domingo, 31 de janeiro de 2010

Haiti: Ser Mártir é Morrer a Sorrir

Keely Kernan

O sismo abriu
Centenas de metros
Engolindo fetos
No pavimento frio

Duzentas mil pessoas
Troando tristes loas
Pairando sobr'a terra...
Não, não foi guerra

Foi o tremor da dor
Ruindo a cidade
Quantas lágrimas rolaram
Pós a vil calamidade...

Parentes e amigos
Perdidos, engolidos
Pelo solo
Descrentes e feridos
Choramos de terror
Sem consolo

Em prantos tentaremos
Reconstruir a nossa vida
E fechar a cicatriz
Dess'imensa ferida

Quem quis isso
Quem isso desejou
Não pode ser feliz
Não pode ser avô

Pois meus netos
Perdi-os todos
Chafurdo no lodo
Sem vivo afeto
Treme-me o corpo
Semimorto
Irrequieto

Minha filha lastima
A perda do noivo
Não temos goivo...
Somente esperança

Nossos finos braços
Perderam os abraços
Mais tenros
Foram-se noras
Foram-se os genros

Agora nos resta
Erigir de novo
Mas a faina molesta
E eu me comovo

Por ter sobrado vivo
Nesta urbe soçobrada
Nos escombros meus queridos
Encontraram sua morada

Sob os mis destroços
Entrevê-se uma caverna:
Um prensado pescoço
Um pedaço de perna

Soterrados
Desalmados
Sem o túmulo
Sagrado

O corpo estilhaçado
Garroteado, esquartejado
Corpo e corpo
Lado a lado

Famigerado País macabro
Libertado... dominado
Independente... amordaçado
Quem sofre é a gente
Não somos cabeça de gado

Um povo subjugado
Pelo poderio militar
Deem-nos arado
E um pouco de ar
Precisamos respirar
Desde qu'usurparam
A nossa pátria,
O nosso lar

Médicos e enfermeiros
Corajosos guerreiros
E pessoas de fé
São vocês os padroeiros
Da nossa Santa Sé
Com seus pés ligeiros
E o sorriso do pajé

Estampado no rosto
São, de quem exerce
Seu trabalho com gosto
Numa viva ação de prece

Pois a mais sacra reza
É a mão estendida
Num teso aperto
De sóbria firmeza
O maior gesto amigo

Nossa gente é forte
Peitamos a Morte
E a sombra do Diacho
Enfrentamos peito aberto
A nossa própria Sorte

E no bravo viver eu acho
Toda a nossa força
A fugir do laço
D'apertura da forca

Eia povo varonil!
Assimila o seu vigor
Da correnteza do rio
E encontra o seu amor
Na diária dureza da vida
Essa vida sol a sol
Duramente combatida.

***

Eis minha modesta menagem a esse povo.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Favela


Gira o mundo
Roda a manivela
E o rotundo acordar
No interior da favela

Vamos às ruas!
Tilintar as gamelas
Não há mais comida
Que já caiba nelas

Meu filho, acordado,
Tirando a remela
C'o dedo sujo da mão

Não temos água
Nem vinho
Nem pão

No desalinho
Rezamos est'oração:

"Ai de mim, ó Deus,
Me ajude
Quero comida na panela
E água no açude

Quero sair da pobreza
E alimento na mesa

Quero sair da favela
Sem vã politicagem
E inútil balela

Melhor vida, sei bem,
É mera miragem
Mas bem pior seria
Nem nela acreditar

Quero uma janela
Com tramela
Pra poder me resguardar
Quando durmo à noite
E feito sentinela
O ladrão vem me roubar

Minhas filhas
Para o tráfico
Inumano

Tamanha tristeza
Ó Deus
Deixa o ser humano
Insano

Eu só peço um novo ano
E entender o ser humano,

Amém."

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Luta de Classes

Bernie Boston, "Flower Power"

O pobre ao lado do nobre
Não vale sequer
Uma reles moeda de cobre

Desdobra-se em pranto
Entoa seu canto
E se encolhe de novo
Miúdo no manto

Posto de lado...
Triste viver esfaimado

Ser pobre é pecar
Contr'o vil bem-estar
Do marajá hereditário
Explorador do proletário

Quem jamais suou
Pra ganhar o seu salário

O mundo é assim,
Me disseram certa vez.

Quão triste fim...
Quão vã insensatez.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Autossuficiência

Vicki Dameron, "Flower Power"

Já me basto e abasto
De fundos sem gasto
Só...
E nem por isso casto

Não quero um doce
Romance
Denguice adoidada

Desejo uma moça sincera
Que dance e se canse
E sinta-se amada

Quero uma casa singela
E ver da janela
Mi'a nova estrada

Sozinho
Sulcando o caminho
Sentir a minh'alma
Gratificada

Amar, ser amado
Perdoar, perdoado
Quero apenas
Um novo plantio
O meu novo arado

E logo o amor doentio
Será descartado
Um lar sem fé senil
Nem vãos pecados.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Hino Hippie

Ota Nepily, movimento hippie na Polônia

Mi'a tez é humana
Mi'a cor, multicor
Sou da raça hermana
Sou mais paz e amor

Com minha voz vocifero
Um mundo mais justo
Um preço de custo
Um Homem sincero

Sem punhos de ferro
Nem prédios de aço
E o homem no laço
Tal mundo eu quero

Ver a flor em botão
E sentir-me emocionado
Eu sou teu irmão
E estou do teu lado

Tua religião propõe
Um deus amado
Amê-mo-lo então!
Xô c'o diabo...

