quinta-feira, 10 de junho de 2010

Deslumbrar de um menino

Quem já fez uma criança feliz pode morrer com um sorriso nos lábios. Recordo-me de Natã, no norte de Minas, há pouco tempo, mas um tempo que transcorreu numa tal violência inexplicável, que bem me parece outra vida. Natã era residente da cidadezinha, com seus 6 anos então. Era um pouco doente, tossia uma tosse cheia de catarro no peito, o que o deixava um pouco diferente dos outros de sua idade. Por tomar xaropes e fortes antibióticos, tinha um dos dentes de leite da frente espreteado. Não me esqueço jamais de seu rosto. Eu brincava, chamando-o de "indiozinho". Natã tinha, de fato, as feições de um guri do mato. Cabelo cuia, negro azeviche do brabo, lisinho, escorrido.

Às vezes, sem aparente explicação, Natã corria em disparada, em direção ao meio da rua, pouco movimentada, como de todo bom interior, e ali se deitava, nos paralelepípedos quentes. Permanecia inerte, só os pulmões subindo e descendo, mudo. Gritavam: Natã, sai da rua! Eu ia até ele, o levantava, como se faz erguer um boneco, mas um boneco animado, serelepe, inexplicável. Um original. Não era meramente bonitinho e fofinho e atentadinho como praticamente todo o conjunto infantil do mundo. Sua própria consciência da saúde frágil, seu fenótipo destoante, e seus pais a maior parte do tempo ausentes, transformavam-no numa criança única. Se fosse já adulto, o tomariam logo de cara por louco, e sua exclusão do mundo dos normais não demoraria muito a vir.

Eu me encantava com o garoto. De verdade, como que diante dum objeto raro, exótico, e com o qual poderia aprender profundamente por anos. Ser tão diferente dos demais lhe caía como uma qualidade natural perante os meus olhos benévolos. Admito que ele talvez pouco pudesse entender dessa minha perspectiva. Não tenho notícias de como ele está hoje, mas desejo-lhe o mais fundo bem. Não o bem genérico que se deseja aos ignotos confrades humanos nas suas empreitadas do dia a dia, ou a má soante "Boa Sorte" que encomendamos a torto e à direita, sem refletirmos que isso soa mais como "Boa Morte" que qualquer outra coisa. É um sinal de que pouquíssimos leram O Apanhador dos Campos de Centeio, Sallinger. Jamais desejariam Boa Sorte novamente, ou não da mesma maneira casual como o fazem hoje, ontem, amanhã.

Natã me fez ver o mundo, reconheço após esses breves-longos anos sem vê-lo, a partir dum novo ponto de vista. Há em alguns um tesouro rutilante escondido sob uma opacidade normalizante. Sob a camada de poeira, reluz algum ouro, algumas vezes, em alguns. A opacidade d'alma dos fracos de espírito que subjuga os bem dotados deste mundo.

Após tê-lo conhecido, não, eu jamais acreditaria outra vez na baboseira de que todos nascem iguais, ou são iguais, ou em algum momento tornam-se iguais. Nem a morte iguala ninguém. A homogeneidade é a síntese da decadência do homem, uma bola de ferro que lhe esmaga e lhe tolhe o que nele há de melhor, o que dele distancia-se da mesmice deste mundo. Tudo isso ele me ensinou, em sua mudez habitual. Natã, você já viu o muro daquela casa? Era uma casa abandonada, ou melhor, um terreno abandonado, mas não baldio. Pelo contrário, era rico em bananeiras, que despontavam por sobre o muro, e uma ou duas mangueiras, verdejantes e folhosas. Dava mesmo vontade de ver se por detrás do alto muro se ocultava o jardim tupiniquim de um príncipe desleixado com suas posses terrenas, como que cansado da temporalidade escravizante e massacrante deste mundo.

Não. Foi a resposta do piá. Mas um "não" curioso, indagativo, reticente... Então vamos ver! Peguei-o pela mão, no pique atravessamos a rua e disse a ele: Confia em mim! Levantei seu corpo pesado com um pouco de esforço até ele alcançar com suas mãos o limiar do muro, e lá do alto ele tomou um impulso com os braços e manteve-se assim, olhando. Seus pés estavam suspensos sobre os meus ombros. Quietara. Quer descer? Ele assentiu com a cabeça, e desceu. Depois corremos desenfreadamente para cá e para lá na rua, e enfim quietamos. Ou antes, eu me quietei. Ele de costume já era quieto e não se revelava. Mas entrevi naquele instante uma luz de êxtase rebrilhando em seus olhos levados, e pude compreender em silêncio tomos de sabedoria.

O que ele havia visto, guardava-o para si como o maior presente do mundo. O presente de um Robin Hood, pois alguém, um estranho àquela terra, que por fim o pôde entender uma vez na vida. Ou ao menos alguém que a ele não procurou se impor, como soía acontecer. Aventura, loucura. O impossível tornara-se possível com uma mãozinha amiga, sincera, fato único na vida. O regozijo de seu interior inflava-lhe o peito, que chiava baixinho, em movimentos lépidos, e suas narinas espelhavam aquele movimento de trepidação de um júbilo, um entusiasmo fantástico. Cintilava em seu rostinho ajeitado de Macunaíma uma vivência que jamais se apagaria de sua memória. Poder ver o insondável, então, era uma possibilidade mais que teórica ou hipotética - era plenamente real! Aquele alto muro a delimitar fronteiras, o permitido do proibido, o passível e o não passível de ser visto, era - surpresa! - trespassável com o auxílio de alguém como ele, alguém que se sentisse um tanto perdido e restrito em um mundo moralista e conservador.

Não pode, menino, é feio! Deixara de existir na minha presença, que lhe complementou a unicidade de sua alma, cujo ritmo fluía numa velocidade destoante das dos demais. Natã, tantã, natã, tantã, na tã tan tã. A musicalidade de um coração que se conscientizou, de súbito, da importância irreprimível de se estar aqui nesta terra agora. E aos diabos com as fúteis conveniências. Deixe aos diabos os fracos, nós somos fortes, Natã. Teu nome ecoa. Tão fortes como as teimosas batidas do que há de mais caro em nosso peito. Tantã.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Haicai Insubmisso (XIII)

A morte: inexorável
Ficar velho: irreversível
Há o agora.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Meditações

Já faz tempo não medito
Nem vejo além do papel
Não fico acima do grito
Da minha torre de babel

Já faz tempo não escolho
Vou me deixando levar
O olho não olha o olho
O pulmão não toca o ar

Como se o mundo encolhesse
E a vida em si eu temesse
Sinto-me só - cinzas e pó
Nada me ergue ou soergue

Abra as portas e comportas
Quero sair, não me importa
Para onde eu possa ir
Se como monge, ou faquir

Quero sair, pouco importa
Este pousar da mão morta
Sobre meu crânio escaldante
A boca do averno hiante

Queimo no inferno de Dante
Teimo em estar na Geena
Tudo é real e pulsante
Mia vida soa pequena

Batem grilhões e grilhetas
Cadeias e cadeados
Peias alheias, muletas
Formam sombras do passado

Procuro no escuro a luz
Corpos gelados já rijos
Trevas e esconderijos
Meu choro sob o capuz

Meu choro é mudo por todos
Chafurdando neste lodo
Atraídos pelo engodo
De ser tudo sobre a terra

Engolidos na cratera
De seu próprio pensamento
Hoje escravos da quimera
Em seu anseio avarento

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Idílio

Dormi indo pro Tucuruvi
Sonhando pecados
Co'a moça ao lado
Meu corpo suado
E ela que ri

domingo, 6 de junho de 2010

Quem sabe amanhã...

Pálido, esquálido, inválido
Por onde andara o bom homem
Cálido, quente e humano
Tornado um lobo inumano

O vento, o frio, a poeira
Uivos, latidos, gemidos
Quer, não quer - queira ou não queira
Vejo o bem destituído

O bem maior almejado
De tranco em tranco ao baranco
E o velho em seu cajado
Em seu passo débil e manco

Vista turva, vã saúde
Assim valeu-lhe a virtude
Valeram-lhe anos, enganos
Lutou no fétido pântano

Mais de um doce-amaro amor
Chamuscou-lhe inteiro o peito
Deu-lhe cor, rubor, ardor
E c'os anos foi desfeito

Olha a magia do dia
Meu velho, sinta a alegria!
Irrompendo de seus prantos
Comovendo os próprios santos

O dia alumia a mágoa
Lava, esfrega, enxágua
Vexame ficou, morreu.
Agora surge outro eu

De esperança, mudança
Frenética dança
Embalado no ritmo
E ritos de pajelança

Passam-se horas, dias
Ribomba a melancolia
Mais forte, aguda no corte
Remexendo na bacia

Cantarola sobre a morte
De feitiços a quebrantos
Juras, perjuras, encantos
Macumba, canjerê, catimbó

Ai qu'enlaça e atiça!
E fatia lagartixas
Conjura uma má poção
E me atira à solidão

Vejo em delírio arcanjos
Fadas, morcegos e anjos
Brutos, ogros, e marmanjos
Espio e volto ao sono. Credo.

