quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Amanhã de manhã

A Parábola dos Cegos (1564) - Peter Bruegel,
o Velho
(Óleo s/ tela, 86 x 154 cm)



Nas manhãs que desperto deitado na cama, descerrando meus olhos com dificuldade, noto, não sem me amargurar um tanto, que já trago uma perspectiva de mundo cansada, talvez atoleimada, e é duro levantar-me do leito sáxeo. Não por dores, que felizmente não vieram ainda, mas por perceber que já foi diferente, e não faz muito tempo.

Lembro-me, não sem sentir certo pesar, que antes sorri como as orquídeas lilases de meu jardim: abrem com fulgor suas pétalas na aurora, para fenecer orgulhosas tão logo é chegado o fim do dia. Recordo-me ter certa vez aberto os braços em cruz, o peito estirado e palpitante, entregue a uma paixão que desabrochava, completamente nova, repleto de alegria e desejo. Todavia, quando menos esperava, cortaram minha esperança, como se poda uma árvore. Não obstante, por erro ou infortúnio, arrancaram dessa árvore, que então nada podia suspeitar, não seus ramos putrefatos, mas justamente seus galhos viçosos recém-nascidos, que despontavam para abraçar o mundo, numa expectativa edênica de ingenuidade e sabedoria.

Tão logo os cortaram, senti a dor da punhalada no peito, perdi de arremate os sentidos, retraí-me contorcido, ostracizado. Por um longo período antes desse inglório acontecimento, eu me sentira como um náufrago sem companhia, ao qual cada rumorejar dum novo dia soava como um recomeço repetido e invariável. No entanto, fora-me dada a oportunidade de sonhar de olhos abertos novamente, e, entretido nessa experiência extática, mística e há tanto apagada, distraí-me a ponto de não considerar um bem possível fim abrupto. E abrupto foi. Toda minha seiva borbulhante foi sugada por escarificações cutâneas profundas, e a venda hipnagógica retirada dos meus olhos ainda em deleite, par'eu ser testemunha do espetáculo mais horrorizante. Meu sangue, branco, leitoso e purificado, mesmo denso, escorria impiedoso das chagas recém-abertas - gotejava na relva, ecoava na selva. Ecoava na selva delimitada do meu ser, que quedava imóvil ante à violência jamais vista. Nada estancava a profusão sanguínea. Barbárie.

Meus braços desde então não mais abriram em 180°, na pujança varonil de enlaçar o ser amado. Meu amplexo perdeu a força, e o ósculo, a virilidade. A entrega ao outro deixou de vez de ser incondicional, tornou-se racional, mesquinha, frívola, parcial. Tão longos aqueles breves momentos de gozo inquestionável, total. Há maior tristeza no mundo, que acaso supere a dum pássaro recém-liberto, que de chofre se vê novamente engaiolado? Ele adejava e silvava livre e melífluo pelos campos virginais, sem ousar suspeitar a temerosa mão invisível vir-lhe roubar a vida reconquistada.

Pois sim. A vida propriamente dita é a vida que se sente em curso, em fluxo - a corrente do rio que renova em desova. Germina incólume a vida subaquática, uma multitude de peixes embrionários eclodindo a extensão do organismo materno, gerador. A tênue película se rompe, eis a vida - periclitante. Eis o risco, a gana de peitar a morte, os colhões: tentar a sorte, independente do resultado. Eis a única razão de ser, para ser, só assim crescer.

O pássaro quer voar, e é feliz enquanto o pode. O ser humano quer amar, mas eis uma tragédia que o sacode. De súbito, as grades da jaula retinem no escuro, e já se vê que os olhos estavam firmemente cerrados, em êxtase, no júbilo primordial. Ao medo, sobrevém a dor: as asas feridas no baque da portinhola recusam-se a alçar voo. Os olhos lacrimejantes miram o vazio, o pipilar perdeu o brio, e com eles se vai a última memória de um largo e infinito rio, corredio. Anil e transluzente. Tudo isso a alma capturada sente.