Antes da união
Vem o primeiro passo
Depois o abraço
E aquele amasso!

Todos filhos da Criação
Vivendo em comunhão
Mas péra.
Tem algo errado.

E o estuprador reincidente
O criminoso condenado
O colarinho branco
Cuspido e conspurcado?

Os governos totalitários
Populistas, sanguinários
Detentores do poder
E as chaves da Prisão...?

Apenas co'a Paz
Conseguiremos vencer
Morrendo aos milhares
Sem nada temer?

Se a luta depende dos vivos
E não só dos mártires
Quantos amigos restarão
Livres do cárcere?

Sem apoio...
Sem separar
O trigo do joio

Logo logo conseguirão
Conosco lotar
Todo um comboio...
Nos bloquear por completo!

Encaminhados seremos
Ao olvido
Da História
Dos vencedores

Flores murchadas
Sem a glória
Da luta abençoada
Pelo gume da espada.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Um Alto Brado à Grande Vida

Ao entrar na casa, saúde-a - James Tissot

Dobro-me
Diante do infinito
Curvo-me em dor e grito

Eis meu auto-de-fé:
Manter-me em pé
Ante o terror que fito!

Conter-me são
Ante tanta insensatez
Reter mi'a mão
E sob o trovão
Jamais me perder de vez

domingo, 24 de janeiro de 2010

Azia

imagem

Uma mão fria, no breu
Vem me tocar
Sinto um toque ateu
O uivo do lobo ao luar

Paraliso em dor
Seria um primor
Conseguir não gritar
Controlar meu esgar

Já não sinto meu corpo
O torpor me consome
Um brado de dor
E a tortura da fome

Mi'a única arma:
Parar o tempo
Buscar na calma
Meu único alento

Lidar c'o sofrimento
Deixa-me atento
Respiro fundo e penso:
É meu último momento

O intenso odor
Do incenso
Leva mi'a ira
Embora

Minha barriga vazia
Deita e chora
Eu pego mi'a lira
E canto o agora.

sábado, 23 de janeiro de 2010

The Mark of Cain


They tear a hole in your heart
They set your brains apart
And convince you
The least thing you are
Is being smart

And from nowhere in life
You could possibly re-start
It all over again

The absolute impossibility
Of living a life
Free of pain -
Home and sheltered from
The ever-pouring rain

They attempt to grab
Your soul and maim
The plan of progress
You've sought to attain

They stain with blood
Your bed, where you've
Safely lain
Till they've ripped apart
Your entire concept of life
All over and over again.

***

Not based on the award winning movie or on the band with the same name, though. Just a very good idea of a title that dawned on me. It seemed to me pretty strong and impactant, and that's how titles are supposed to be, aren't they? I acknowledge that, in its forceful approach, it is perhaps even better than the poem itself. As always, thank you.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tuberculose


Cuidado, homem
O verme te carcome
Pouco a pouco
Rói e come
Num rastro louco
A doer de fome

Devora a alma, a calma
E o que mais há de melhor
Leva a luz embora
E a paz ao teu redor
Tal ferida só piora
Tua face perde a cor

O teu rosto tornado
Cinzento
Descobre logo
No momento
Ter perdido
O acalento
De viver livre
De dor

O coração não pulsa
Veloz expulsa
Em tosse e sangue
O ido amor

Quem dera assim não fosse...
O nosso último estertor.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Encontro Final


As madrugadas são só minhas
Tão sozinhas na surdina
Do meu ser

Espezinhando a luz do dia
Impedido de crescer
Numa tal monotonia
Nessa estranha sanha
Me empurrando a perecer

Não quero eu ser alegre -
E correr como uma lebre
Aproveitando a luz do sol?

Mas eis-me à parte
Em meu casebre
Como um triste caracol

Por que meter-me nesta concha
Refugiando-me do mundo
Enquanto a luz reluz afora
No céu azul e rubicundo?

Um mergulho tão profundo
Incapaz de emergir
Afogado, triste, insano
No mais total nadir

E assim afundo...
Sem jamais poder sair.

***

Eu havia escrito este poema há exatos cinco dias, em 16/01, e deliberado naquele mesmo dia que ele seria publicado apenas hoje, 21/01. Tal deliberação veio do fato de que eu prefiro postar um por vez, um por dia (quando possível), e, inusitadamente daquela vez, eu tinha escrito logo de cara uns cinco ou seis seguidos (inclusive este), de forma que eu os fui numerando em ordem de criação. O primeiro a ter sido criado ficou para o dia seguinte, o segundo para o próximo dia em relação ao seguinte, e assim por diante. E acima deste pairava a anotação a lápis (meu encrustado hábito de escrever a quase totalidade dos meus poemas num caderno 96fls, 203x280mm, 31 pautas, a lápis): publicar 21/01/2010.

Hoje amanheci com a notícia de que um tio-avô meu havia falecido. Que desenvolver um trabalho artístico trazia consigo seu lado misterioso, eu já desconfiava. Mas, dessa vez, tenho de admitir qu'eu fiquei um tanto espantado, apesar de certa forma já estar preparado.

Até porque logo em seguida à escritura deste poema, eu compus outro de temática similar - ao menos no que tange à morte. Mas bastante diferente em todos os outros aspectos, estruturais e vocabulares, líricos mesmo. Enfim, é o ciclo da vida. Abençoada seja a alma dele, que tanto sofreu nos seus anos derradeiros.