Morrer é bem esquisito
O antes e o depois mesclados
Lado a lado presente e passado
O sussurro é silêncio e é grito...

Psiu.

sábado, 5 de junho de 2010

Haicai Insubmisso (XII)

Um, dois, três.
Contou?
Pois se fez.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

KKK

O vulto a vagar vampiro
Ébrio em ruelas sombrias
Lê em voz alta um papiro
Cheio de galimatias

Crê ensimesmado nelas
Parcas linhas emporcadas
Vêm à sua mente vielas
Jamais antes palmilhadas

Não sabe se lá esteve
Parece que sim, recorda
Padeceu de muita sede
Asfixiado na corda

A turba ajuntou-se toda
Ria, gargalhava e ria
Corpos linchados na roda
Sob o sol do meio-dia

Encapuzados. Macabros
Eram homens de família
Um bando de desalmados
Progenia da matilha

O vulto velho virou-se
Faces negras, voz suave
Era mia gente na foice
Hoje ninguém mais o sabe.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Haicai Insubmisso (XI)

Branco no preto
Preto no branco
Bombom

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Pequenas Grandezas

Eu quero um novo acordar
Maravilhado admirar
O luar, cheio de ar
E gritar, gritar, gritar

Gritar feliz com meu jazz
Lamber picolés sorrindo
Um riso alegre tinindo
Nos lábios em sonhos meus

Feliz como quem sonha com Deus
Só no sono o luxo de crer
Em um mágico bruxo
Em seu ateliê

Repleto de quadros, tintas
Paletas, pincéis, estantes
A vida em instantes
Lidos por belas cartomantes

A vida jactante, pungente
Pulsante - um jorro infantil
Ingênuo e genial
Rojões explodindo. Uau.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Haicai Insubmisso (X)

Qué o quê?
Quero nada.
Qué caqui?

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Qual nobre amor

Boa noite, cinderela
Um beijinho bem banguela
Pra ti, mia feia donzela

Bom dia, meiga feinha
Vou visitar a vizinha
Ela pede ajuda, auxílio
Roga socorro, ai qu'eu morro!

S'eu não for até ela
Se não for até lá
Ai qu'eu caio da sela
Se me pôr a amar

Minha adarga e minha lança
Estão prontas pra batalha
Salvar moças já me cansa
Nada há nisso que me valha

Balanceio na navalha
Galgo e corro sobr'a sela
Luto debaixo da malha
Do frio metal do cor delas

Feminilidade, onde?
A brincar de esconde-esconde
Uma grita, a outra urra
Sou sempr'eu quem leva a surra

Ser cavaleiro não paga
Ser bondoso hoje é chaga
Serei mau e cruel. Adeus!

domingo, 30 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (IX)

Minha dádiva da vida
Minha diva, meu divã
Onde estás...?

sábado, 29 de maio de 2010

Poetar Poetisas Monalisas

Escreva a escrita escrava
Fale de flores felizes
Cujas cores e matizes
Resplandeçam como lava

Abrace o amor - a clava
Abandone a todos insones
Da população eslava
Bárbaros feitos de cones

E nós no nosso quadrado
Aparado, facetado
Angulado, quatro lados
Não perdidos, mal achados

Escreva a escrita escrava
O poema começava
A dizer da dor, do amor
Terminou em estertor

E a beleza própria à vida
Deificada, expandida
Deixa então de ser vivida
Ao rimar co'a dura lida

Escreva a escrita submissa
Rezada como uma missa
Posta no mais alto altar

Basta amar e jorrar juras
De amor sempiterno, lindo
Um péssimo gosto infindo

Sucedâneo instantâneo
E pegajoso acréscimo
Da real loucura

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (VIII)

Caixa, caixinha, caixão
Neste caso ser tão grande
Não é uma boa opção

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Senti nela

Vi certo dia uma moça
Cuja face disse assim
Olha nos olhos de mim
Olha-me bem quem eu sou

A moça se foi sem mais nada
Sem sequer uma outra mirada
Sumiu-se abençoada
Eu jamais a vi de novo

Enxergo às vezes a sombra
Da luz emanada por ela
O brusco clarão da vela
Quem terá sido a donzela

Quem terá sido, pois, ela
Uma ilusão senti nela
Sem nome me some a bela
Vertigem singela da vida

A mais bela cena esquecida
A amena sombra amiga
Me aliviou e deixou
Co'a alma ao meio partida

Posso implorar e chorar
Para alncançá-la onde está
Nela me vi - ela está aqui
Eu nunca na vida a perdi

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (VII)

Feiura não é ser feio
É não dizer eu te amo
Eu te odeio

terça-feira, 25 de maio de 2010

Irmandade d'alma

Os cacos de vidro no chão
O cacto espinhudo, irmão
Parecia brincadeira
Até a explosão - de estilhaços

Jorrando em pedaços
Destroços de laços
Fraternos de irmão

Bem maior que nosso sangue
Muito além de nossa raça
É a graça que nos une
E agora nos torna imunes

Às coisas más da boa vida

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (VI)

A melhor mulher, quem é?
A que pega na mão
E não pega no pé.

domingo, 23 de maio de 2010

Comboio bichado

Soca gente no metrô
Pilão na carne moída
Premida, prensada, cozida
Aperta mais, seu doutô

Segunda à sexta me esfrego
Corpos distantes, colados
O sábio olho faz-se cego
Não vê o vizinho calado

Não o vê, não se vê
De cima a tevê
Ciente emudece

Cresce o silêncio oneroso
No túnel infernal
No forno coletivo
O barulho me faz mal

O ruído ensurdecedor
Da mudez cativa
Da nudez coletiva
Ajuntados seres alheios

Metidos em devaneios
O que farão, onde estarão
Olhos no teto, pés no chão
Presos aos próprios anseios

Diário gosto da angústia
Na boca selada
Nos olhos vendados
Ouvidos tapados

Estão todos tapeados
No túnel-túmulo
Sozinhos em seu mundinho
Do fechado cadeado

sábado, 22 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (V)

Um sorriso sincero
Imperfeito que seja
Sempre perfeito será.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

De boa

Eu sabia que um dia
Tudo iria se acabar
Quando choro de alegria
Estou rindo de pesar

Corre cotia
Na casa da tia
Corre cipó
Na casa da avó

A menina bonitinha
Cheirando coca em pó
A imagem do indiozinho
Balançando no cipó

Na rave o doce na boca
Pati e playboy vida louca
Bala solta na balada
Mo cidade alienada

Namorada é que nem roupa
Ó, sente só a pegada
Mina e mano dando sopa
O bagulho é da pesada

Se pá eu vô colá lá
Na real, ficá bem noia
Noite e dia - paranoia
Ei, maluco, eu vô surtá

Sacô, é nóis no pedaço
Nóis na fita, mano brown
Sê certinho é zoadaço
'Só curtindo a pegação

Cê qué coisa melhor, Joe?
Nóis na parada arrasando
Teus truta, teus irmão
Só cara sangue bom

Ô, chapa, tu não gostô?
Vai lá, pede pra saí
Eu não tô nem aí
Vai procurá tua galera
E vê se some daqui

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (IV)

Falta-me ar
E me falta tudo
Meu medo é mudo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (III)

Acordo revolucionário
E durmo burguês
Minha imensa pequenez.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Saco Vazio

O deserto, decerto
Estava à espreita
O céu encoberto
Desd'onde o sol deita

Que sombras enormes
Que sombras disformes
O mundo conforme
A morta colheita

Desd'onde o sol dorme
Desd'onde ele some
Esconde-se a fome
Disforme, à espreita

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Gaiato Meneghetti

Sou o ladrão dos telhados
Juro! Você não sabia?
Salto de telha em telha -
E caio na calha vazia

Vocês podem me apanhar
Podem mesmo me bater
Não sou quem vai largar
O meu jeito de viver

Lá em cima no abandono
Encontro um mundo sem dono
Estrelas-guias, esguias
Astros sem rastros - sem sono

Você não vê o sentido?
Eu vejo o lampejo, amigo
Rastejo, estendido, e vejo:
Não desejo nem almejo

Somente vejo, enxergo
Olho, noto e observo
O negro-escuro dos cegos -
Servos a vida inteira

domingo, 16 de maio de 2010

Confessionário

Não é raiva o qu'eu tenho
Franzido o meu cenho
É meu medo do degredo
Por teu amor terreno

Correspondê-lo é loucura
Ignorá-lo, desrazão
O coração que o atura
Nega a si a salvação

Contesto as profecias
Da castidade santa
Nesta ébria travessia
Me transformo em sacripanta

Do celibato escolhido
Aos prazeres libertinos
Um passo curto miúdo
Ao graúdo desatino

sábado, 15 de maio de 2010

Vovô

O ar insiste em entrar
Pelas frestas em meu ser
Tão brusco invade o meu lar
E será mesmo você?

