terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Vida

Fluida, empedernida. Um sopro: tudo lembra e tudo olvida.


Minhas pernas me levaram pelo centro da cidade. Andando depressa e observante, vi o homem no canto da calçada, as costas curvas, cantando música sertaneja de raiz. Sentado num banquinho, se esforçava em entoar alto, que as pessoas ouvissem sua arte. Poucos pararam para escutar as belas palavras. Não lembro se trazia chapéu à cabeça, de quantas cordas tinha o violão, se usava bota ou sapato ou tênis. Não lembro se era calça jeans, nem a cor da camiseta. Na verdade, de pouco me recordo. Costuma-se dizer que o mal observador se lembra apenas do que o impressiona, o restante passa-lhe despercebido.

Lembro-me que sua voz por pouco não esganiçava, que ele tinha as feições de um homem de 65 anos, que seu rosto era macilento, e um tanto repuxado pela quase total ausência de dentes. E mesmo assim cantarolava, e bonito. Via-se que ele acreditava em sua arte, por mais que os transeuntes ocasionais, de índole crítica, buscassem esmiuçar em sua aparência e simplicidade, os sintomas de uma música ruim; ele mantinha-se firme ali, recurvo sobre o violão, rosto voltado pra cima, como a antena que amplifica a transmissão. O rosto que visa o céu.

Esse homem talvez eu não mais veja. A possibilidade na verdade é uma probabilidade. E a probabilidade me diz, numa voz límpida, que uma pessoa jamais deixará de ser uma pessoa, e esse estatuto jamais será reduzido ou realçado pelo o que ela aparenta ser. Vivemos num mundo em que as aparências precisam ser desvencilhadas da essência, porque tratamos aqui de superfícies lisas, luzidias e escorregadias. Precisamos aprender muito para penetrar no âmago das coisas. Dos nós que damos em nós mesmos. Até lá, seremos bolhas em conflito com milhões de outras bolhas, ignorantes do fato que estamos prestes a estourar.

Algo enganoso nos faz pensar que somos dalguma forma fortes e valentes, mas sequer percebemos a fragilidade de tal concepção.

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