No dia em que aceitarmos a nossa morte com a mesma naturalidade que aceitamos a morte de outrem, aí sim teremos realizado uma ação cabal na vida. Sabemos que na maior parte das vezes as coisas não são assim, mas a esperança é a última a morrer, e conosco.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Quand'eu chegar por engano logístico ao céu


Perdão, Deus, por fumar
Porque pra mim, esse vício
É gostoso e salutar

Meu tabaco fedido
É o meu melhor amigo
Meu aliado de ofício
Ao escrevinhar

Perdoem-me os céticos
Mas eu não uso antisséptico
Bucal
O vil gosto do fumo
É meu sopro vital

Tem gente que bebe
E também cheira mal
E gente que não faz nada
E cheira à rabada

Deus, peço-Lhe perdão
Por me meter nessa roubada
Por fumar ser minha maior diversão
E meu cachimbo, mi'a mais fiel namorada.

* *** *

P.S.: Já que agora nos Estados Unidos da América há empresas e instituições não contratando fumantes, e submetendo os candidatos a exames de nicotina, que, caso positivos, automaticamente os cortam do processo seletivo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aos corretíssimos senhores anti-tabagistas


De fumo eu não morro
Vou morrer de canseira...
E de cima do morro,
Rogando socorro

Proclamarei um abaixo-assinado
Contra toda asneira

Eu fumo
Antes, durante e depois
Qu'eu escrevo
E vem a mídia dizendo
Que fumar é veneno

Pois bem!
Fique sendo um veneno
Mas eu não condeno
Pois, pra mim,

Continuará sendo um remédio
Que me cura da loucura
E do tremendo tédio
Nestes tempos de assédio
Que fedem (e como fedem!)
À mais pura ditadura.

* *** *
Leia:

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Manipulação da Fala, ou, A Palavra Que Cala

"Coragem, homem!"
É mi'a frase preferida
Com ela as mágoas somem
E me relembro da vida

Garrida, esforçada
Meus dois pés firmes
Galgando a senda alada
Minh'alma limpa de crimes
E a jornada começada

Em busca do bosque da Razão
Perdi-me inúmeras vezes
Andei quilômetros em vão
Por anos e meses

Me vi de perfil
Num espelho d'água
Meu cor não mentiu:
Aquilo era uma cilada

Como posso ser tão grande?
Isso é obra do orgulho...
Nem que Deus me mande
Nesta poça eu não mergulho!

E assim me pus de lado
Lembrando-me de Ghandi
Eu ria desbocado...
Isso é obra do chifrado!

Devo manter-me atento
Pensei
Não irei dar alento
Ao que foge à lei

Onde o tridente rege
A mentira se faz Rei
O artifício é a sede
Do palácio Real

Lá não se fala em ditadura
A palavra certa é travessura
Muito menos repressão...!
Cujo equivalente é gostosura
Não se engane, não!
Aqui não há censura

Escondemos a prisão
E a masmorra escura
Gostosura ou travessura,
Qual você quer mais?
Leva logo as duas
E de bônus leva a Paz -
Isto é, tua morte,
Nas mãos do capataz.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Mãos ao Alto!


Fizeram de mim
Um covarde
Desceram o porrete
Sem ruído e
Sem alarde

Minha face carmim
De sangue que arde
Diminuído, preso
Esvozeando a verdade

Sair ileso
Não saí
De golpe a golpe
Eu caí

O corpo resiste
Ante à violência gratuita
Mas a alma fica triste
E perde-se a luta

Minhas primas amadas!
Rodeando mi'a cabeça
Quero amar-vos muito ainda
Antes qu'eu faleça

Abraçar-vos sorrindo
Neste dia luminoso
Límpido e lindo

Mas eis-me jogado
Na suja sarjeta
Amaldiçoada seja
A ditadura seca!

Espreitando da esquina
Nos lança ao porão
Os fortes extermina
Pouco a pouco matarão
Na truculência mesquinha
A esperança dum mundo são

Os verdugos edazes
Sulcando a estrada
Depredando cartazes
E a liberdade cassada

Um sombrio futuro
Paira sobre nós
Cercados de muros
Cerceados e sós
Por isso eu juro
Erguer a minha voz
Contra o infame monturo
A acercar-se de nós.

**
crédito à imagem: Policiais da cidade de Selma, Alabama (EUA) detêm manifestantes pacíficos, na década de 1960.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Reinaldo



O curioso do Reinaldo
Era o seu jeito de soldado
Seu porte atarracado

Seu cabelo, de praxe raspado
O passo militarizado
Comprido, continuado

E por cima de tudo
Um pacifista acirrado
Jejuador abnegado

Celibatário calado
Dizia-se punheteiro
Pra não ser tido
Como santo rogado

Sempre solteiro
Independente
Nunca carente

Ô, Reinaldo!
Saudade dos tempos
Em que tu vinhas cá no bar

Alegrar
Bebericar e
Fumar

E encantar
Com tuas palavras
Minh'alma
E meu lar.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Universidade

Cada dia qu'eu não ia
Me doía
E só eu sentia

Meu pai me dizia
Você faz um grande erro
Cadê tua alegria?

E então findou o ano
E com ele o ido plano
De passar na faculdade
Em todas as matérias

Aprendi na humildade
A lidar com minhas misérias

Nem sempre estou certo
E foi passando por apertos
Qu'eu fiquei mais esperto

Se eu me achava bom em tudo
Foi me olhando no espelho
Que por um minuto quedei-me...
Mudo.