Uma senha proferida
Prenhe de significado
Ter mudado minha vida
Quando tudo era negado

Quando tudo era negado
Uma imagem se afirmou
Adeus sombras, adeus fado
O sorriso do vovô

Vovô, ficará comigo
Aquele amor tão fraterno
Teu terno jeito de amigo
Na mais gelidez do inverno

Minhas tão frias orelhas
Você aqueceu co'as mãos
Esse gesto se assemelha
A um amor entre irmãos

Desse gesto eu me nutri
Não quereria outra herança
Modelo maior de amor
Vossa crença na criança

Vossa crença na criança
No fundamento da vida
Onde a alma enfim descansa...
Doce memória esquecida

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Acolá

A água que banha os mortos
Não pode lavar os vivos
Não pode, não pode
E dessa água eu me esquivo

Até quando no entanto?
Bem te digo: mal eu sei...
E mia vida vou levando
Num fértil fair play

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Haicai Insubmisso (II)

Quero morrer. Mas já?
Quero ouvir ainda
O piar do carcará.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Um infinito olhar a penas

O uivo seria ruivo
Se tivesse coloração
O ruivo uivo vermelho
A voz carmim do leão

Encarnados vozerios
Delineando uma lâmina
Donde despontassem fios -
Filetes de sangue - drama

Dentre o rubro pegajoso
Tremeluziria a alma
Enlameada no grosso
Vazar sensabor da calma

E no rutilar do gume -
Cume da ponta afiada
O claro a piscar no negrume
A luzente mão da fada

Cujo sorriso indagasse
Um porquê jamais expresso
Lá - bem de onde o sol nasce
Esconde-se um véu espesso

Olvida-se um ser distante
Seus vagos ecos nos soam
Como sinos neste instante
Os tempos sem fim ecoam

terça-feira, 11 de maio de 2010

Formiguinhas

Era agora a garoa
Amanhã quem saberá
Era agora reza boa
Um céu propício ao amar

Amar, quiçá, as formigas
Em seu anseio pequeno
Suas minúsculas intrigas
Imiscuídas no feno

E o feno tão solto e livre
No paiol acumulado
Quem ali nas trevas vive
Junta as pontas do passado

Todas pontas pontiagudas
Das memórias fugidias
As formigas na labuta
Em sua breve travessia

No passo leve e entregue
Sob a nova luz do sol
Que mais um dia prossegue
Alegre, ao arrebol

terça-feira, 4 de maio de 2010

Amém a mim

Lembro ter um dia acreditado
Na leveza etérea
No sono tranquilo
Nos mistérios simples
Na bondade infinda

No edredom macio
Em dias de frio
Sob o qual me escondia
Vasta imensidão

Sorria por nada
Brincava com tudo
Gritava e esperneava
Jamais quedava mudo

Eu cria nas pessoas
Almas grandes e boas
Eram tão sabedoras
Nasciam professoras

Mas eis que vi a maldade
Todos sentiam saudade
Dos tempos de infância
Eu era criança

E não sabia

Mamãe, você também vai morrer?
E chorei
Lágrimas de verdade

Por que tudo muda tanto
E o mundo vira complexo
Onde antes tinha canto
E em tudo havia nexo

Dormir na casa do melhor amigo
Era o dia mais feliz da vida
E mia vida era infinita
Acreditava na vida
E ela em mim

Devolvam já minha infância
Minha noite eterna de sonhos
Dom Quixote e Sancho Pança
Lidos deitado na fronha

Cavaleiros de quem sonha
Com um mundo imaginado
Para quem não há vergonha
E os amigos são sagrados

Quero a ingenuidade
Simples, dos tempos roubados
Pelo tempo e sua maldade
De instituir pecados

Onde antes jamais houve
Ruindades de gente alheia
A matar meus pés de couve
Mia tenra hortinha de aveia

Eu era mau, mas sincero
E chorava de emoção
Ao contar meu lero-lero
Respingava o coração

Lacrimejava de dor
Que, hoje, eu prendo e seguro
Lábios premidos sem cor
Próprios de um homem maduro

Piá virou homem grande
Responsável, respeitado
Lágrimas de quando infante
Não o levam ao passado

Cunhatã virou mulher
O seu príncipe encantado
É de um mundo rosicler
E faz parte do passado

O sonhado já se foi
E nós fomos já também
Sonhadores do depois
Onde estavam todos bem

terça-feira, 20 de abril de 2010

Permeabilidade

E como posso eu sozinho
Caminhar sobr'esta estrada
Pernoitar neste caminho
Onde reina a navalhada

E como posso eu mesquinho
Entender o universo
Bebum e ébrio no vinho
Derramado nos meus versos

Pinto diante do espelho
Um moço atraente imberbe
Pinta o viço em si o velho
Já tão bêbado se perde

Pede perdão de joelho
A batina no cabide
Sou um verme escaravelho
Mia fé tem dor de artrite

Dor, rinite, celulite
Meu casto corpo está gasto
A nostalgia me agride
Pervago no mar sem lastro

E me encontro do outro lado
Estranha figura eu vejo
Um duplo meu sem pecado
Livre de todo desejo

Liberto de todas peias
Face a face com si mesmo
Sem mais vontades alheias
Fluxo contrário ao esmo

Eis a essência do ser!
Ver-se entregue ao turbilhão
Leve leve esmorecer
No pulsar do coração

Bate bate repercute
Ecoa como a garoa
Dentro, a mãe sente o chute
Eis ao mundo uma pessoa

De déu em déu e de Deus
João, Mateus, Maria
Paria o útero grávido
Ávida fonte de "eus"

Populou-se o multiverso
Povoei-me cá por dentro
Em mim mesmo estou imerso
Gravito em torno do centro

Giram meus olhos na órbita
Dos mil astros da galáxia
Curiosidade mórbida
Volátil essência sáxea

domingo, 18 de abril de 2010

Anuaí


Nasce um pássaro de fogo
Denso silêncio da selva
No principado de Togo
Ensombrecido na névoa

Penas queimadas-carvão
Olhos brancos perolados
Perfuram a negridão
E a tumba do passado

Penetrar a ignorância
As chagas da violência
O destino ao qual se lança
Desd'a virgem mata densa

Crer ainda em homens sãos
Tira suas noites de sono
Um véu se põe entre irmãos
E os lega ao abandono

Como pode alguém ser dono
De alheia alma outra vida
Na alheia terra, o colono
Roga a um Deus fratricida

Ora em sua súplice hipócrita
Nomeia a si ortodoxo
Gera a irmandade inóspita
Engendra o seu paradoxo

Reza a si boas-venturas
Faz do vizinho seu pária
Leva uma vida segura
Entrega o outro à malária

"Demonizar-te eu irei!"
O algoz parece dizer
"Súdito, sou o teu rei!
Curva-te sob o poder!"

