Infinitude - Dimitriy Polyakov
O que é um homem sozinho quando a doença o abate? O que é um homem só quando o inominável o atormenta? O que é um homem solitário quando suas forças não lhe valem mais? O que dizer da solidão do albatroz sobrevoando o cais, o abismo inenxergável entre terra e mar, o borbulhar das gotas dispersas da chuva, da chuva chacoalhada pelo vento...
O que são esses instantes todos, imesuráveis, incontáveis, que formam nossa vida? Parece-me tão pequena e distante do universo ao ver-me moribundo dia a dia. Sonho coisas terríveis mas não posso fazer nada, senão achá-las fascinantes - em sua grandeza, imaterialidade. Há quem chame de pesadelo o que nos assusta nas horas ermas da noite, fazendo-nos transpirar nos lençóis, e gritar em desespero e despertar transido de medo ao som dos próprios berros.
Eu chamo de iluminação. Passado o pavor, é claro. Nas trevas da escuridão do meu quarto, eu vejo a luz. Não a luz do dia, sagrada seja, mas a luz da minha consciência - terrivelmente alquebrada, em frangalhos, ainda que unida aqui e ali por fiozinhos microscópicos e cambaleantes. Ontem mesmo tive um sonho horroroso, e pasei o dia a tentar escondê-lo de mim mesmo, por mais que o contasse a minha mãe, meu irmão. Sempre sucede assim - primeiro o espanto, depois o encanto, e então o olvido.
Há um mendigo que transita pelo meu bairro e o conheço de vista há anos. Faz bem uns dez anos que o vejo: sempre de chinelo, os pés nus, a cabeça calva e com cabelos brancos, o nariz avantajado, adunco, tez branca. Mais que a minha. Às vezes está em pé, às vezes agachado à entrada de uma loja fechada, às vezes com uma bíblia preta metida nas mãos, aberta, ou debaixo do braço, fechada. Curioso observar aquele que nos vê apenas como mais um. Para ele eu sou um simples transeunte. Mas para mim, ele é a exceção, e se eu fosse um pintor, saberia esboçá-lo como ninguém. Até suas expressões faciais cravaram-se em mim. Curioso, não?
Pois no sonho noturno de ontem esse homem estava na plataforma de trem. Ao longe via-se o trem de passageiros chegando, e e ele inusitamente saltou sobre os trilhos. O trem não demoraria a vir sobre ele, o que me deixou perplexo, meus olhos transfixos em sua figura que deixaria de ter vida em questão de segundos. A aproximação da morte, inevitável, inadiável, é algo realmente terrível de se mirar. Mas nossos olhos prendem-se aos últimos detalhes da vida daquele que decerto deixará de viver, mesmo não havendo nada que possamos fazer. É de uma morbidez insuportável.
Justamente antes do trem passar por cima dele, eu pude vê-lo por inteiro, de frente. Esse senhor abriu seus braços, soergueu seu queixo pontudo e sorriu celeste, majestoso. Era o riso de um possesso, de quem já sofreu de tudo no mundo e mostra-nos como superar as tragédias altivo, entregue de alma e corpo que só a ele soía entender. É preciso ter muito mais que colhões ou vulgar destemor para fazer um tal ato - necessita-se ser dono de si, e ter um objetivo ulterior a esta vida. É um exercício solene de fé. Estar e estar-se presente no presente, sem mais nem menos. Eu tenho tudo o que esse homem não tem: casa, dinheiro, amigos, colegas, um conjunto enorme de conhecidos, um amor terreno para viver - o amor à mulher e da mulher que eu amo e me ama. E tendo tudo isso, perto desse último ato dele, eu não sou absolutamente nada. Nadinha. Necas.
Sou um completo covarde no que tange ao seguir vivendo, não importa por que, por quem, na ignorância ou na sabedoria, no puro egoísmo ou na solidariedade. A sórdida irrelevância da inércia preguiçosa me abraça todas as manhãs e me beija com seu hálito sonífero, anestésico. Permaneço o resto do dia acordado, mas indolente, caprichoso, um fresco, um alguém que jamais dá 100% de si. Um incompleto sem anseio algum por preencher-se. Abominável, mas tão-só similar a 99% dos meus semelhantes...
Meu lema até hoje tem sido seguir vivendo até que um dia me matem, ou eu morra em decorrência de algum acidente, ou doença, ou velhice, ou qualquer outra coisa. Insanidade, provavelmente.