Calei-me.
Sufoquei-me.
Uma derrota
Com sabor de vitória

Ter vencido
Sem vã glória
Isso sim jaz
Com um gosto
De paz
Em minha mais tenra memória.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Um Minuto de Silêncio

Apontar o lápis
Pra nu'apontar o dedo
E só por isso eu escrevo

Apontar o lápis
Pr'afugentar o medo
E só por isso escrevo

Meu pavor do olvido:
Preterido...
Esquecido

Ante o punho erguido
E seu golpe
Desmedido

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Por que lutar sem sangue, sem máscaras, sem ódio

Todo dia eu faço uma reverência a tudo o
que é maior do que eu. E há tantas coi-
sas maiores, e tantas coisas melhores,
traduzidas pelos olhos de quem já sofreu.
Muito mais do que eu.


A violência tem um mecanismo misterioso: o de suscitar, na vítima, o silêncio. Este, aliás, é o único solo ubérrimo onde a violência pode medrar incólume. O silêncio e seu ressaibo inegável de omissão e de falta com a verdade. A monocultura extensiva da violência age em detrimento da saúde de toda a população que, por ignorância ou tácito consentimento, alimenta-se de seus frutos eivados já de concepção.

Pouco a pouco essa dieta indigesta depriva seus consumidores da consciência incipiente da existência de uma noção denominada: liberdade. A liberdade é morta quando a violência reina impune; isto é, sob a égide do Estado. Somente o Estado pode perpetuar a violência com (quase) total eficácia, à medida que este se põe acima da massa governada e infunda temor; temor oriundo do simples fato de que o Estado supera a frágil condição de individualidade. Ao indivíduo é natural e cabível atribuir-se culpa e - se condenado em julgamento - a devida sentença carcerária. Mas figuremos o Estado: a massa de indivíduos que o compõem, assim como o poder neles investido, forma elos aparentemente (e enganosamente) inquebrantáveis. Tamanha aura de onipotência traz em si o ônus da inquestionabilidade.

Desse modo, evocar a liberdade e bradá-la nas ruas, na companhia de um séquito diverso e numeroso, é uma afronta aos tentáculos de um governo cujos olhos percorrem as opulentas paredes de palacetes e gabinetes oficiais, e evitam sobremaneira enxergar a imundície da sarjeta. A população hipnotizada com as telenovelas nacionais e programas televisivos afins não se aglomera à massa protestante, revoltada - e com razão! - com os ardis e esquemas financeiros e políticos conduzidos, de praxe, pelo Estado - essencialmente corrupto, essencialmente cego, e essencialmente injusto. Desd'os tempos imemoriais. Devido à exígua quantidade de pessoas ousadas, que marcham nas ruas - que por ventura lhes pertencem - por uma causa acreditada, a truculência policial é em grande parte facilitada. Banal e favorecidamente justificada; a impunidade ao policial agressor é concedida de mão aberta e estendida. Povo generoso o nosso.

O agredido - não o nomearei vítima - carrega em seu corpo e em sua mente as marcas do absurdo: a violência do aparato policial eternamente racionalizada nas bases mais frágeis possíveis. E ainda assim aceitas - sem o menor titubeio. Petreamente aceitas, num processo análogo ao dos códigos consuetudinários outrora vigentes de ponta a ponta do globo. De pai para filho passa-se a reflexão temerosa de que "não se deve mexer com a força policial", pois os sustentáculos dessa corporação são punhos - conhecidamente - de ferro.

Quão fácil e pueril é inculcar o pavor em tomar parte numa manifestação política, em vão - parece - estabelecida como direito de gozo nosso, nos papéis mal lidos e absorvidos do nosso documento maior: a Constituição brasileira. Amigos me apontam que aqui por estas bandas "a coisa ainda pega leve", visto que, em outras nações, manifestar-se abertamente implica ao indivíduo sair de sua casa sem ter a certeza do posterior retorno. A morte ao libertário espreita com olhos vorazes na próxima esquina.

Mas ser espancado relembra em muito a morte. Porque o ataque à cacetete - vulgo tonfa - em plena luz do dia, é o cúmulo da ausência de valores verdadeiramente democráticos. Valores esses que imbuem de importância a lícita expressão contrária de um grupo. Uma expressão pacífica, política e idônea - porque fundamentada em fatos. Fatos que deveriam chocar a população como um todo, caso esta não fosse dulcificada pelo poder midiático - tão sutil na persuassão das massas que, não importa o quê, "tudo vai bem", e assim normalizando a brutalidade, e com ela todos os procedimentos ilícitos e ditatoriais. Um governo que teme o próprio povo governado e sua capacidade, ainda dormente, de voz, é um governo que, por detrás da arena do Pão e Circo, rege com punhos de aço, ainda que gradualmente, despercebidamente. Um governo desses está cheio às entranhas de verdades que prefere ocultar, para manter-se intacto.

Vivemos, portanto, em tempos dúbios, nos quais os vocábulos violência e truculência são amaldiçoados pela historicidade do termo ditadura, relegado a designar tão-somente o passado. Um passado, quer dizer, nada distante. Quer dizer, um tanto presente. Entretanto, para a estupefação dos que ainda têm tato com a realidade, na (ida?) era do cálice de vinho tinto de sangue, a natureza do regime era exposta e escancarada, bravamente peitada, enquanto hoje paira um tenebroso silêncio. Onde bradam os corajosos, os apartidários, as tochas reluzentes da Humanidade? Quem porta, hoje, destemidamente, a labareda da verdade, o fogo gerador de luz? Quais são os que, nos tempos atuais, ousam pôr a própria segurança em risco, por não condescender com a voz distorcidamente unilateral do Estado?

