Quem já fez uma criança feliz pode morrer com um sorriso nos lábios. Recordo-me de Natã, no norte de Minas, há pouco tempo, mas um tempo que transcorreu numa tal violência inexplicável, que bem me parece outra vida. Natã era residente da cidadezinha, com seus 6 anos então. Era um pouco doente, tossia uma tosse cheia de catarro no peito, o que o deixava um pouco diferente dos outros de sua idade. Por tomar xaropes e fortes antibióticos, tinha um dos dentes de leite da frente espreteado. Não me esqueço jamais de seu rosto. Eu brincava, chamando-o de "indiozinho". Natã tinha, de fato, as feições de um guri do mato. Cabelo cuia, negro azeviche do brabo, lisinho, escorrido.
Às vezes, sem aparente explicação, Natã corria em disparada, em direção ao meio da rua, pouco movimentada, como de todo bom interior, e ali se deitava, nos paralelepípedos quentes. Permanecia inerte, só os pulmões subindo e descendo, mudo. Gritavam: Natã, sai da rua! Eu ia até ele, o levantava, como se faz erguer um boneco, mas um boneco animado, serelepe, inexplicável. Um original. Não era meramente bonitinho e fofinho e atentadinho como praticamente todo o conjunto infantil do mundo. Sua própria consciência da saúde frágil, seu fenótipo destoante, e seus pais a maior parte do tempo ausentes, transformavam-no numa criança única. Se fosse já adulto, o tomariam logo de cara por louco, e sua exclusão do mundo dos normais não demoraria muito a vir.
Eu me encantava com o garoto. De verdade, como que diante dum objeto raro, exótico, e com o qual poderia aprender profundamente por anos. Ser tão diferente dos demais lhe caía como uma qualidade natural perante os meus olhos benévolos. Admito que ele talvez pouco pudesse entender dessa minha perspectiva. Não tenho notícias de como ele está hoje, mas desejo-lhe o mais fundo bem. Não o bem genérico que se deseja aos ignotos confrades humanos nas suas empreitadas do dia a dia, ou a má soante "Boa Sorte" que encomendamos a torto e à direita, sem refletirmos que isso soa mais como "Boa Morte" que qualquer outra coisa. É um sinal de que pouquíssimos leram O Apanhador dos Campos de Centeio, Sallinger. Jamais desejariam Boa Sorte novamente, ou não da mesma maneira casual como o fazem hoje, ontem, amanhã.
Natã me fez ver o mundo, reconheço após esses breves-longos anos sem vê-lo, a partir dum novo ponto de vista. Há em alguns um tesouro rutilante escondido sob uma opacidade normalizante. Sob a camada de poeira, reluz algum ouro, algumas vezes, em alguns. A opacidade d'alma dos fracos de espírito que subjuga os bem dotados deste mundo.
Após tê-lo conhecido, não, eu jamais acreditaria outra vez na baboseira de que todos nascem iguais, ou são iguais, ou em algum momento tornam-se iguais. Nem a morte iguala ninguém. A homogeneidade é a síntese da decadência do homem, uma bola de ferro que lhe esmaga e lhe tolhe o que nele há de melhor, o que dele distancia-se da mesmice deste mundo. Tudo isso ele me ensinou, em sua mudez habitual. Natã, você já viu o muro daquela casa? Era uma casa abandonada, ou melhor, um terreno abandonado, mas não baldio. Pelo contrário, era rico em bananeiras, que despontavam por sobre o muro, e uma ou duas mangueiras, verdejantes e folhosas. Dava mesmo vontade de ver se por detrás do alto muro se ocultava o jardim tupiniquim de um príncipe desleixado com suas posses terrenas, como que cansado da temporalidade escravizante e massacrante deste mundo.
Não. Foi a resposta do piá. Mas um "não" curioso, indagativo, reticente... Então vamos ver! Peguei-o pela mão, no pique atravessamos a rua e disse a ele: Confia em mim! Levantei seu corpo pesado com um pouco de esforço até ele alcançar com suas mãos o limiar do muro, e lá do alto ele tomou um impulso com os braços e manteve-se assim, olhando. Seus pés estavam suspensos sobre os meus ombros. Quietara. Quer descer? Ele assentiu com a cabeça, e desceu. Depois corremos desenfreadamente para cá e para lá na rua, e enfim quietamos. Ou antes, eu me quietei. Ele de costume já era quieto e não se revelava. Mas entrevi naquele instante uma luz de êxtase rebrilhando em seus olhos levados, e pude compreender em silêncio tomos de sabedoria.