Tiranias e massacres
Vê do alto o sóbrio pássaro
Ó, Pandora, não há lacre...
O mundo é o enfermo Lázaro

Haverá hoje um Jesus...
Que o possa ressuscitar?
Sobram mártires na cruz
Negras candeias no altar

Sobram cárceres sem luz
Infames peias no lar
As verdades, quem traduz
Vira oferenda no altar

Falsidades vêm à luz
Quem quererá as olhar...
Mas o pisado alcaçuz
Derrubará o altar

sábado, 17 de abril de 2010

O que o vento não leva


Ver o verde de verdade
Vislumbrar a tal visão
A virtude e a vaidade
Já vêm vivas no verão

Viver sem ver a verdade
Dói-me enquanto humano
Vejo apenas veleidades
O obscuro véu insano

Vilifico minha vida
Em busca de instantes
Desvaneço em mia lida
E vivo inconstante

Em vão verto o vaso
De vinho vermelho e velho
Eu sou oco e raso
E ainda em mim me espelho

Sou o oco eco seco
A ruflar no mar vazio
Trecos, cacos, cacarecos
De meu terreno baldio

Vinténs voando ao vento
Varridos e sem valor
Serei eu este momento
Sem vocábulos de amor?

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Testamento Póstumo


Pensamentos condensados
Num pedaço de papel
Pensamentos lado a lado
Num pedaço infiel

Falsidade ideológica
Eu - nem ali eu estou
Linhas sem eu e sem lógica
Sem meta, bola, sem gol

Quem por acaso aquilo escreveu
É vida sem prazo
Já não é mais eu

É o fundo do vaso
Tão meu quanto teu
O negro do ocaso
A sombra do breu

A flor - outrora se abriu
Sem sequer saber, viveu
Puro azo juvenil
Aquilo jamais foi eu

Entendes? Vejo tua face
Risonha - é um disfarce
A face dalguém a sonhar
Com dor se torna tristonha

A velha tricota alegre
Ignorante da morte
Célere como uma lebre
E nisto está toda sorte

A seta certeira
Virá amanhã
E esta cadeira
Será teu divã

As boas maneiras
Amor, foram vãs
Tornaram poeira
...teu taticumã

terça-feira, 13 de abril de 2010

Diabolismo Endemoinhado na Taverna de São Bento

Entrou um rapaz beiçudo
Ele era coxo e careca
Veio junto um cão-miúdo
E uma serpente irrequieta

Chamava o cão de Diogo
Coisa à toa de figura
Capa-verde cor de fogo
Já mostrava a diabrura

O indivíduo vil e sujo
Mancava no pé de pato
Diz-se amigo do cujo
Inimigo humano nato

Bebia só no caneco
Usava o membro canhoto
Cheirava à coisa o boteco
A bicho mofento e roto

Trabalhou como tendeiro
Bem tramava tentação
Cão-tinhoso e o companheiro
De pé-cascudo no chão

Pé ruim feito pé-de-cabra
Mal-encarado e careta
Sua esposa, a diabra,
Se apelidava Canheta

Eu pensava em coisa-má
Quando entrou o porco-sujo
Olhos mofinos, sabujos,
O seu nome era Diá

"Não devo pro debo
Não sou condenado!
Sou porco-mancebo
Sou o arrenegado!"

"Este lugar é sarnento..."
Foi falando o gato-preto
"Pois tem fala o bicho-preto?!"
E benzeu-se o Seu Bento

Não sei que diga, menino!
Um rabão rompeu a porta
Veio um mau cheiro malino
Veio a diáboa torta

Temba! A cabeça na táboa!
Lá fora o dragão se riu
Rabudo não guarda mágoa
Pé de peia não tem frio

"Na rodovia Anhanguera
Passam muitos bodes-pretos
Grão-tinhoso e a galera
Colecionam esqueletos..."

Pé de gancho, ex-pirata
Foi entrando e logo disse
"O maioral está triste
É a droga do haxixe!"

"Coisa-ruim nunca quis morte..."
Prosseguiu o anhangá
"Nem tem corte a foice d'ele -
Tampouco a de Satanás"

"Rodovia é diabo humano!
O excomungado dianho
Gosta é de briga, que diga!
Ama atrito a diabada...!"

Um treme-terra abalou
O prosear do satânico
"Lúcifer deu um alô..."
A taverna entrou em pânico

Logo adentrou um moleque
"Gosto de fute, cafute
Futebol e muito cheque
Diabretes nuas ao sol"

O pé-preto é bom de papo
Tem o timbre tentador
O diabim é esperto inato
Nem sei que diga é o amor...

A taverna encheu de demo
Anhanga grande e pequeno
E até um bebezinho
Romãozinho Nazareno

O cifé e o demônio
Com sono, bebiam café
Pedro-Botelho, o galã
Cochichava com Satã

Seu irmão gêmeo viera
Era o tal Pero-Botelho
Caolho dum olho e outro
De alcunha Capiroto

Capete Capeta viu
Da porta o aglomerado
Reluziu seu rebolado
Sorriu maligno e malvado

Sapucaio e seu aio
Entraram bem de finim
Na coleira o canhim,
O cachorrinho azucrim

Cafuçu, o Zulu,
Pulou de bute e de bote
"O que vale é o diale!"
Revidava piparotes

Debaixo do chão pra riba
Pulou o grão-diacho
Mordia seu pão dialho
Requentado no tição

"Ê ambiente maldito"
Berrou e gemeu Seu Bento
"Tinhoso não é mais mito...
O Tisnado está cá dentro!"

***

Tarefa: Encontre ao menos cem epítetos do tal!

***

Resposta(dispostos em ordem de aparecimento; as variações de um mesmo termo existem de fato, não foram inventadas!):

diabolismo, endemoinhado (2) [título do poema]

rapaz, beiçudo, ele, coxo, careca, cão-miúdo, serpente, cão, Diogo, coisa à toa, figura, capa-verde, diabrura, indivíduo, sujo, pé de pato, cujo, inimigo, caneco, canhoto, coisa, mofento, tendeiro, tentação, cão-tinhoso, pé-cascudo, pé-de-cabra, mal-encarado, diabra, canheta (30)

coisa-má, porco-sujo, mofino, diá, debo, condenado, porco, arrenegado, sarnento, gato-preto, bicho-preto, não sei que diga, rabão, mau, malino, diáboa, temba, dragão, rabudo, pé de peia, anhanguera, bode-preto, grão-tinhoso (23)

pé de gancho, maioral, droga, coisa-ruim, anhangá, Satanás, diabo, excomungado, dianho, que diga, diabada, treme-terra, satânico, Lúcifer, moleque, fute, cafute (veja com que rimou "fute" e "cafute"... é ou não é conterrâneo nosso?), diabrete, pé-preto, tentador, diabim, nem sei que diga (22)

demo, anhanga, Romãozinho (volte ao poema e veja onde "Romãozinho" foi nascer!), cifé, demônio, Pedro-Botelho, Satã, Pero-Botelho, capete, capeta, maligno, malvado, sapucaio, canhim, azucrim, cafuçu, bute, diale, diacho, dialho (confira o contexto de "dialho"!), tição, maldito, tinhoso, tisnado (25)

***

[Consulta do vocabulário para composição do poema: sinonímia de "diabo" no dicionário Houaiss de Língua Portuguesa - esse auxílio léxico foi imprescindível! -, e do próprio João Guimarães Rosa, minha maior inspiração imagética para compor esta brincadeira lírica ao mesmo tempo culta, alegre, popular e macunaímica. O ateu que ler este poema volta a crer em Deus! Nem queira apostar...]

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Pesadelos d'El Salvador (atualizado em 10/09/2010)


Eu bebi, meu bem, bebi
Pesadelo a noite inteira
Pós o rum co'abacaxi
Quem dera fosse a primeira

Você mugia canhestra
Balia em timbre soprano
Uma cena picaresca
Sem como, onde, nem quando

Monsenhor Romero* estava
Pregando homílias no púlpito
Postura ereta, voz cava
Tudo cessou tão de súbito

Ó branda dita mal dita
Dura, acerba rapa dura
É dita e feita e desdita
Açucarada tortura

Eu bebi, meu bem, bebi
Mas jamais pude esquecer
A cena guardada aqui
Você, o nosso bebê...

Cadê.

***

* Monsenhor/Dom Óscar Arnulfo Romero Galdámez, mais conhecido apenas como "Monsenhor Romero", ou "Dom Romero", foi assassinado em 24 de março de 1980, quando reinava o terror em El Salvador, em mais um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos da América. Ele havia acabado de pregar uma de suas notáveis homilias ("exortação religiosa fundada num ponto da Escritura"), em que debruçava-se sobre a religião cristã para combater com palavras enérgicas e valentes a ditadura que se instaurara sorrateiramente em seu país. O projétil fatal foi disparado de uma distância de 45 metros, atravessando a praça em frente à igreja, suas portas de madeira esculpida abertas, e acertando o alvo em cheio na testa. A mira de um mercenário, franco-atirador, mui bem treinado. Seu(s) assassino(s), assim como os cúmplices e os mandantes do crime, jamais foram condenados - e não há indício algum de que algum dia o serão. Já é tarde. E a justiça não raras vezes falha com o tempo.