São poucos? São muitos? Como saber... ecos do exterior da caverna perfuram os nossos tímpanos, há longo desabituados à sobriedade. Falta-nos, malgradamente, muita consciência para nos apercebermos de que, duro que é lavar golpes de cacetete, ninguém , pois, quererá, num futuro próximo, sair de seu lar para receber descargas elétricas no corpo, não por raios - macacos me mordam! - mas por tasers, amplamente testados em estadounidenses "desobedientes". E, logo logo, o mais novo artifício nas mãos dos nossos gendarmes conterrâneos.

Uma cacetada bem dada - e eles a dão belissimamente bem! - poder vir a rachar a cabeça, quebrar um membro, desutilizá-lo pelo restante da vida, provocar hemorragia interna; por outro lado, a descarga elétrica de um taser pode parar o coração, torrar um portador de marca-passo, e com total certeza imobilizará o "meliante", tomado por espasmos, mijando-se e defecando-se descontroladamente em meio à via pública - pelo mero fato de (ter ousado) tomar parte num ato "supostamente" (apenas "supostamente") pacífico.

Friso que, se hoje a violência já é desmedida (e quando é que foi "medida"...), com o uso já consumado de gás lacrimogêneo, gás pimenta, balas de borracha, bombas de efeito moral e o "bom e velho cacetete" - não deixando de lado as ditatoriais botinadas - o que será de nós (se até este ponto você não aceitou ser englobado, parta para uma leitura mais aprazível aos sentidos) ante a um aparelho que nos imobilizará como a um animal? Eis a minha singela pergunta, dirigida a todos - e em especial a todos que têm medo de participar de manifestações, constitucionalmente (se é que isso importa) legítimas.

Percebam que em nenhum momento eu demonizei ou vilifiquei os policiais. Muitos há que perduram em seus princípios, quero acreditar. O fato é que os policiais passam por um treinamento que não distingue trabalhadores, professores e estudantes dos que de fato merecem as grades: estupradores, assassinos e toda a calhorda que os acompanha. Infelizmente, com a indevida isenção dos corruptos e criminosos de colarinho branco. Abençoados por uma impunidade alheia aos princípios (apenas "supostamente") igualitários, resguardados na Constituição. Não sagrada, mas suficientemente laica para uma sociedade - dita - pluralista.

Acreditarei no poder do diálogo até o eclipsar da minha vida, e o diálogo entre manifestantes e policiais deve existir, sim! Demonizar o outro é demonizar a si mesmo. E estaremos fadados a falhar (eles como nós) enquanto durarem rivalidades datadas e usadas como uma grande arma contra todos nós.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Liberdade Ultrapassada


Fui responder à pergunta
Levei uma cacetada no braço
E eu queria o quê?
Um abraço?
Certamente que não...

Me rendi, os braços pro alto
Mais uma cacetada
E o meu sobressalto:
O qu'eu havia feito,
Pra merecer tamanho desrespeito?

Fui protestar contr'o prefeito
E o aumento da tarifa
Do busão
E a cacetada no queixo
Pr'eu aprender na marra
A não falar na contramão

Dos grandes interesses do Estado
De deixar o povo bem quietinho,
Sossegado, sussurrando baixinho
E os corajosos na surdina
Espancados...
Desmoralizados.

Eu ali, encolhido no chão,
Como eu vim ao mundo
Em pequena proporção
Cercado de PM me
Descendo botinada
Minha face acobertada
Ante tanta humilhação

Eu e mais dois
Num camburão fechado
Quarenta minutos
Dum viver sufocado

Ansiando o momento
Em qu'eu seria libertado
E o mal-entendido
Fosse todo explicado

O suor escorrendo
Pelo vidro da viatura
Meu desespero me roendo
Me corrói, me perfura

E eu calado, cabisbaixo
Só fui ser liberado
Horas depois...
Eu e mais três
Mas quanta insensatez!

Só porque tomamos parte
Numa manifestação
Recebemos porradas e palavras
De baixo calão

Já não se pode mais lutar
Pelos próprios direitos
Temos todos de aguentar
Perjúrias e despeito.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dor e Amor nas mãos do Escritor


"O escritor não precisa se expor"
É mentira.
O escritor revela seu Amor
E junto sua ira.

A dor vira ardor
Desilusão, Amor
E nasce o cantor
Mesmo sem voz...

Como todos nós
O escritor vem ao mundo
Da barriga materna
Empunhando o gládio
Da luta eterna

Uns tantos, infelizes
Vendem sua Arte
Sem nela acreditar
Seduzem com palavras
Sem sequer saber amar

Os felizes em sua obra
Têm vida de sobra
O tempo esvaído
A alma recobra

Expor ao mundo
Seu amor
Eis a flor oferecida

Em tempos de dor
A mais nobre colheita
Da vida.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A Luta Muda


Palavras semeadas ao vento
Atravessando as grades
Da cela de um detento

Pedindo a liberdade
Que lhe foi tomada
Cumprindo com suas asas
Toda uma jornada

Buscam na vida o seu sabor
No ar a sua cor
Ressuscitam um velho amor

Suas roupas já puídas
Sua alma escondida...
Ser solto é o início de tudo
Para o prisioneiro mudo

Ninguém sente
A verdade deprimente
De estar num calabouço
Refém da própria mente

O pão com aguardente
Descendo a goela
Não esquenta a frialdade duma cela

Mas ele quer ser solto
Liberado, libertado
E para isso ele luta
Até que os anos deem cabo

Desse sonho transviado
O tempo esgotado
Os dentes já caídos
E o pescoço degolado

Tendo sorte...
A vida recomeça
Jamais o fantasma
Da antiga pressa

Libertar-se é tudo
Para o prisioneiro mudo.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Ao Ano que Segue


Não vejo problema nenhum em você me dizer isto. Muito pelo contrário - tenho a convicção de que os verdadeiros problemas surgem do indivíduo não dizer nada, ser omisso com os fatos e assim dificultar o caminho à verdade. Pode-se dizer uma verdade parcial - aliás, quem sabe tudo? - mas já será um passo em direção à luz do dia, para fora da escuridão cavernosa que nos abraça.

