sábado, 21 de junho de 2008

O Processo (atualizado em 22/06)

Durante uma aula de Documentação, no primeiro semestre de 2008, ao levantarmos aleatoriamente uma das placas de lã de vidro - que constituem o forro dos tetos das salas da Escola Técnica Parque da Juventude – encontramos, surpreendentemente, uma bandeira da Inglaterra pintada sobre nossas cabeças.

Esse foi o pontapé inicial para os achados por vir. Logo após essa primeira descoberta, encontramos a bandeira dos EUA e, por fim, um joão-de-barro azul adesivado sobre o forro da sala dos professores.

É interessante notar que a nossa descoberta traz semelhanças à descoberta da estrutura do anel de benzeno, que foi revelada ao químico Friedrich August Kekulé em um estado semi-onírico, quando ele viu, como em sonho, uma cobra perseguindo, em círculos, sua própria cauda. Sim, nossa descoberta deu-se ao acaso. O fato de sermos estudantes – sobretudo do técnico de Museu – em uma escola edificada sobre as ruínas do Pavilhão 4, da ex-Casa de Detenção Carandiru, outrora um dos maiores presídios da América Latina, sempre despertou a nossa curiosidade. E assim como a ocasião faz o ladrão, ela também pode fazer o artista, o arqueólogo, ou, quem sabe, aquele que dividirá a história em um antes e um depois.

A cobra perseguindo a própria cauda - na mitologia, recebe a denominação de Ouroboros - e a representação do anel de benzeno: semelhança irrefutável.

Qual não foi a nossa estupefação ao encontrar, diante de nossos narizes, os vestígios deixados por alguém que ali estava preso quando pintou a anônima obra, dentro de uma estrutura social virtualmente alheia à “sociedade externa”. Tendo sido saciada a nossa curiosidade de principiante, faltava-nos apenas articular esse anseio por descobrir, desvendar. Porque tudo aquilo que é, de uma forma ou de outra, misterioso ou velado, tem o dom inato de despertar o mais forte interesse. E depois de começado o processo, ao passo que o interesse se fortalece, a desoberta vai pouco a pouco amadurecendo aquele que desvenda - o que tira a venda para ver o que há por detrás.

Ficou acordado que faríamos uma mini-expedição ao Parque da Juventude, no dia 31/05, uma manhã friíssima. Após essa primeira etapa, já equipados com luvas, óculos protetores e máscaras, retiraríamos o forro das salas dos 2º, 3º e 4º andares para ver se encontrávamos mais alguma pintura ou inscrição, enfim, algo tangente aos nossos estudos de Museologia - que engloba sobretudo a preservação e conservação de objetos impregnados de significado, e que possam ser trabalhados em uma Ação Educativa com o público da exposição, por despertarem interesse nas pessoas. E foi o que fizemos, mas abordemos o processo por fases.

No Parque, nosso foco foi ter a experiência lado-a-lado com tudo o que nos remetesse diretamente à penitenciária que já não é mais: caminhamos, portanto, sobre o comprido muro que delimitaria o jamais finalizado Carandiru II, e visitando, também, as ruínas pertencentes a esse projeto de extensão. Na Escola, atentamos às três celas que haviam sido transferidas para o piso térreo, cujas portas eram, para a felicidade geral, originais.

O muro, sólida parede imponente, traz logo à memória o álbum “The Wall”, da banda Pink Floyd. Para quem não conhece, é um álbum com várias faixas cantadas parcialmente por crianças, que rejeitam o sistema escolar devido ao seu caráter, por vezes, ditatorial. E o desfecho do Carandiru foi que este tornou-se uma escola. É uma conexão que não pode deixar de ser apontada: como uma prisão vira uma escola? Qual é o simbolismo de tal transformação?

The Wall, ou, o muro

Nas ruínas, divididas ao meio por uma passarela de madeira e com corrimões, encontramos duas pessoas treinando capoeira. Ora, no filme Carandiru (2003), do diretor Hector Babenco, uma das tomadas registra exatamente essa prática, no pátio central da Casa de Detenção Carandiru: o diretor filma, de passagem, a típica “rodinha” que se forma nesse esporte concebido na cultura afro-brasileira. Portanto, mais uma conexão entre o passado e o presente: embora mudem-se os locais, concluímos que os elos se mantêm com o tempo.

As ruínas

Quanto às celas, muitos de nós fomos tomados pela inexplicável vontade de entrar nas celas e fechar a porta, ficando a sós no interior delas por densos e memoráveis segundos. A vivência não pode ser substituída, nesse caso, pela descrição. Mas o depoimento de um dos integrantes da nossa equipe é bem fiel ao que é estar lá dentro. Confira: “Fora isso, o que me interessou mais foi ter a sensação direta de encontrar-me dentro de uma cela, com a porta fechada. Além da cela ser escura, possui também um quê fantasmagórico, sombrio, quando você está dentro dela, sozinho, entre quatro paredes e uma grade e uma porta, diametricamente opostas. Muitos dizem que a solitária acaba por deixar o indivíduo louco. Não duvido mais.”