Monsenhor Romero era de uma tal bravura que, tendo conhecimento da presença de elementos do setor militar nas missas que rezava, em momento algum mostrou-se inibido em contrariar o silêncio do sistema ditatorial, silêncio ancorado na violência, e esta naquele, num elo inquebrantável de abusos de poder, chacinas e assassinatos promovidos para eliminar todos os - supostos, isto é - opositores. E dessa forma intrépida Dom Óscar Romero contrariava os interesses dos altos escalões militares-políticos em manter o povo - a grande maioria frequentadora dos ofícios litúrgicos cristãos - na mais escura ignorância e sensação de impotência.

Romero restaurava o poder da voz em direção à verdade e desmentia as falácias do governo, abertamente tirano e carrasco. Muitas foram as homilias em que julgou execrável a atitude cínica do governo de perseguir e matar membros do campesinato, e arruinar quaisquer planos de melhorias sociais à miserável nação. Foi um desses homens nos quais a fé suprema liga-se à coragem d'alma, e ambas andam inexoravelmente de mãos dadas. Um dentre esses poucos que podem mudar o coração dos homens alienados para melhor, pela pura probidade e idoneidade de caráter que demonstram em suas ações, e não meramente por palavras dispersas ao vento.

Descanse em paz, Monsenhor Romero. E um brinde malogrado aos nossos tempos tupiniquins modernos de corrupção, nepotismo, propinas, subornos, velados desvios de verba e prosperidade dos oligarcas, aproveitando-se da ignorância predominante da população governada - alienada, viciada em Big Brother, novelas imbecis e seriados televisivos (importação direta da onipresente telebasura estadounidense), e que confiam em demasia no sanduíche (Futebol + "Notícia Ruim" + Inutilidades) extra-light do Jornal Nacional, e extensivamente não-política, não-literária, não-sabedora do que sua estupenda nescidade provoca, indiretamente, a nível político, sob o domínio dos psicopatas no poder.

Um viva aos mártires, que se vão e são, para o espanto dos homens conscientes, definitivamente esquecidos e enterrados dentre as ruínas da história, com 'h' minúsculo, porque eternamente corrompida por - e creditada aos - vencedores, cuja atribuição maior é uma maior tendência e capacidade para a brutalidade generalizada, além de uma propensão crônica ao unilateralismo de pensamento, também caracterizado como estupidez incurável.

Uma bênção a Malcom X, Robert F. Kennedy, John F. Kennedy, Martin Luther King Jr., todos eles vistos em sua turbulenta época como uma grande ameaça ao status quo, e devidamente apagados das páginas da história. Dorothy Stang, Chico Mendes. Seus assassinos são joães-ninguéns, claro. Por que não crer na versão oficial dos fatos? Os tempos de dita dura (ou seria dita branda, Folha de São Paulo?) já passaram, pois não é? Não, não é não. A diferença é que de escancarada passou a silente, e a braveza de todos tornou-se dormente. Vivemos uma sociedade sem heróis, sem mais o protótipo do Che revolucionário, de um mundo genuinamente melhor. Simplesmente aceitamos tudo, anuímos dopados pelo soma hodierno, e morremos lentamente numa lassidão de espírito vergonhosa.

Pois vergonhosa.

***

Recomendo de coração, por fim, o filme do sempre excelente cineasta Oliver Stone: Salvador (1986).

domingo, 11 de abril de 2010

Maria


Um doce de moça
Me faz companhia
Um beijo que fosse
É nossa alegria

Tão bem lava a louça
Tão bem limpa a pia
Que prazer de moça
Mia virgem Maria

Gostoso ela ri
Cheinha de luz
Seus lábios sorri
E me põe na cruz

Tão pura, tão simples
Maria, Maria
"Cadê teus requintes?"
A gente dizia

A moça é comadre
Na dança arrepia
Atrai até padre
Tão bem rodopia

Maria, Maria
Você se escondia
Debaixo da pia
Brilhava e sorria

Maria, Maria
Tu és estrangeira
De Andaluzia
Lá eras parteira

Ao mundo trazia
Crianças prendadas
A grande alegria
Em ti revelada

Nasciam sorrindo
Olhando pra ti
O céu se abrindo
De estares ali

Um mundo magia
Pulava o saci
Maria, Maria
Tão bela te vi

Daria hoje tudo
Pra ver-te de novo
O sol rechonchudo
Eu louvo, eu louvo

***

Escrito após assistir ao lindo filme Mutum (2007, dir. Sandra Kogut), baseado livremente em um conto de João Guimarães Rosa - conto este que eu particularmente desconheço. Um filme muito inspirador, por remontar as origens do meu próprio pai. Maria, um nome tão comum, pode se transbordar de um sentimento bem incomum neste mundo nosso: o amor cordial, fraterno, ingênuo: o único real amor.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Haicai Insubmisso (I)

Ah, vida!
Mostra-me tua ferida
Existencial

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Bright You


The pencil was incredibly sharp
As it scribbled in the dark
The lead wrote in remarks

Your world is dark
Your soul sparks

Long-fanged sharks
Live in dark-blue
Your soul sparks
Your soul is you

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O Fim da Heroicidade (II)

Não creio em heróis
Não creio em vilões
São ambos os mesmos
Iguais as canções

Stálin o monstro dorme
Tranquilo em seu mausoléu
Ri em seu rosto disforme
Repousa em seu cilo o réu

Quem ora venceu
Tudo cometeu
Atos tão ateus
Pois nunca houve um Deus

Em nome do eu
Se fez o sagrado
Em nome do eu
E o mal coroado

À frente canhões
Para a batalha
À frente sermões
Para a mortalha

À frente reis vis
Toda a canalha
À frente guerreiros
Por sob a malha

Soldados de chumbo
Condecorações, medalhas
O céu róseo-plúmbeo
Em luto se cala

A luta na vala
Trincheiras exangues
Maneiras de sangue
O sangue na sala

O rifle e o fuzil e as balas
Cartuchos, cantis, balelas
Homens murchos, pueris
Sequelas da guerra exalam

Postos de combate póstumos
Virilidade senil
Marionetes se prostram
Ao sempre à margem do rio

terça-feira, 6 de abril de 2010

O Fim da Heroicidade (I)

Cinzas jamais plantam mudas
Cinzas dispersas
Cinzas silentes
Miúdas, graúdas: mudas

Perdem todas sua cor
Pelo vento a seu sabor

Cinzas cinzentas lançadas
Pó seco, crespo, tão branco
Cinzas ao vento aladas
Indissolúveis no pranto

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Fluxo Doentio

Anita Malfatti: O homem amarelo II (1915)

Eu me olho nos seus olhos
Eu me enxergo tão simplório
Pelo reflexo molhado

O que é que há em mim
Eu me vergo em meu jardim
Vou em busca de jasmins

Cavo a terra com mias mãos
Faço minha ablução
Grãos e sementes desterro

Garras ferrenhas me arranham
Soco o chão em solidão
Vozes atrozes me chamam
Não aceitam negação

São minhas as vozes
São minhas neuroses
São meus os algozes

Vozes velozes
Me tornam um celerado
Tresloucado acelerado

Não posso apartar
Virtude e pecado

domingo, 4 de abril de 2010

Ramadã Eterno


Fanfarrões jamais
Faltarão no mundo

O poeta abstém-se de farras
Põe-se em sua alma triste
Pr'assim livrar-se de amarras
E manter-se sempre em riste

sábado, 3 de abril de 2010

Sufi

Frustrado, sim
Eu estou muito frustrado

Já não sei a quem buscar

Se na vida resultados
Ou no Além o Alto Alá

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Poeta Profano Sonha Com Deus


Nutre o poeta um desdém
Abstêmio em seu coração
Por coisas do mundo aquém
Pronto a dizer sempre um não

Asceta d'alma e de vida
Difícil fundir-se ao mundo
É sua alma sua querida
Mergulhá-la no profundo

Sonhar à noite com astros
Fatos calcados em si
Veleja ao mar sobr'o mastro
Ouve o silente cri-cri

Coisas quais eu nunca vi
Surtem efeito em meu imo
Livros quais eu jamais li
Lançam-me ao monte e ao cimo

Estou cá, posto defronte
A Deus, Iavé e Alá
Cá eu leio Xenofonte
Embebido em meu maná

As histórias do orbe
As memórias do globo
Meu espírito absorve
E ausculta a tudo probo.