Só persevero neste assunto pois conheço pouquíssimos símiles de Sherlock Holmes atuando na vida Real. E eu seria um péssimo candidato ao cargo. Nas ditaduras do mundo todo já tivemos - outra crença minha - indivíduos omissos em número suficiente para elas se prolongarem anos a fio em sua violência e crueldade, um tanto escancaradas por natureza. É característica do homem sapiente - ó, hipocrisia! - empurrar para o porão do Inconsciente tudo o que lhe é demasiado desagradável para expor ao clarão da consciência.

De tal forma que vivemos - reconheçamos! - praticamente nossas vidas inteiras num estado de hipocrisia velada. Vaca amarela cagou na panela, quem falar primeiro come toda a bosta dela. Aprendemos isto enquanto infantes, e automaticamente que quem por ventura acabar por abrir a boca estraga toda a brincadeira. Brincadeira um tanto desenxabida essa, eu diria. Porque até que quebremos a fantasia da redoma de vidro e o encanto do silêncio, nos encontramos fadados a regozijar com as parcas e bidimensionais sombras projetadas na parede estreita e mal-iluminada da caverna.

Embelezar e falsificar a realidade estabeleceram-se como práticas corriqueiras e diabolicamente aperfeiçoadas. Daí a pergunta inesquivável: Que tipo de mundo é este que criamos para nós mesmos, onde aceitar a certeza da morte é uma atitude tida como pessimista? Como, pergunto, poderemos desfrutar dos maravilhosos frutos mundanos, se negarmos que o futuro que nos aguarda é o mesmo que aguardou todas as criaturas viventes que nos antecederam? Ora, é viver em irrealidade querer mudar a condição humana apenas para aprazer a mente e iludir as massas. Eu faço parte da massa, e não quero ser iludido - me recuso! E morrerei brandindo minha espada por tudo o que tiver defendido.

E estes são os valores que defendo: sobretudo a verdade, da qual depende toda e qualquer possível virtude do homem. Todos os imorredouros princípios éticos derivam da verdade consigo mesmo e da verdade para com o mundo em que moramos, talvez não para sempre. O que se sucede nas masmorras e nos calabouços do imperialismo estadounidense vigente precisa ser exposto e desvendado. Meus pêsames a todos os soldados que pereceram nas invasões ilícitas ao Afeganistão, ao Iraque e ao tão distante Vietnã - pois vocês morreram, meus irmãos, por patranhas, criadas por detrás das cortinas, sob os auspícios da eminência parda, e propagadas pelos totipotentes canais midiáticos, sobretudo a TV, que nestes tempos de sanguinolência e intolerância, traduzem valores bélicos de vida que não são os nossos. Ou que não deveriam ser os nossos.

Nenhum pai, mãe, nenhuma família quer ver seu ente querido e amado morrer numa guerra - quanto mais numa invasão ilegal, ceifadoras de vidas inocentes, pessoas que desejavam tempos de paz e prosperidade tão veementemente quanto nós. A vilificação do mundo se dá pela vilificação dos indivíduos integrantes de uma vasta cultura, cuja extraordinária beleza, devido à nossa ignorância, não podemos apreender. Ou ao menos não poderemos apreendê-la em suas finas riquezas até que nos livremos dos anseios primevos e animalescos de dominação, usurpação, destituição do outro.

Malgrado seja o dia em que os sinos da carnificina tiniram em uníssono por sangue, pois a face e a alma dos gendarmes tornam-se tão exangues quanto às dos desafortunados. Abaixo a mentira descarada! Elevemos a Verdade ao seu merecido pedestal! Eu, como cidadão deste mundo, irrelevante a minha nacionalidade, clamo as virtudes humanas para destronarmos, unidos, a patologia da guerra. Uma vez que a guerra tem por essencial característica germinar em falsas verdades e proclamações falaciosas. Lembremos os extáticos discursos de Adolf Hitler, que levavam suas multidões aos mais exacerbados delírios maquiavélicos, maniqueístas! Lembremos que a população alemã, polonesa e ucraniana daquela época assentiu e consentiu com os pogroms, a parte majoritária denunciando seus vizinhos judeus, ciganos e homossexuais, encurralando-os em guetos, encaminhando-os aos seus abatedouros. Lembremo-nos - desta vez e para sempre! - de que se quisermos a paz, teremos de bradar em unívoco contra os massacres!

Hitler pronunciou, decerto com um sorriso torto e derrisório, que ninguém das gerações futuras se recordaria dos armênios e sua hecatombe nas mãos de criminosos turcos. E de fato, essa besta humana estava certa, pois nem na escola se põe em perspectiva as torpezas infligidas aos armênios em pleno século XX. O primeiro genocídio do século passado se oculta hoje sob um olvido temeroso - pois das chagas passadas, lição nenhuma poderemos tirar se elas sequer são lembradas. Não se pode aprender com o que falta à memória.