Esse último momento foi divino. Abrir os braços e sorrir supremo ante à morte iminente é algo inaudito, a não ser que consideremos mais uma vez Mohandas Karamchand Gandhi, o Gandhi-ji, o Mahatma, a grande alma. Após alvejado num repente por projéteis à queima-roupa, aos 78 anos de idade e macérrimo de seus religiosos jejuns, pôde ainda resgatar as forças que lhe restavam para evocar o nome sacro de Deus e conceder por essa santa via o perdão ao seu carrasco - sem rosto, sem nome, sem passado e sem futuro. Nem a morte, parece, pega o homem que viveu uma vida frugal e de sacrifícios de surpresa. Nem mesmo a derrocada final deste corpo é vista com maus olhos por sua alma radiante. Fiat lux.
Mas de um mendigo, supostametne como outro qualquer, que habita uma das maiores metrópoles do mundo, o que se poderia esperar? Certamente não que tivesse a audácia de findar sua vida numa iniciativa de martírio sublime. Certamente não isso. Suicidar-se de olhos cerrados, batendo os dentes, trepidando, desesperado, arrependido no meio do ato, com todas as razões e desrazões possíveis do mundo ou extra-mundo, com lágrimas copiosas aos olhos, matar-se pouco a pouco dia a dia e perder lentamente o interesse em viver, na vivacidade, na ação e na transformação e na mudança, é uma coisa. Já entregar-se de corpo e alma à morte com os braços abertos em cruz e um sorriso digno de Jesus é outra. São formas tão distintas como uma pedra e uma flor. Bárbaro seria igualá-las.
O sonho não acabou aí, mas a estória sim. O que haveria mais para contar? A minha angústia naquele instante ante a inevitabilidade da morte de todos que nos são mais caros nesta terra - e, surpresa! - que a morte de um sujeito mendicante naquele momento tenha me doído mais fundo no imo que a morte súbita de um dos meus amigos de adolescência? Sério, o que haveria mais para contar quando se alcança este ponto inenarrável? Acaba aqui um sonho, e nasce um mártir diferente de sua estirpe.
O que são esses instantes todos, imesuráveis, incontáveis, que formam nossa vida? Parece-me tão pequena e distante do universo ao ver-me moribundo dia a dia. Sonho coisas terríveis mas não posso fazer nada, senão achá-las fascinantes - em sua grandeza, imaterialidade. Há quem chame de pesadelo o que nos assusta nas horas ermas da noite, fazendo-nos transpirar nos lençóis, e gritar em desespero e despertar transido de medo ao som dos próprios berros.
Eu chamo de iluminação. Passado o pavor, é claro. Nas trevas da escuridão do meu quarto, eu vejo a luz. Não a luz do dia, sagrada seja, mas a luz da minha consciência - terrivelmente alquebrada, em frangalhos, ainda que unida aqui e ali por fiozinhos microscópicos e cambaleantes. Ontem mesmo tive um sonho horroroso, e pasei o dia a tentar escondê-lo de mim mesmo, por mais que o contasse a minha mãe, meu irmão. Sempre sucede assim - primeiro o espanto, depois o encanto, e então o olvido.
Há um mendigo que transita pelo meu bairro e o conheço de vista há anos. Faz bem uns dez anos que o vejo: sempre de chinelo, os pés nus, a cabeça calva e com cabelos brancos, o nariz avantajado, adunco, tez branca. Mais que a minha. Às vezes está em pé, às vezes agachado à entrada de uma loja fechada, às vezes com uma bíblia preta metida nas mãos, aberta, ou debaixo do braço, fechada. Curioso observar aquele que nos vê apenas como mais um. Para ele eu sou um simples transeunte. Mas para mim, ele é a exceção, e se eu fosse um pintor, saberia esboçá-lo como ninguém. Até suas expressões faciais cravaram-se em mim. Curioso, não?
Pois no sonho noturno de ontem esse homem estava na plataforma de trem. Ao longe via-se o trem de passageiros chegando, e e ele inusitamente saltou sobre os trilhos. O trem não demoraria a vir sobre ele, o que me deixou perplexo, meus olhos transfixos em sua figura que deixaria de ter vida em questão de segundos. A aproximação da morte, inevitável, inadiável, é algo realmente terrível de se mirar. Mas nossos olhos prendem-se aos últimos detalhes da vida daquele que decerto deixará de viver, mesmo não havendo nada que possamos fazer. É de uma morbidez insuportável.