***

Xenofonte de Atenas, filósofo e historiador grego (Erkhia, Ática, c. 430 a.C. - ? c. 355 a.C). Foi discípulo de Sócrates, cujos ensinamentos o marcaram em definitivo. Sua obra inclui tratados relativos a Sócrates (Memórias de Sócrates), relatos históricos (Helênicas), obras técnicas (A economia, A equitação), políticas (A República dos Espartanos), e um romance histórico (A Educação de Ciro).

[Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998]

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Memórias Compiladas de Raimundo Nonada

Eu numerei postumamente todos os arquivos da minha mente. Em cada um deles havia a seguinte instrução: Pule este, passe para o da frente. Pule este, passe para o da frente. No fim, não havia nada. No nada, não havia fim.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Sou o Voo do Enjoo (II)

"Vertigem", mosaico de Dimitryi Polyakov

Sou o voo do enjoo
Minhas lágrimas entoo
Nestas idas canções

Com voz rouca eu troo
E com ela abençoo
O meu Solimões

Negra a mão que ara o solo
Negra é a mãe, negro o colo
Negros todos aldeões

A madeira e o cinzel
A paleta e o pincel
Sob chuva de trovões

É azul o limpo céu
De cor bege o doce mel
São tão tênues... as estações

Ela vem envolta em véu
E eu vou com meu chapéu
Na fusão dos corações

Confusão sob os trovões
No Rio Negro e Solimões
Toca o sino lá no céu

Oh pequenino menino
É você quem toca o sino...
Cuja corda traz em mãos

Ouça o som do violino
Ouça o som tão cristalino
O bambino tem irmãos

Todos andam de mãos dadas
Ladeados pela estrada
Crentes na ressurreição

Uma alma estagnada
Pode ser sempre a morada
Do divino e a criação.

terça-feira, 30 de março de 2010

Sou o Voo do Enjoo (I)


No vazio eu me vejo
Um breve lampejo
Daquele que sou

E assim me protejo
O nada eu almejo
Sendo eu quem sou

Minh'alma a varejo
Eu nem pestanejo
Sou quem eu sou

Pães rotos e queijos
Abraços e beijos
Eu nada mais sou

Mentiras ensejo
Cartas, desejos
Este sou eu

Sertão sertanejo
Em teu vilarejo
Distante de Deus

Teus pés benfazejos
Teus olhos, revejo
E cá estou eu

Em teu lugarejo
Teus olhos alvejo
O que me restou

Sinto um enjoo
Alço meu voo
Eu me ecoo

Ecoo o Vácuo
Cacos que sou
O Caos me sobrou

domingo, 28 de março de 2010

Vida versus obra


Vida é uma coisa, obra é outra. O intelecto é incapaz de guiar igualmente duas substâncias tão distintas entre si. Valho-me de palavras na arte, e delas erijo um mundo próprio a si, conquanto na vida valho-me de ações - e não há outro modo.

As palavras visam o mundo numênico kantiano: a impalpável realidade pressentida, cogitada, mas ainda assim alheia. Essa realidade de caráter etéreo e tangível ao espírito é o eremitério do artista. O artista como um estranho ao mundo que habita, pois a ele sente não pertencer.

Sobretudo a essa sordidez e a à frígida, leviana concupiscência predominante, mascarante, massacrante. Conquanto viva na efemeridade mundana, o poeta desde cedo entrevê uma essência tênue e atemporariamente eterna, mantenedora da ordem do universo. Um universo que misteriosamente rompe com as barreiras de seu mundo e de sua frívola, diminuta consciência. O poeta é pequeno - o universo, infindo.

sábado, 27 de março de 2010

Life's Quest


Life is a miracle
Oh can't you see
It is so beautiful
And full of glee

Life lingers amid my fingers
It hangs above a tree
I am a thousand singers
And still I've not found me

Nor thee, in my daily quests
Things and facts long forgotten

All them were one day my requests
The path I've trodden
With feet so fast

Is now a way which is my past
My worst moments suddenly the best

Life as a struggle
The feelings I smuggle

My challenge
My never ending battle
My ultimate test

sexta-feira, 26 de março de 2010

Não mude o mudo alaúde

"Bufão com alaúde", Frans Hals, ca. 1625

O tanger do alaúde
Alude à magia ancestral
Por mais que eu me mude
Permanecerei cabal

O dedilhar das cordas
Tesas e tortas, comporta
Um saber incomum

Sou menos que dois
Porém mais que um
Sou num mesmo tempo todos
E sou tão bem o nem um

O tanger do alaúde
Alude ao mágico natal
Nasci com minhas virtudes
Morrerei um tanto igual

Poderá ser o oposto...
Eu ter nascido ruim
A me impedir de ver o rosto
Escondido atrás dum "sim"?

Mi'a nua face disforme
Poliforme atrás de mim

O alaúde polifônico
É a crônica do tempo
Meu universo ultrassônico
Lento, imensuravelmente

Macio retesar das notas
Suaves como aves
Graves em seu voo

O revoar das gaivotas
Ao tilintar das claves
Pássaros surdos sonoros
Sobrevoam canoros

E ecoam as sete chaves
Do paraíso perdido
Abrem ala as asas
No alarido das aves

Vivências, cadências
Um viver virginal
Atenua a existência
Pousa leve em meu umbral

quinta-feira, 25 de março de 2010

Saudades da Multidão

Pessoas se adensam e condensam
Na multidão
Estar



É uma bênção
Ou não

O que é que pensam
Afinal
Em meio ao turbilhão
Homens bons de rosto mau

Há ali um homem são?

A turbamulta traz a culpa
Dos arquétipos de Jung
Nasce já pagando a multa
De ações vis de Mao Tse Tung

A histeria da história
Repete-se pictórica
A massa grossa e vesga
Bestialidades grotescas

Linchamentos, revoluções
Pogroms, inquisições
Alheios ao Firmamento

Homens sem colhões
E sem corações

Fixam num deus seu unguento
E se vão -
Como em vão se vai o vento

quarta-feira, 24 de março de 2010

Seixos Cheios como Seios

Edward John Poynter: Andromeda (1869)

Seus seios são como seixos
Deixam-me em devaneio
Seus seixos são como seios
Deixam-me cindido ao meio

Eu creio somente
Na crueza do seu corpo

Troto em meu corcel
Para te alcançar
Teu corpo cruel
Velado no céu
Banhado no mar

Esfarelo-te inteira
Queiras tu ou não
Como grãos de areia
Prendo-te na mão

Para em vão possuí-la
Em mais uma ilusão
Os teus lábios de baunilha
Sempre doces serão

Se não fossem sempre doces
Não me fariam cativo
E o que mais você trouxe
Para me manter tão vivo

E me reter teu escravo
Sob tuas rédeas carmins
Na batalha qu'eu travo
Para afastar-te de mim

terça-feira, 23 de março de 2010

Cosmogonia

Ilha de Páscoa

Um berro irrompe da terra
Um berro primevo
Um berro de guerra

Um grito de atrito
Saído das trevas
Conflito longevo
O mito primeiro

A voz rompe a noz
Eis o universo
Desfaz-se em nós
Ei-lo emerso

Bón. Ecoa um grande som
Seu imesurável tom
Ribomba em frisson

Cavo cavernoso som
Tóm. Tóm. Tóm.
Cantam as aves
A fala se faz
Em ruídos incontidos
Puramente musicais

sábado, 20 de março de 2010

Um Bordel Chamado Céu

Me falaram sobr'um tal
Poder redentor do amor
Amor branco de avental
Simples, feliz, indolor

Amor branco como cal
Pouco preto, meu senhor
O romance ideal
Sob o manso cobertor

Amor pouco pantanal
Leve demais no tempero
Um amor assim sem sal
Muito obrigado, não quero

Pouco esmero e muito azar
Flor do bem, buquê do mal
Um amor de ensimesmar
Um amor sem meu aval

Um calor já glacial
Feito em hall de hotel
Na cidade de Dachau
Ou na torre de Babel

Linhas túrgidas e tortas
Nem uma o define bem
Fecharam-lhe todas as portas
O rádio quebrou no réquiem

Quem quer um teco de amor
Barato como banana...
Erga os braços por favor
Beija de brinde a cigana

Quem quer um teco de amor...
Chupo cana assobiando
Pão com manteiga e bolor
Meu amor tão leve e lhano

sexta-feira, 19 de março de 2010

Iludir-me Ainda

Minha vida ideal: cinemática
A mulher cabal: pneumática

Eu vivo no crivo
Das coisas mundanas
Nem sei se estou vivo
Se tenho 'inda gana

Minha vida banal...
Não quero dar tchau
Não quero dar tchau
À mi'a vida irreal...

Quero iludir-me de novo
No meu útero materno
Dentro da casca do ovo
Pensamentos sempre ternos

Não é belo e singelo
Viver me iludindo...
Meu rosto amarelo
Em desprezo infindo.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Pilantrinha

Ele queria uma única mulher no mundo
Tão-só você
Ele podia obter qualquer mulher no mundo
Menos você
A mentira é tamanha que o deixa rubicundo
Não posso crer...
Ele queria uma única mulher no mundo
Menos você.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Amor Armênio

Ashy Macbean

Ararei meu Ararat
Exilado em mi'a diáspora
Meu cor duro e rijo bate
Ao ver o tênue Bósforo

Triste acendo a vela
Com meu palito de fósforo
A criança magricela
Esfomeada, de cócoras

Ela, a mãe dela, ambas na cela
A sórdida história
Pútrida, inglória
Ela... não é mais ela
Ela é mazela

A política querela
Latrocinou seus corpos
Vazados olhos de gazela
Vazados... e já mortos

A flauta duduk nos toca
Dos pés à cabeça nos choca
Sua limpidez virginal
Fúnebre memorial

Haysatan, Haysatan
Genocídio Satã
A esperança é tudo
Toda vingança é vã

Meu povo não fica mudo
Nenhuma mentira
Servirá de escudo
Aplacamos nossa ira
Com o fato já desnudo

Flores à tocha eterna
Em pranto, em riso as lançamos
Lírios à pátria materna
Cá desd'os tempos arcanos

O sol bate no Ararat
A visão ainda é nossa
Ilumina a neve em cima
Disto ninguém nos despossa

Territórios não podem
Jamais demarcar almas
Ou ruir sáxeas montanhas

Grãos de poeira sacodem
Em sua paciência calma
Tamanhas montanhas
Ninguém apanha

***

Notas:

Monte Ararat, símbolo nacional da Armênia e para todos os armênios, fica hoje na Turquia.

(Rio) Bósforo, principal rio da Turquia

Diáspora, o Genocídio turco-otomano de cerca de 1,5 milhão de armênios (1894 - 1918) levou-os à diáspora, tanto para países ocidentais, na Europa como nas Américas, enquanto outra parte migrou para os países ao Oriente, como Rússia, Casaquistão, e mesmo países árabes.

Flauta duduk, instrumento ancestral de som magnífico, clique aqui para ver a cantora Isabel Bayrakdarian acompanhada por um quarteto de duduks, na Armênia.

Hay, como os armênios se autodesignam em sua língua

Haysatan, como os armênios designam seu país, que chamamos de Armênia

terça-feira, 16 de março de 2010

Cazuza Alienado

A vida imita a arte
A arte imita a vida
Se a vida imita a arte
É vida empedernida

Eu sou cool
Eu sou smart
Jogo pool
Corro de kart

A arte que se farte
Em sua lírica impura
Corro a mil no meu carte
Na mais veloz loucura

Quem cura a loucura
É a Arte?
A arte que se farte
Em sua lírica impura.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Açúcar Azedo

Sou uma pessoa real
Real enquanto poética
Ficcional e patética
Distância abissal

Sou uma pessoa real
Minha vida esquelética
Lida em voz caquética
Indigesto catatau

Rouca e mouca e louca
Troco de vida, de roupa
Mantenho-me o mesmo
Real irreal e cabal.

domingo, 14 de março de 2010

A Ti, Glauco


Ao querido cartunista Glauco
Villas Boas e seu filho Raoni.
Mais tupiniquins, impossível.


O verde mar azul,
Glauco, é teu arauto
O cenotáfio de Raoni
O alto e guerreiro tupi
Teu mais fiel companheiro

Desenhos teus eu vi, Glauco
E tão alto eu gargalhei
Me tomaram por doido, incauto
Eu não liguei

Glauco, tu moras lá no alto
Santo Daime l'ém cimão
Com São Cosme e Damião

sábado, 13 de março de 2010

Poema Adolescente

Antes meu rosto coberto de espinhas
Que minh'alma repleta de espinhos.

Antes palavras, que azedas, são minhas
Que termos, tão ermos, mesquinhos.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Passos Ambíguos

Duas reiunas pezunham
O amplo campo silente
No passo cru compassado
Do ruim sombrio soldado

Sua bota arrasta bem rente
A lama da relva esparrama
E espirra ainda quente
Gotas da poça na grama

Fadiga andar tantas léguas
Como quem, nu, se esfrega
No ritmo lírico puro
Da vida mais viva vivida.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Lunático-Louco

Já fui louco de tudo
Louco de amor
Louco de dor
Louco, louco mesmo

E agora
Sou só um pouco louco
A esmo

quarta-feira, 10 de março de 2010

Mentiras Verdadeiras


Palavras que
Sem sequer serem ditas
Já saíssem malditas

Palavras que
Calçadas como britas
Rasgassem nossos pés

Os palavrões intercalados
Melífluo mel da mentira
Que ninguém põe
E ninguém tira

Mentiras descem redondo
Cores tênues-pastel
As verdades como estrondo
Em seu belo tom incréu

Verdades somente
Aos poucos que aguentem
Ver sem paixão
O mundo do cão

Tarefa difícil
Extirpar o vício
De ver coisas belas
Em telenovelas

Acostumar a velha vista
A ver o novo mundo
I-mundo tal qual é

Por sob a venda grossa
Eu quero olhar a terra
Sem ornatos nem glosa
Mi'a pátria me desterra
Me ataca e me despossa

terça-feira, 9 de março de 2010

Carcará

Imagem

Que tal o amanhã
Da consciência vã
Que tal o amanhã
Da febre terçã
Que tal o amanhã
Da guerra nada sã
Que tal o amanhã
Da humanidade anã

Que tal o dia posterior
Residência e morada da dor
Que tal o dia posterior
Gemidos e uivos d'estertor
Que tal o dia posterior
As lágrimas sob o cobertor

Que tal o dia depois
Sem luas, sem sóis
Que tal o dia depois
Sem preces, sem voz
Que tal o dia depois
Sem eles, sem nós

Que tal o dia depois desse
O suicídio de Pavese
Que tal o dia depois desse
Melhor se esquecesse
Que tal o dia depois deste...
Pois haverá?

***

Pavese: Cesare Pavese (1908 - 1950), eminente escritor italiano do século XX, autor de Trabalhar Cansa (poemas), Diálogos com Leucó (sua visão da mitologia greco-romana na forma de curtos relatos - uma obra-prima sua), e tradutor dos autores anglófonos Daniel Defoe (Moll Flanders), Charles Dickens, Herman Melville (Moby Dick e Benito Cereno), James Joyce (Dedalus), Sinclair Lewis, John dos Passos, e Gertrude Stein.

Suicidou-se em um quarto de hotel, e tinha consigo a cópia de seu livro Diálogos com Leucó - a meu ver, um dos escritos literários mais tocantes de todos os tempos.

segunda-feira, 8 de março de 2010

O Amanhã São as Cinzas

Imagem

Tiros certeiros erram o alvo
E quando o acertam
Erram também

A bomba ribomba
A metralhadora metralha
Prapara-se a tumba
E a branca mortalha

Caindo céu acima
Caindo em Hiroshima
A guerra malsã
Ruiu o Vietnã
Mais um pouco o Irã...

Forja-se o ataque
Destrói-se o Iraque
As cartas na mão
Contr'o Afeganistão

O mundo muçulmano é mau
O mundo ocidental é bom
Coca-cola McDonald's
E pistolas, James Bonds

Rambo é o herói
E Rocky Balboa
Ser burro não dói
Ser Mao abençoa

O nazismo cresceu
O ovo da serpente
Morte aos judeus
O mundo doente

O sionismo cresceu
O ovo da serpente
Assassínio aos palestinos
Nosso mundo doente

Quanta balela aguentamos
Pelamor de Deus
Somos todos nós insanos
Malditos e ateus...?