O que ele havia visto, guardava-o para si como o maior presente do mundo. O presente de um Robin Hood, pois alguém, um estranho àquela terra, que por fim o pôde entender uma vez na vida. Ou ao menos alguém que a ele não procurou se impor, como soía acontecer. Aventura, loucura. O impossível tornara-se possível com uma mãozinha amiga, sincera, fato único na vida. O regozijo de seu interior inflava-lhe o peito, que chiava baixinho, em movimentos lépidos, e suas narinas espelhavam aquele movimento de trepidação de um júbilo, um entusiasmo fantástico. Cintilava em seu rostinho ajeitado de Macunaíma uma vivência que jamais se apagaria de sua memória. Poder ver o insondável, então, era uma possibilidade mais que teórica ou hipotética - era plenamente real! Aquele alto muro a delimitar fronteiras, o permitido do proibido, o passível e o não passível de ser visto, era - surpresa! - trespassável com o auxílio de alguém como ele, alguém que se sentisse um tanto perdido e restrito em um mundo moralista e conservador.
Não pode, menino, é feio! Deixara de existir na minha presença, que lhe complementou a unicidade de sua alma, cujo ritmo fluía numa velocidade destoante das dos demais. Natã, tantã, natã, tantã, na tã tan tã. A musicalidade de um coração que se conscientizou, de súbito, da importância irreprimível de se estar aqui nesta terra agora. E aos diabos com as fúteis conveniências. Deixe aos diabos os fracos, nós somos fortes, Natã. Teu nome ecoa. Tão fortes como as teimosas batidas do que há de mais caro em nosso peito. Tantã.
Às vezes, sem aparente explicação, Natã corria em disparada, em direção ao meio da rua, pouco movimentada, como de todo bom interior, e ali se deitava, nos paralelepípedos quentes. Permanecia inerte, só os pulmões subindo e descendo, mudo. Gritavam: Natã, sai da rua! Eu ia até ele, o levantava, como se faz erguer um boneco, mas um boneco animado, serelepe, inexplicável. Um original. Não era meramente bonitinho e fofinho e atentadinho como praticamente todo o conjunto infantil do mundo. Sua própria consciência da saúde frágil, seu fenótipo destoante, e seus pais a maior parte do tempo ausentes, transformavam-no numa criança única. Se fosse já adulto, o tomariam logo de cara por louco, e sua exclusão do mundo dos normais não demoraria muito a vir.
Eu me encantava com o garoto. De verdade, como que diante dum objeto raro, exótico, e com o qual poderia aprender profundamente por anos. Ser tão diferente dos demais lhe caía como uma qualidade natural perante os meus olhos benévolos. Admito que ele talvez pouco pudesse entender dessa minha perspectiva. Não tenho notícias de como ele está hoje, mas desejo-lhe o mais fundo bem. Não o bem genérico que se deseja aos ignotos confrades humanos nas suas empreitadas do dia a dia, ou a má soante "Boa Sorte" que encomendamos a torto e à direita, sem refletirmos que isso soa mais como "Boa Morte" que qualquer outra coisa. É um sinal de que pouquíssimos leram O Apanhador dos Campos de Centeio, Sallinger. Jamais desejariam Boa Sorte novamente, ou não da mesma maneira casual como o fazem hoje, ontem, amanhã.
Natã me fez ver o mundo, reconheço após esses breves-longos anos sem vê-lo, a partir dum novo ponto de vista. Há em alguns um tesouro rutilante escondido sob uma opacidade normalizante. Sob a camada de poeira, reluz algum ouro, algumas vezes, em alguns. A opacidade d'alma dos fracos de espírito que subjuga os bem dotados deste mundo.
