terça-feira, 27 de julho de 2010

Santo Atrito

Não sou quem pareço ser
Nem pareço quem eu sou
Quem é este em meu ser?
Quem é este quem eu sou

Se não sou minha aparência
Se nem isto é verdadeiro
O qu'eu posso na descrença?
De não ser por mim inteiro

O que faz desde nascença
A criança do celeiro
Pra vencer a desavença?
De Seu ser cindido ao meio

O que faz em Sua passagem
Assolada sobre a Terra
Para ver sob a miragem?
Sua Paz cingida à Guerra

domingo, 25 de julho de 2010

Teresa diária

Lua minguante. Ó, lua...
Cante esta música tua
Em meu lar enluarado
Respirarei teu recado

Tua lei, o teu ditado
Este mar cruzado a nado
Quando a noite cai prudente
No céu limpo negrejado

Quando a noite cai e sente
O orvalho já gelado
O choro deste parente
Seu soluço entrecortado

A lamúria de um doente
Cujo sonho é pesadelo
O estranho em sua mente
Carrega o sétimo selo.

Inquebrável juramento
Lacre timbrado e lavrado
Este banco onde eu me sento
Não me livra do estrado

Onde deitam os leprosos -
Deitam quietos mas não dormem
Teresa de Calcutá...
Onde há dor a vida está.

***

O Sétimo Selo (dir. Ingmar Bergman, 1957): Um filme extraordinário sobre a vida, e a morte, inelutável. Sobre o sentido de ser e estar neste mundo, que, não raro, supera nossa própria compreensão. Belíssimo filme - admito que preciso revê-lo. Lembro-me apenas de cenas díspares, marcantes, e não do todo, como pretendia agora. Perdão...

Madre Teresa de Calcutá (1910-1997): Esta boa irmã que cuidou dos afligidos pela hanseníase, dos miseráveis e dos desesperançados, sob condições tão insuportáveis, e com uma fé sem tamanho. Impressionante.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Eu sou sul-americano

Eu sou sul-americano
Lá dos campos de algodão
Mãos de calos - mãos de amo
Apesar da plantação

Eu sou sul-americano
Cá nos campos da canção
Onde canta o ser humano
Apesar da escravidão

Eu sou um negro africano
Longos anos desertado
No seu choro o pelicano
Me relembra emocionado

Eu sou alto e muito forte
Não confiem no meu porte
Não me deu a maior sorte
De um dia eu ter digna morte

Eu sou de cor colorido
Preto, moreno e amigo
Olhos, orelha e umbigo
Homem, humano e parido

Eu sou pai do Jazz, do Blues
Pai do Martin Luther King
Eu sou negro e vim do Sul
Serei sempre o rei do ringue

Eu sou pai do Malcom X
Billie Holiday, meu bem
Estou vivo por um triz
Minha voz é como um trem

Passa e fica para sempre
Sarah Vaughan nos cativa
Não há quem jamais se lembre
Da Nina Simone - a diva.

Não há quem se lembre e diga
Isso já foi. É passado.
Pois na noite a voz amiga
Acompanha-nos no fado.

***

Escrito após ter visto o encantador filme O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird, 1962, dir. Robert Mulligan), baseado na obra homônima da escritora, também estadounidense, Nelle Harper Lee. Recomendo-os (o filme, como o livro, que há pouco li e adorei) de coração.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Lelé da cuca

Milhões de passos com pressa
Andando a esmo o caminho
Mil avenidas avessas
Nós nos sentimos sozinhos.

Nós nos sentimos tão sós.
A gente não é plural
Senão um monte de nós
Um nó górgio sem igual

Um grande nó no pescoço
A grande amarra na boca
No cotidiano insosso
Desgraça tão grande é pouca

Desgraça esconder-se em roupas
Engraçado ficar nu
No hospício de almas loucas
Cada um em seu iglu

Nosso manicômio urbano
É totalmente perfeito
Ali - fulano e sicrano
Sonham a sós em seus leitos

Sonham imagens explícitas
Da realização máxima
Papai Noel traz na lista
Suas vontades de lástima

De amar as árvores verdes
Índias impuras tomadas
Nas mãos sedentas de sede
Sequiosas das amadas

Mãos calejadas nos barcos
Vidas guiadas por remos
Podres mantimentos parcos
Seres entre o mar pequenos

Egoístas, cobiçosos
Ó formosos navegantes!
Matem índios ociosos
Os selvagens ignorantes

Os ímpios dalma, os hereges
Adoradores das plantas
Como bem prega o Evangelho
Filhos das grutas das antas

Salvem suas almas
Trucidem seus corpos
Índios sob as palmas
Índios hoje mortos

Sob a cruz religiosa
O cruzeiro estrelado
A Maria milagrosa
Limpadora de pecados

A espada não tem fé.
Nunca teve nem terá.
Mas o mar e a maré
Têm na marca o mal-estar.

O tenso sono pesado
Dos tantos doidos dormentes
A loucura, esse estado
Muitas vezes consciente.

Malogrado ser maluco
Neste mundo tão normal
Onde bate firme o cuco
Para o juízo final...

Eu sou louco - quer um pouco?
Da mia mente ensandecida?
Sou tão oco como um coco...
Cuja água é minha vida.

***

Após ter assistido ao absurdo e genial filme Bad Boy Bubby (dir. Rolf de Heer, 1993)... um dos filmes mais insanos, mais comoventes, mais tragicômicos, mais kafkianos, mais abrangentes, revoltantes, repugnantes, encantadores, calorosos, que eu já vi na vida. E é bem capaz que seja o ápice máximo de todos esses adjetivos. É o paradoxo da vida humana levado ao extremo, sem romantizações de caráter, destino, Deus. Até hoje eu não creio que outro diretor¹ tenha se imbuído da coragem de rodar algo tão fascinante, discrepante, revelador e realista. Algo tão "tudo" ao mesmo tempo, sem pecar por excesso de cautela, ou mesmo por sinais evidentes de ambição. Jamais vi algo como esse filme, e creio que qualquer outro que, por acaso, se assemelhasse, ou, por intuito, buscasse se assemelhar a essa avis rara do gênero (gênero... ultimamente inclassificável e inantecipável), não o alcançaria de modo algum.

Esse filme gerou, por veios e meios indiretos, um poema (o acima) que eu estimo muito. Nele eu busco, na descrição dos navegadores e da "descoberta", cenas de um filme do diretor alemão Werner Herzog (1942 - ), ao qual tive a grata oportunidade de assistir. Chama-se Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972). A descoberta da América Espanhola de uma maneira nada romanesca, portanto, nada ilusória.

Nota:

1. Há diretores que foram longe na unicidade de suas obras, como o próprio estadounidense James Broughton (1913-1999), cujos filmes (uma parcela deles) espantam pelo teor abertamente lascivo, descaradamente sensual, apelando à intimidade de nossos corpos. São difíceis de tragar, confesso, como espectador atônito que sou.

Três filmes de J. Broughton, que foram extremamente desafiadores para mim, por seu inegável teor voyeurístico:

1. Hermes Bird (1979)
2. The Golden Positions (1971)
3. Devotions (1982)

Você sabe quem é...

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Fernando Pessoa

O cão late - a porta bate
Crianças brincam na rua
Cai com estrondo o abacate
E a grácil moça se amua

Prostrada em sua janela
Radiante em seu sorriso
Sabe-se lá o que há nela
Quando passa o Seu Narciso

Seu Narciso, grande e gordo
Bonachão e brincalhão
Evinha, eu beijo, não mordo...
Dê-me cá tua bela mão.

Narciso logo gargalha
Rir é meu maior amigo
Coisa boa é ser canalha
Mas bem isso eu não consigo...

Rir é coisa muito boa
Chorar de rir, pois então...!
Como o leve som ressoa...
Quando tudo é solidão

Como o leve som ecoa
Quando a vida já diz não
E desperta na garoa
O desejo de união

O céu cerrado trovoa
É a chuva, Narcisão...!
O bom Fernando Pessoa
Nos deixou sua emoção

Emoção deste viver
Em versos nossa versão
Maravilhada da vida
Como a chuva no verão.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Almeida Júnior

Olha a passagem do vento
Passagem sequer comprada
De um pétreo punho avarento
Passagem - passou... Passada.

Olha a passagem do vento
Passando, voando além
Um respiro poeirento
Carregado de Belém

Vem vindo o vento passando
De um calor arrefecido
Nas paixões de Marlon Brando
Meu Brasil recém-parido

Olha, olha, olha.. o belo
Caipira picando o fumo
Basta olhar tamanho esmero
Cada traço com seu rumo

Cada traço com aprumo
Almeida Júnior pintou
O roceiro com seu fumo
Ele, sim, se eternizou.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Índio Alado

Cauí, beberagem
Me dê mia coragem
Cauí, beberagem
De volta selvagem

Cauí, beberagem
Meu sonho, miragem
Cauí, beberagem
Mia real imagem

Cauí, anuaí
O pássaro ri
Cauí, anuaí
Mil milhas daqui

Cauí, ó, cauí
E eu, onde estou
Me leve aí
Mia alma voou

terça-feira, 6 de julho de 2010

Tu me chamas

Quando tudo fica mudo
E se impõe o meu escudo
É macio como veludo
E pesado como o luto

Abro o peito já desnudo
Olhos cegos - surdo ouvido
Ensombrece tudo, tudo
É um fardo como o luto

Pelo e pele, todo hirsuto
O frio corpo eu cutuco
Estéril, como um eunuco
Tudo é sombra e tudo é luto

Quanto dura a sepultura
Esta tumba tão escura
O ressaibo da amargura
O eterno que perdura

Quanto custa um susto assim
Duplo meu falando a mim
Aonde eu fui donde eu vim
Morto o gênio de Aladim

Morta a lâmpada sincera
Ó Medusa, mia quimera
O destino que me espera
Na fissura da cratera

Olhos negros da pantera
Temerosos como a fera
Medo vindo de outra era
Tão eterno como as serras

Vales, colinas, montanhas
Estranhas à vida, estranhas
Abismos do breu - do Eu
O réu maior sob o céu

Então surge a tocha acesa
E muge a vaca indefesa
O clarão do lampião
Labareda sobre a mesa

Fogo humano do saber
O ardor aquece o ser
Ó fogueira alvissareira
Lança a luz nesta lareira

Lança a luz alumiada
Na mia erma e só morada
Ó fogueira alvissareira
Chama mais abençoada.