Os Bálcãs também foram esquecidos. Os maiores ditadores falecem de velhice, abençoados pela placidez do povo que eles conseguiram domar - lobos na pele de ovelhas - pela violência verbal, pela verborragia belicista, pelos discursos populistas, e pela violência estampada nos atos mais repudiáveis da História. O mais convincente terrorismo, criado e desenvolvido pelos mais poderosos governos, cujos reais objetivos atordoariam as massas, uma vez deslindados. É esse o monstro frankensteiniano plantado no solo fértil da nossa conivência; engendrado como fruto podre direto da nossa estarrecedora ignorância. O Mal se fortifica na calada da noite, quando o silêncio dos bons homens torna tudo plausível.

Primar pela verdade, desembrulhar os fatos de seus invólucros falseadores, e divulgá-los pela palavra, falada e escrita: eis o nobre papel que se estende à consciência - a nossa consciência! - ainda latejante no coração da Humanidade. Que nós possamos ser parte integrante dela - e já!

Um próspero ano novo só pode ser um ano guiado pela consciência e pelo conhecimento - dois amigos inseparáveis. E esse é o próspero ano de 2010 que eu desejo a cada um de vocês.

**
crédito à imagem: Malcom X em discurso. Tal qual Martin Luther King Jr., um ícone negro estadounidense que lutava incessavelmente, corajosamente - e também assassinado na década de 1960.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Indulgência no Prazer

Meu prazer, meu
gozo, digo, meu
ofício, é escrever


A gente procura no gozo tudo o que não encontramos na vida. Que ótimo! De que outra forma poderíamos encará-la de frente, potentes, nos dias que seguem?

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Adeus, andorinha!

O poder da esperança
numa ocasião inesperada
vem com força redobrada.


Uma, duas
Três vezes
Teus olhos buscaram
Os meus

Uma, duas
Três vezes
Fingi me entreter
Conversar
Não te olhar
Jamais de novo

Já na quarta,
Não pude
Suster minha mão
E o cruzar dos olhares...

Secos acenos de mão
E sorrisos sem graça -
Sem dentes.

O hesitar dos teus passos
Teu porte de moça, hoje
Mulher
Vindo a mim, curumim, hoje
Homem

"E aí, moço, tudo bem?"
Não podia disfarçar
Não estava
"Ahã, tudo bem"
Somos péssimos atores
"Mesmo?"
Já afirmo por ti
"Uhum"

E o esboço dum beijo
Um único beijo
Na bochecha
Sem abraço

Você em pé
Sem eu poder me erguer
Foi malvadeza

Simular normalidade
Com minha mão tremendo
No copo de cerveja
Meus amigos me encarando
Na mesa

Pela mulher fenomenal que você é
Malgrado o pé
Qu'eu levei em cheio

Quanta crueza
Falsa gentileza
Tamanha vileza...

Você partir do bar sem nem se despedir
Altiva, garbosa, sem sequer olhar
Pra trás
Me chamar pra conversar
Lá fora

Já não rola nem conversa
To ligado
Te desejo tudo de bom,
Vai nessa...

Eu sigo no meu bom tom...
Bem-humorado.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Nebulosa

Tragado pelo mar da angústia
Eu só queria me salvar
Subir à tona - da tona ao barco
E na deriva me encontrar

Mas o sol me queimou
E a água salgada deu enjoo
Eu observava, debilitado,
As últimas aves em sobrevoo

Foi então qu'eu vi
Os filamentos da minha vida c'o mundo

Eu morria e via
Todas as pessoas
Marcantes, c'o potencial
Qu'eu acreditei ter em mim um dia

Eu morria - e ria!
Do quão sério eu fui -
Do mistério qu'eu via em tudo!

A próxima vida, gritei:
Viverei debochado!

E foi assim que m'encontraram
Naquele barco destroçado
São e salvo -
Um homem transformado.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Amor

Meu mal foi te conhecer...
...
Foi não, meu bem,
Só assim pude crescer
...
Sem você.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Feliz Natal

Eu nunca fui pedinte
Fui sempre bom ouvinte
O papo é o seguinte
Agora eu vou falar

No primeiro dia
Você era a mais bela
Na segunda vez
Ainda uma donzela

Mas daí você me disse
Acabou, tá terminado
Não sinto esse amor-paixão
Dali eu fui pro chão...

Jogado na miséria emocional
Mastigando o pão amassado
Misturado e mesclado
Com as ervas do diabo

E hoje eu te vi
Um belo exemplar
Do tipo de mulher
Que jamais pisaria
Em meu lar

Usado, largado
Um náufrago ilhado
Totalmente humilhado
Foi como eu me senti

Um pierrô do amor
Seguidor do platonismo
Eu procurava nessa fé
O meu próprio iluminismo

Do céu para o abismo
Expulso do etéreo paraíso
Procurei fortalecer
No meu cruel cinismo

E hoje eu sei
Como ninguém
Que quando eu te amei
Eu vivia no além

Porém agora no aquém
É tudo mais Real
Obrigado, baby -
Tchau, tchau...

(Feliz Natal)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Conversa c'o pé preto

Afasta-te!

E sabe o qu'eu disse pro demo?
Aqui tu não entra, aqui eu não te temo
Aqui é o meu lar
E tu nem pense
Não na minha sala de estar

Vai pra fora, rabugento!
Cá dentro tu n'u m'engana
Dos teus dentes alvos...
Do teu belo corpo...
Tu cospe é chama!