O aspecto das celas que mais nos chamou atenção foram, obviamente, as portas. Corroídas pela ferugem, carregam ainda as intervenções nelas realizadas pelos detentos: em uma vê-se retratados São Jorge e o Dragão, pictóricos, coloridos, travando um embate do qual já sabemos quem sairá como vencedor. O preso não estaria fazendo uma alusão à sua própria condição? Ele como São Jorge, o vitorioso, o valente. A prisão como o dragão, ameaçador, perigoso, traiçoeiro, residência da malandragem inata, somado a um poder coercitivo inigualável.

São Jorge & o Dragão: fim reconfortante

Já na segunda porta, encontra-se um grande e assustador olho, mirando algum ponto indefenido quando a porta encontra-se – inofensivamente - aberta. Ao fechar-se, no entanto, a presença do enorme olho faz-se pesada, perturbadora. Quem se encontra lá dentro distrai-se, fecha os olhos, dorme. Mas o olho permanece aberto, dia e noite, torna-se onisciente de tudo que ocorre lá dentro, em uma irônica paródia ao Grande Irmão, figura presente no livro de George Orwell, “1984”.

Big Brother is Watching You, ou, o Grande Irmão te Observa

Por fim, na terceira porta, encontram-se inscrições manuscritas em letra cursiva em ambas suas faces. São as perspectivas religiosas de quem ali esteve. A primeira: “Tudo tem seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”; a segunda: “Confia no senhor perpetuamente porque o Senhor Deus é uma rocha eterna.” E, sob o título “Salmo de Davi”, segue a terceira, e última: “Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias de minha vida (sic) e habitarei na casa do Senhor longos dias.”

Salmo de Davi

As salas foram o passo seguinte. Munidos de todo o equipamento de que precisávamos para nossa aventura, percorremos, sala a sala, até chegarmos à triste conclusão de que a maioria absoluta dos tetos originais haviam recebido uma demão de tinta, o que nos deixou com apenas três pinturas remanescentes. Qual foi a intenção de quem as ignorou? Ou de quem propositadamente as preservou? Sabe esse alguém quão sábia foi sua decisão? Quão importante é esse legado? E, finalmente, que coincidência é essa de ter sido criado o curso de técnico de Museu justamente no edifício erigido em meio às ruínas de uma memória indesejável, recalcada, portanto, demolida? Essas peguntas foram apenas algumas das quais fizemos, em meia-voz ou em alto e bom som, no decorrer do processo. E todas elas dirigem, qualquer um que as pergunte, a uma valiosa reflexão.

Sendo assim, o processo de descobrir pode ser sintetizado da seguinte forma: uma descoberta, não importa qual seja, sempre desemboca numa auto-descoberta. Como tal, ela jamais será considerada irrelevante, porque seu significado encontra-se, antes do que em qualquer outro lugar, dentro de nós mesmos. O que significa nossa formação como técnicos de museu depois da descoberta, e o que esta significava antes? Da mesma forma como a Revolução Francesa divide a história em dois, nossos achados dividem nosso tempo de aprendizado na Escola em dois: o antes e o depois da expedição. A importância de preservar e conservar veio à tona somente após essa experiência única. No final do processo, efetuada a descoberta, percebemos que todo o processo de descobrimento que se passava no nosso exterior – inclusive todos os achados -, refletia o que se dava em nosso interior: a descoberta de nossos papéis individuais dentro de um coletivo, de uma equipe, levou-nos à progressiva individuação daquela experiência. E a individuação, como expôs Carl Gustav Jung, em seu livro “Dialética do Eu e do Inconsciente”(1928), torna-nos mais humanos. A individuação, ao invés de levar a atitudes e pensamentos egoístas, induz-nos à cooperação. Isso porque é somente depois de termos conhecido a fundo nós mesmos que poderemos compreender os outros. E é somente ao compreendermos os outros que se torna possível a verdadeira cooperação, colaboração. Foi dessa forma que o processo de descobrir nos transformou, porque cada um soube o quanto ele significou, porque, no fundo, ele nos individuou. O que se relata aqui, portanto, é somente a ponta do iceberg de tudo o que um termo tão abrangente quanto processo representou, em sua totalidade, para cada um de nós.

(autor das fotos: eu)

Um comentário:

Ju [Rumy] disse...

Wow!
Ninguém melhor para fazer tais descobertas que vcs, do técnico de museu ^^

Achei muito interessante...legal mesmo...=]


bjos!