Justamente antes do trem passar por cima dele, eu pude vê-lo por inteiro, de frente. Esse senhor abriu seus braços, soergueu seu queixo pontudo e sorriu celeste, majestoso. Era o riso de um possesso, de quem já sofreu de tudo no mundo e mostra-nos como superar as tragédias altivo, entregue de alma e corpo que só a ele soía entender. É preciso ter muito mais que colhões ou vulgar destemor para fazer um tal ato - necessita-se ser dono de si, e ter um objetivo ulterior a esta vida. É um exercício solene de fé. Estar e estar-se presente no presente, sem mais nem menos. Eu tenho tudo o que esse homem não tem: casa, dinheiro, amigos, colegas, um conjunto enorme de conhecidos, um amor terreno para viver - o amor à mulher e da mulher que eu amo e me ama. E tendo tudo isso, perto desse último ato dele, eu não sou absolutamente nada. Nadinha. Necas.
Sou um completo covarde no que tange ao seguir vivendo, não importa por que, por quem, na ignorância ou na sabedoria, no puro egoísmo ou na solidariedade. A sórdida irrelevância da inércia preguiçosa me abraça todas as manhãs e me beija com seu hálito sonífero, anestésico. Permaneço o resto do dia acordado, mas indolente, caprichoso, um fresco, um alguém que jamais dá 100% de si. Um incompleto sem anseio algum por preencher-se. Abominável, mas tão-só similar a 99% dos meus semelhantes...
Meu lema até hoje tem sido seguir vivendo até que um dia me matem, ou eu morra em decorrência de algum acidente, ou doença, ou velhice, ou qualquer outra coisa. Insanidade, provavelmente.
Esse último momento foi divino. Abrir os braços e sorrir supremo ante à morte iminente é algo inaudito, a não ser que consideremos mais uma vez Mohandas Karamchand Gandhi, o Gandhi-ji, o Mahatma, a grande alma. Após alvejado num repente por projéteis à queima-roupa, aos 78 anos de idade e macérrimo de seus religiosos jejuns, pôde ainda resgatar as forças que lhe restavam para evocar o nome sacro de Deus e conceder por essa santa via o perdão ao seu carrasco - sem rosto, sem nome, sem passado e sem futuro. Nem a morte, parece, pega o homem que viveu uma vida frugal e de sacrifícios de surpresa. Nem mesmo a derrocada final deste corpo é vista com maus olhos por sua alma radiante. Fiat lux.
Mas de um mendigo, supostametne como outro qualquer, que habita uma das maiores metrópoles do mundo, o que se poderia esperar? Certamente não que tivesse a audácia de findar sua vida numa iniciativa de martírio sublime. Certamente não isso. Suicidar-se de olhos cerrados, batendo os dentes, trepidando, desesperado, arrependido no meio do ato, com todas as razões e desrazões possíveis do mundo ou extra-mundo, com lágrimas copiosas aos olhos, matar-se pouco a pouco dia a dia e perder lentamente o interesse em viver, na vivacidade, na ação e na transformação e na mudança, é uma coisa. Já entregar-se de corpo e alma à morte com os braços abertos em cruz e um sorriso digno de Jesus é outra. São formas tão distintas como uma pedra e uma flor. Bárbaro seria igualá-las.
O sonho não acabou aí, mas a estória sim. O que haveria mais para contar? A minha angústia naquele instante ante a inevitabilidade da morte de todos que nos são mais caros nesta terra - e, surpresa! - que a morte de um sujeito mendicante naquele momento tenha me doído mais fundo no imo que a morte súbita de um dos meus amigos de adolescência? Sério, o que haveria mais para contar quando se alcança este ponto inenarrável? Acaba aqui um sonho, e nasce um mártir diferente de sua estirpe.
Pela liberdade do espírito humano. Ponto final.
7 comentários:
Cê escreve demais, cara! Parabéns mesmo! Vou prender meus elogios no estilo, pois nem sei se cabeça eu tenho pra estimar o conteúdo. Enfim, continue nessa! Abçs
Obrigado mesmo, Arthur, do fundo do coração. Também quero ler o que você anda escrevendo.
Muito bom, Fernando, só agora pude ler com calma. Parabéns.
A propósito, já pensou em conversar com o mendigo? Certamente dará textos interessantíssimos.
Muito obrigado, Edison! Ah, sim, pensei em conversar com ele. Mas ontem mesmo estava passando pela avenida e não o vi. Ele deve ir almoçar em algum lugar e depois volta, imagino que seja por isso.
O observador e o observado, bebem da mesma água que Dimitriy ao pintar o quadro, mas do seu modo, cada um pinta o seu.
Nos nuances, conhecemos o autor.
Belo texto!
Joakim, estou te devendo uma visita faz tempo, assim como ao Edison e ao Arthur!!
Obrigado, meu caro :D
O mendigo a que o texto se refere passou um xingamento e um olhar de assassino a mim na rua há dois dias...
Sonhos são sonhos, realidade é realidade...
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