Na minha casa eu tenho é muita gana
Um par de colhões, e um coração que me chama
Pelo nome e sobrenome
Vai-te embora c'o teu codinome!

No meu lar se alicerça minha vida
Esta mulher qu'eu tenho por mais querida
Aqui ninguém invoca rapariga!

Chegando mais perto...
Bancando o esperto -
Tu toma é cuidado
C'o meu olho aberto!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A Grande e Inegável Farsa



Homem, você já sentiu que essas guerras, Iraque, Afeganistão, esta que está sendo fabricada contra o Irã, são todas orquestradas muito antes de acontecerem? Porque não sei se você já parou pra pensar, mas levam-se meses, quando não anos, planejando o contingente militar que será posto em ação, a logística de equipamentos, armas, tanques, aviões, o dinheiro que será subtraído da população civil por meio de impostos "reforçados". Enfim, uma guerra não é nada que se inicie ao estalar de dois dedos. Uma guerra precisa de previsão, estatísticas preparadas de antemão, pessoas e mais pessoas empregadas no complexo industrial-militar, coniventes ou simplesmente coagidas monetariamente a entregar suas almas em prol de matanças em países estrangeiros, onde não se sabe nem o nome, nem a cultura, nem nada sobre seus habitantes - vistos como exóticos, perigosos, imprevisíveis. Mas não passam de pessoas como nós.

Armas de destruição em massa que nunca existiram. Um Osama Bin Laden que morreu em 13 de dezembro de 2001. Pois é. Até hoje eu ainda acreditava que ele estava vivo. Como a mídia nos engana. Um suposto Saddam Hussein tirado de uma "toca de coelho", metido entre pés de alface, e convenientemente na época do Natal (sim, faz anos...), quase um peru, que só faltou ir pro forno. Mas a guerra jamais parou. Reforços são enviados, e vêm à tona relatos de veteranos que perceberam o quão fundo vai o buraco abissal de mentiras, mentiras e mais mentiras. Os enganados somos nós. Parvos e tolos e mais preocupados com a morte de Sarah Fawcett, Lombardi, Patrick Swayze, ou Brittany Murphy. Mais preocupados com tantas coisas desnecessárias, enquanto o nosso presidente usa o termo "Merda" num discurso, e a claque toda aplaude, como se fosse legítimo da parte de um presidente soltar palavrões num País que precisaria é de um bom exemplo - e mais que isso, alguém que tivesse a devida permissão de governar - mas isso parece impossível com a gama de lobbies que se tem de enfrentar, ou diante dos quais o governante supremo se vê forçado a prostrar.

Um mundo em que qualquer palavra proferida contra a santidade israelense torna-se evidência de uma mente antissemita, algo tremendamente perigoso no mundo atual. Criticar o apartheid israelita é ser anti-étnico, é ser contra o povo que aquele Estado ilegal abriga. Mas que urtiga! Já nem mais podemos abrir a boca. Estamos todos livres para chamar Mahmmoud Ahmadinejad de negador do Holocausto, mas ele nunca disse nada disso. A Obama é conferido, numa piada de mau gosto, só pode ser, o Prêmio Nobel da Paz. Que paz é essa, homem? As tropas continuam no Afeganistão, no Iraque, e cerca de 30 mil soldados estão sendo enviados como reforço ao Afeganistão, que hoje supre mais de 2/3 da heroína consumida no mundo. Colhe-se a papoula, que será posteriormente transformada em ópio, e então em heroína.

Vivemos no 1984 predicado por George Orwell. Podemos enfiar a cabeça num buraco cavado na terra e fingir que nada disso está ocorrendo, mas está - e diante dos nossos olhos, atônitos ou dormentes que estejam. Não importa. A Verdade é Mentira, A Guerra é Paz, a Truculência é Auto-Defesa, Agressão é lugar-comum. A história rodopia em derredor de massacres e os abutres e urubus a sobrevoar, pairando sobre as carcaças de milhões e milhões de seres humanos inocentes. Detalhe: quem se beneficia de tudo isso? Os soldados voltam surdos e traumatizados da ilícita guerra, a ONU estima em 1 milhão o número de iraquianos mortos (em 6 anos de agressão), um sofrimento inenarrável, nós que vemos tudo isso e (ainda) não somos alvejados por bombas, condenamos, ou silenciamos, e de alguma forma percebemos que algo cheira mal, não vai bem, o elefante caiu morto no centro da praça e a fedentina teima em invadir as nossas casas.

Os políticos apertam mutuamente mãos frias, rostos sorridentes - como se houvesse por que sorrir. Sim, há a bela vida que temos pra sorrir. Mas não devemos esquecer o que se passa do outro lado do mundo, as ditaduras sob as quais os povos sul-americanos sucumbiram, na política da "Boa" Vizinhança (Good Neighborhood) estadounidense. Sim, as gerações passadas ao menos tinham o alento de ver a Ditadura diante dos olhos - podiam não acreditar de primeira mão, mas vinham seus amigos e escancaravam que havia tortura, sequestros, atividades criminosas acontecendo a torto e à direita, oficializadas. Já hoje as coisas vão mais aprimoradas.

Sim, vemos a dominação econômica. Uma vez ou outra somos obrigados a ver marginalizados nas calçadas, uma vez ou outra somos assaltados, um pequeno lembrete de que a economia força alguns para as extremidades, e das extremidades para fora do recipiente. Recipinete denominado sociedade - que, parece, não comporta todos os indivíduos que a compõem. