sexta-feira, 25 de julho de 2008

Legítima defesa (com direito a aspas e ponto de interrogação)

Se você visse o que eu vi, também ficaria indignado(a). Pego dois busões pra trabalhar, uma hora e quinze de viagem de ida, um pouco menos na volta. Pois bem, na fila pra pegar o segundo ônibus, vejo, antes de chegar ao ponto, andando, que há quatro pivetes bagunçando lá perto. Chego na fila indiana, um olhando pras costas do outro, mas eu não. Fico de lado pra quem está na minha frente e para quem se encontra logo atrás. De costas somente para o meu busão. E de frente para os quatro pirralhos. Olho pra cara de cada um, não me intimidam. Entro no ônibus. O cobrador já vai logo se dirigindo a esses filhos de mães e pais infelizes com a própria prole: "Se for passar debaixo da catraca nem entra!". Pois bem, não passam debaixo, mas importunam todos os passageiros com a arruaça na dianteira do ônibus. O motorista, atingido seu estressômetro num determinado ponto do trajeto, vira e exclama, compreensivelmente irritado: "Se vocês continuarem fazendo essa baderna aqui dentro vão descer aqui mesmo!".

Sua advertência foi feliz, porém breve. Mais adiante, os menores descem, estranhamente silenciosos e discretos. Cinco segundos depois uma mulher que passara até então desapercebida grita, em um timbre chocante, desesperado: "Cadê minha bolsa? Gente! Eles levaram minha bolsa!!". Pois é. Covardia é a marca desses garotos marginalizados pela sociedade. Mas há uma coisa que urge para ser expressa: se eles agem dessa maneira, continuarão marginalizados e serão os futuros abandonados pela desigual sociedade brasileira. E eu, pessoalmente, não tenho compaixão por eles. Eu labuto até nos finais de semana para receber meu tostão, em contraposição premente a eles. Eu trampo seis dias por semana e vou me deixar ser furtado por quatro concidadãos que nem 12 anos têm? Nem a pau.

Se o cara estiver armado eu entrego tudo. Mas essa pirralhada não vai me levar a merreca que suei tanto para ganhar em um mês inteiro numa jogatina de sorte ou azar. Desejei com todas as minhas forças não ter passado na catraca e ter visto a cena da bolsa desaparecendo fugazmente nas mãos daqueles malandros. E ai deles se eu presenciasse essa ação torpe. Que me chamem de justiceiro. Eu tenho a força e o tae kwon do na veia. Não vou ficar calado diante de uma covardia gritante como essa. Por que eles não roubaram um homem forte? Porque são covardes, porque não tomam riscos. Mas em legítima defesa eu faço questão de tomar os meus riscos. Porque somente quem trabalha sabe como é difícil ganhar o pão de cada dia.

Meu pai nasceu pobre, na roça, na seca, à luz do lampião. Ao sereno das estrelas, ao cantar da maritaca. Sob sol escaldante, estudando de manhã e catando algodão em campos alheios à tarde. Ou moendo cana quando a colheita de algodão terminava. Ou batendo a enchada quando a colheita de cana-de-açúcar findava. E sou filho de meu pai.¹ E estudo e trabalho, e trabalho e estudo, tal como ele. Meu suor não será em vão: sou um bom trabalhador, assim como todos meus companheiros e companheiras de trabalho. Onde está a lógica de roubar um trabalhador? Pergunto-lhe: onde está tal lógica? Suamos tanto para amealhar ninharias, para, no final das contas, virarmos alvos de crianças a quem policiais pouco podem fazer (e não sou a favor de baixarem a maioridade penal, vale dizer)? Que se forem pegas no ato serão mandadas para uma Fundação Casa (ex-"Febém") ou Funabem da vida? Onde não há qualquer possibilidade de conscientização, de vida melhor, de ampliação de perspectivas, de preparo à vida profissional, de aprimoramento escolar ou o que seja??

Há algo de muito errado nisso tudo. Tem um elefante branco morto em meio ao nosso País e não notamos o odor putrefato que a carcaça do mamute exala. Estamos a esmo buscando fragrâncias de rosas e girassóis, sem darmos conta que nos aprisionamos, inelutavelmente, em um lodaçal hiante, em uma areia movediça ameaçadora, porque se torna cada vez mais próxima a nossa vez. Uma máquina burocrática que marginaliza. Eis nosso governo. Escolas sem professores, alunos sem preparo para respeitarem um professor. Eis nossa sociedade. Não é uma sociedade da cultura, mas uma sociedade da aculturação. Têm cultura uma minoria, conquanto outros vêem-se sem qualquer futuro.

É uma puta injustiça social. E quem se fode somos nós. Viva la mierda. Você pisa nela, mesmo sem sair de casa. Não adianta tapar o nariz. Seu calçado tem furos e brechas, e seu pé já entrou fundo. Prepare-se: eis o nosso horizonte brilhante, como país subdesenvolvido, ops, desculpa, "em desenvolvimento". Sim, desenvolvemo-nos, rumo ao buraco onde deveria estar a boca-de-lobo... mas esta também foi roubada, meus caros... chega de hipocrisia. Na Alemanha nazista foi assim: começaram pelos judeus. Tudo bem se você fosse homossexual, eram só aqueles gananciosos e sovinas que estavam sendo enjaulados em guetos, mesmo, não é? Pois, em seguida foram os ciganos. Tudo bem, eles também são um "povo sem pátria", "sem eira nem beira", sem local fixo, "sem nacionalidade", sem "citizenship"(cidadania), não? Mas quando chegarem a você, também não há do que reclamar. Quando baterem à sua porta, não adianta esse álibi mentiroso de que foi repentino, porque não foi. Foi tudo muito gradual, para dizer verdade. Mas a merda sempre cheira quando menos se espera, nas horas mais desagradáveis. E assim é com a injustiça. Mascarada, mas sempre nas entrelinhas, para quem as lê, isto é. Sempre subjacente, subentendida, para quem liga os pontos aparentemente desconexos, obviamente. Implícita, insciente? Pode até ser. Dizer que ela não estava lá quando tu olhaste não lhe servirá de guarda... irá, pelo contrário, deixar-te ainda mais furibundo por não tê-la entrevisto antes. Ela sempre esteve lá, não importa o que diga em tua "legítima defesa". Ponho entre aspas, nesta altura, porque no calor do momento as feras dentro de nós podem ser soltas, mas agora não estou ameaçado, quase encontrando-me conformado, provavelmente como você está agora, confortavelmente posicionado em frente à sua telinha.

O que se esconde de nós? Somente aquilo que não queremos ver. Procure ver aquilo que te perturba. Antes que tape teu campo de visão e te deixe sem alternativas. É tão fácil ignorar... "ignorance is bliss", como já disse algum sábio. O mensageiro morre, a mensagem teima, e fica, e sobrevive. Mas as chamas do fogo mantêm-se vivas com o auxílio do fole. Está ele em suas mãos, agora? Ou tu estás deixando as cinzas obscurecerem o que ainda resta de humano dentro de ti?

Ah, uma observação cabível: antes de me julgar como "justiceiro", ponha-se em meu lugar. Todos os fatos foram descritos, tal como aconteceram. É muito fácil julgar a torto e a direito, não sendo estando você na cama de pregos (não adianta dizer que a massa corporal se distribui, lorota). A afirmação: "defender-se é legítimo" é praticamente indubitável. Mas e se isso colocasse, digamos, sua própria vida em risco? Fá-lo-ia mesmo assim? Última nota: não, a imagem de um herói não é carapuça que me sirva. Talvez sirva-lhe bem. Contudo, como o filme Batman: Cavaleiro das Trevas(2008) já evidentemente demonstra, um herói tende mais à opacidade que aos holofotes sensacionalistas. O verdadeiro herói nunca foi flagrado em ação, porque esquecido, porque visto como lunático anarquista. De qualquer forma, o "verdadeiro", em uma mídia que, sedenta por sexualidade facilmente explorável, põe em destaque a bunda da Gisele Bündchen ao invés de retratar o que acontece nos morros do Rio de Janeiro, é o tesouro dos piratas a ser desenterrado por bravas almas nesses - absurdamente - irônicos "Tempos Modernos"....

É, Charles Chaplin, você mostrou a piada. E muitos sentam-se sisudamente sobre seus supositórios diários sem dar-se conta que nasceram, e morrerão, como tolos. Como pólvora de canhão...


¹Não vou dizer que me orgulho de ser seu filho: chega de clichês bonitos de serem declamados em viva voz, mas inassumíveis quando ninguém encontra-se perto para escutar os falsos brados. Basta-me dizer sua história, porque isto mostra, sobretudo, que - por meio de meus inestimáveis diálogos com meu pai - de sua vida sofrida depreendi lições que não precisarei aprender na marra, tal como foi no seu caso.

Um comentário:

Jefferson disse...

Enquanto isso a mídia alardeia as benesses do crescimento da população economicamente ativa e a queda do desemprego!

E se não podemos mudar o mundo, podemos observá-lo e gritar, como você, aos ouvintes ocasionais. Nada de novo sob o sol, a mensagem vai e vem apesar do desaparecimento dos mensageiros.

Keep going!