Tiros certeiros erram o alvo
E quando o acertam
Erram também

Tiros certeiros erram o alvo
E quando o acertam
Dizemos amém.

domingo, 7 de março de 2010

Versus

Amor é maturidade
Paixão, prisão
Paixão é vaidade
Amor, libertação.

sábado, 6 de março de 2010

Elas & Aquelas (O Mundo é Delas)

Em Arco-Íris Reloaded (de Ana Lúcia Martins)

Mulheres aos milhares
Não me fariam ter
O prazer qu'eu sinto
Ao lado de você

E "você" são todas elas
De coração belo, jovem
Tão diferente daquelas
Cujos prantos mal comovem

Pois seria injustiça
Igualá-las todas
Sem qualquer premissa
Chamá-las de tolas

Algumas o são
E nós, por que não
Aqui não há fé
Nem superstição

Separá-las por cores
Seu bobo, não dá
Pardas e negras
Carmim, resedá

O cor é qu'escolhe
O quando de amar.

==

Como realçou o caro Wlamir, o Dia Internacional da Mulher está chegando... e por que não homenagear a que se encontra teimosamente ao nosso lado, que tudo (ou quase tudo) suportou? Ela merece. Disso não há sombra de dúvida. A você, mulher mundial. A você, fenômeno fe-no-me-nal.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Nova Terra Tupiniquim

Não fosse
Minha parva ignorância
E insuportável ânsia
De sempre saber mais

De arpão em mãos
Ou longa lança
Zarparia ao oceano

De aventuras viveria
Ereto sobr'a proa
Meu maná minha magia
Ver o mar bravio qu'escoa

Mal abre o corpo imenso
E fecha-se sem rastro
O céu de nuvens denso
Abala forte o mastro

Castro Alves poetava
Sobr'o navio negreiro
A insuperável saga
Do poeta condoreiro

Mi'a jangada não faz jus
À nau colossal
Que os cativos aduz
O bem sob o mal

Tantos negros deportados
Das suas pátrias natais
Em um tal vil estado
Um não poder sofrer mais

Uma cifra de milhões
Pouco ou nada diz
É preciso ter colhões
Pr'ainda assim ser feliz

Rebaixados como feras
Rudemente engaiolados
A infernal quimera
Gania o seu rosnado

Plaga branca, pele negra
Aferidos como posse
Uma vida tão acerba
Que de câimbras se contorce

A palavra da dor
Lavrava o bruto solo
Tão difícil até compor
Um mero e ralo consolo

Subjugados à faina
Do diário labor
O suor escravizado
Em nada tentador

A dor não amaina
Tão-só molesta
As vaias da História
Timbradas na testa.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ao monge imolado, Thich Quang Duc


O vivo poder
De indignar-se
Autoimolar-se
Na praça central

Flama
Fogo
Luz

O corpo que inflama
Veloz se reduz

Cinza, carvão
Cinzas no chão

Roto produto
Da combustão

A paz d'alma instaurada
Na nua cabeça
Seu corpo inerte
Por mais que aqueça

Quietude
Plenitude

Cultivadas desd'infância
No mosteiro abobadado
Pôr a alma na balança
O divino alcançado

Na aguda seta da lança

Abdicar-se da vida
Passo a passo consumida
Somente a um espírito
Feito rocha empedernida

Feito a dedo pela vida
Nobremente ofertada
Para o Uno e a Mãe querida
Fez na alma a sua morada

Oh! Alma iluminada
Não se perca jamais
Nos meandros da estrada
Onde o porto e o cais
São a Pátria amada
Dos seres celestiais.

***

Em 11 de junho de 1963, numa intersecção movimentada da então capital do país, Saigon, o monge budista vietnamita Thich Quang Duc desceu de um carro, junto com dois amigos; um deles pôs uma almofada no asfalto, sobre a qual Quang Duc sentou-se calmamente na posição de prática meditativa budista de lótus, ao passo que o outro amigo foi ao porta-malas e pegou um galão de 5 litros de gasolina, que esvaziou sobre a cabeça do mártir. Quang Duc por último recitou uma prece budista, após o que acendeu o fósforo e deixou caí-lo sobre si.

Thich Quang Duc deixou uma carta, na qual dizia:

Antes de fechar os meus olhos e me dirigir à visão de Buda, eu peço respeitosamente ao presidente Ngo Dinh Diem para que tenha compaixão às pessoas de nossa nação, e que implemente igualdade religiosa, para assim manter a força de nossa terra natal eternamente. Eu conclamo os veneráveis, reverendos, membros do sangha (ordem monástica, composta por monges e monjas budistas) e os budistas laicos para que se organizem em solidariedade e façam sacrifícios a fim de proteger o budismo.

O repórter estadounidense que testemunhou a cena, David Halberstam, disse:

Aquela não seria a primeira vez que eu veria aquilo, mas uma vez já teria sido suficiente. Chamas saindo de um ser humano; seu corpo vagarosamente se encolhendo e perdendo as forças, sua cabeça ficando preta e carbonizada. No ar sentia-se o cheiro de carne humana queimada; seres humanos queimam surpreendentemente rápido. Atrás de mim eu podia escutar o choro dos vietnamitas que agora se aglomeravam. Eu estava chocado demais para chorar, confuso demais para tomar notas ou fazer questões, tão desnorteado que não podia pensar... Ao passo que queimava ele jamais moveu um músculo, jamais emitiu um som sequer, sua compostura externa em ríspido contraste com os prantos das pessoas acumuladas em volta dele.

Policiais que tentaram alcançá-lo não conseguiram passar pelo círculo formado pelo clero budista. Um dos policiais jogou-se ao chão e prostrou-se diante de Thich Quang Dunc em reverência. Os espectadores estavam quase todos paralisados em silêncio, mas alguns choravam e vários começaram a rezar. Muitos dos monges e monjas, assim como alguns transeuntes chocados, prostraram-se diante do monge em chamas. Em inglês e vietnamita um monge declarava repetidamente ao microfone: "Um monge budista queima-se à morte. Um monge budista torna-se um mártir."

Após aproximadamente dez minutos o corpo de Thich Quang Duc tombou para frente na rua e o fogo se debelou. Um grupo de monges cobriu o corpo chamuscado com roupões amarelos, levantaram-no e tentaram fazê-lo caber dentro de um caixão, mas seus membros não se dobravam, e um dos braços projetou-se para cima enquanto ele era transportado ao pagode (templo) de Xa Loi, na Saigon central.

Seu corpo foi cremado durante o funeral, mas o coração de Thich Quang Duc permaneceu intacto e simplesmente não queimou. Consideraram-no sagrado e o colocaram num cálice de vidro, no pagode de Xa Loi. Essa relíquia é tida como um símbolo da compaixão, e Thich Quang Duc tem sido subsequentemente reverenciado por budistas vietnamitas, como sendo um bodisatva ('ser de existência iluminada').

Fonte: Wikipedia.

Bom, agora creio que você pode reler o poema e entendê-lo da primeira à última letra, tão bem quanto eu o entendo e o sei de cor.

terça-feira, 2 de março de 2010

Simples Assim


Minha cara Karen
Ver as pessoas se amarem
Toca o mundo todo
Num segundo

Limpa o lodo imundo
Um engodo para amar
Este amor fecundo
O tão bom gostar

Esta viva alquimia
Transformar o chumbo em ouro
E do poço mais profundo
Rebuscar nossa alegria

Escuta-se o estouro
Começa a folia
Ponho a coroa de louro
Neste sol de meio-dia

O cachecol de frio
Eu jogo mesmo fora
Eu rio, e rio e rio!
Da paz que jaz em mim

É agora, é agora
É assim, é assim
Eu caso nesta hora
E brindo com tim-tim

segunda-feira, 1 de março de 2010

A Johnny Cash

Tenho andado assim doente
Empurrado na corrente
Deste rio anil sem fim
Já sem lágrimas pra mim

Minha alma penitente
Traz em si o grão-presente
O meu bravo Robin Hood
Meus idos amores
Separados por cores
Mi'as caras bolinhas de gude

Tantas coisas eu não pude
Dizer ou definir
Coisas tais mi'a mente alude
E só meu cor pode sentir

Quand'eu sento e choro mudo
De alegrias estou surdo
Olhos cimentados, nublados
Mau-humor é meu escudo

Meu arnês de ferro e cobre
Já tão gasto se faz nobre
Recobre-se de pó, só
Sisudo e teso sofre

O forte odor de enxofre sobe
De tantas velharias
No tempo amealhadas
Sem qualquer categoria

Meus souvenirs de estrada
Duma morta idolatria.