Apenas perdi eu tudo.