A solidão dói tamanha, que se perde a vontade de comer. Vai-se o brilho, a sanha de viver. Viver? O que é a vida no interior de uma jaula, àquele que até pouco sorvera da liberdade ilimitada, tão-sonhada, realizada?! Aquilo era vida - isto, não mais. Há um parâmetro muito forte em jogo, que não pode ser descartado. O homem livre ou morre ou se adapta à servidão das galés. Mas, uma vez acorrentado, pouco a pouco o remo suado a sangue oblitera a noção integral da liberdade doutrora. O calor, a cãibra e a dor pungente obnubilam-lhe os sonhos que tivera quando de seu veio não-subjugado. Solte-o, e ele nadará até o inferno, ou morrerá tentando, se preciso, isto é, se restarem-lhe forças, ou ao menos parcas lembranças. Sem estas, nada é possível. E, antes disso, procurará desagrilhoar seus mais queridos, seus colegas, seus amigos, semblantes sofridos.

O quinhão restante de vida ao escravo é tão-só o anseio irrevocável pela libertação. Quebrar em pedaços as grilhetas malditas e berrar e gritar e se esgoelar como só pode o feliz homem que se redescobre vivo! Cuspindo o torrão de terra acre que lhe meteram boca adentro, tirando do pelo e cabelo o pó nefasto do chão piolhento da cela da morte. Esse homem, que até então viveu a vida e o correr desenfreado dos dias como uma instância fatal, submetida ao banal, ao pão imundo concocto com cal - este homem, caso preso nova vez, escolherá a morte. Psicossomática, e mesmo assim: morte.

Ninguém é tão forte. Mas, quem sabe, ele possa livrar-se das cadeias sem ser recapturado - e, quem sabe, esperançosamente, ele possa estranhamente novamente sentir-se amado. E, quem sabe, ele possa de novo amar. De olhos abertos entregar-se a quem o ama, reabrir lentamente os braços e expor o peito - desta vez c'os olhos bem abertos, perspicazes. Olhos fechados somente quando lhe couber o fato mortuário. Chega de vendas! De um mundo adulterado por lentes destoantes, que o põem ora em cores senis, ora em tons berrantes. O mundo é, já sem ajuda de instrumentos inacurados, multicor. Se ali houver amor, melhor. Contanto, mergulhar em águas desconhecidas requer cautela.

Nosso homem terá de reaprender a voar. Suas asas, fora de uso, já não podem alar. Seu piar é agora um chiado cacofônico - terá também de reaprender seu canto. Voar de novo dói. Os olhos mareados lembrar-se-ão dos cavos e ermos momentos nos confins da prisão. Mas as mãos malévolas e agourentas serão avistadas à distância, e não mais colocarão em cheque o voo libertário do ex-prisioneiro.

4 comentários:

Marina disse...

Transformando a ferida em algo tão sublimemente bonito (sem sadismo), vc nos emociona.Dizer que a liberdade está no amor, e não na solidão, é como se proclamar um sábio nesse lugar de loucos que adoram a libertinagem bacante.
Como vc mesmo citou Quimera:
"Ninguém se mata. A morte é destino. Só se pode aspirar a ela."

O homem, ou prisioneiro no caso, não é fênix.O amor sim.É difícil acreditar que das cinzas onde lágrimas e sangue se misturam surgirá algo novo, límpido e colorido como antes.E não acreditemos.Não será como antes, nada volta no tempo.Tudo muda o tempo todo...♫
Será desprovido da pureza e incondicionalidade de outrora.Mas se soubermos voltar a apreciar o horizonte do 'todo dia', o sorriso das orquídeas, o simples vento de liberdade hermética no rosto, valerá a pena.Por que a VIDA vale a pena.

beejõ
Longos dias e Belas noites

Fernando disse...

Fico feliz que você tenha apreciado. Acredito que não sou apenas eu quem tenha passado por isso, e compartilhar faz bem pra mim. Se ainda por cima faz bem ao leitor, tanto melhor, não é?

:)

Marina disse...

com certeza, nos faz ver que nossa tristeza não é solitária nesse mundo estranho
beejõ

Carla Souto disse...

Muito bonito, principalmente os três últimos parágrafos (ou estrofes porque me soa poético...). Sinto um som de Joyce, forte, quebrador de respirações. As asas que recebemos ao nascer e que são tolhidas por redes. Gosto.