Após tê-lo conhecido, não, eu jamais acreditaria outra vez na baboseira de que todos nascem iguais, ou são iguais, ou em algum momento tornam-se iguais. Nem a morte iguala ninguém. A homogeneidade é a síntese da decadência do homem, uma bola de ferro que lhe esmaga e lhe tolhe o que nele há de melhor, o que dele distancia-se da mesmice deste mundo. Tudo isso ele me ensinou, em sua mudez habitual. Natã, você já viu o muro daquela casa? Era uma casa abandonada, ou melhor, um terreno abandonado, mas não baldio. Pelo contrário, era rico em bananeiras, que despontavam por sobre o muro, e uma ou duas mangueiras, verdejantes e folhosas. Dava mesmo vontade de ver se por detrás do alto muro se ocultava o jardim tupiniquim de um príncipe desleixado com suas posses terrenas, como que cansado da temporalidade escravizante e massacrante deste mundo.
Não. Foi a resposta do piá. Mas um "não" curioso, indagativo, reticente... Então vamos ver! Peguei-o pela mão, no pique atravessamos a rua e disse a ele: Confia em mim! Levantei seu corpo pesado com um pouco de esforço até ele alcançar com suas mãos o limiar do muro, e lá do alto ele tomou um impulso com os braços e manteve-se assim, olhando. Seus pés estavam suspensos sobre os meus ombros. Quietara. Quer descer? Ele assentiu com a cabeça, e desceu. Depois corremos desenfreadamente para cá e para lá na rua, e enfim quietamos. Ou antes, eu me quietei. Ele de costume já era quieto e não se revelava. Mas entrevi naquele instante uma luz de êxtase rebrilhando em seus olhos levados, e pude compreender em silêncio tomos de sabedoria.
O que ele havia visto, guardava-o para si como o maior presente do mundo. O presente de um Robin Hood, pois alguém, um estranho àquela terra, que por fim o pôde entender uma vez na vida. Ou ao menos alguém que a ele não procurou se impor, como soía acontecer. Aventura, loucura. O impossível tornara-se possível com uma mãozinha amiga, sincera, fato único na vida. O regozijo de seu interior inflava-lhe o peito, que chiava baixinho, em movimentos lépidos, e suas narinas espelhavam aquele movimento de trepidação de um júbilo, um entusiasmo fantástico. Cintilava em seu rostinho ajeitado de Macunaíma uma vivência que jamais se apagaria de sua memória. Poder ver o insondável, então, era uma possibilidade mais que teórica ou hipotética - era plenamente real! Aquele alto muro a delimitar fronteiras, o permitido do proibido, o passível e o não passível de ser visto, era - surpresa! - trespassável com o auxílio de alguém como ele, alguém que se sentisse um tanto perdido e restrito em um mundo moralista e conservador.
Não pode, menino, é feio! Deixara de existir na minha presença, que lhe complementou a unicidade de sua alma, cujo ritmo fluía numa velocidade destoante das dos demais. Natã, tantã, natã, tantã, na tã tan tã. A musicalidade de um coração que se conscientizou, de súbito, da importância irreprimível de se estar aqui nesta terra agora. E aos diabos com as fúteis conveniências. Deixe aos diabos os fracos, nós somos fortes, Natã. Teu nome ecoa. Tão fortes como as teimosas batidas do que há de mais caro em nosso peito. Tantã.
2 comentários:
É o pedaço de prosa mais gostoso que eu li nas últimas semanas! Esse sorriso próprio à inocência alegre da criança tem mesmo que se desdobrar em nossa atitude. Ao contrário e incompreensivelmente, o que se vê é intolerância! Será que nunca faremos senão fomentar o erro da educação no nosso modo de ser com os nossos filhos?
(E que seja transitória para o abá Natã a fase dos antibióticos e dos empecilhos bronco-pulmonares, assim como foi para mim. O dentinho preto, igualmente, há de ceder lugar...)
Exato, exato... a infância deveria espelhar a vida adulta como num reflexo inverso. Bastaria amadurecer - e não enrigecer! - a ingenuidade boa, descobridora, aprazível e prazerosa que tão bem nos faz nos nossos anos formadores!
A curiosidade unida à maturidade deveria gerar bons frutos! Não estresse, rotinas fatais, entupimentos de artérias, e tudo o que nos acomete como se a infância houvesse sido vivida numa outra vida, completamente alienada desta atual. Que Mal!
O bem tão próximo e nós constantemente o afastando com um safanão malicioso.
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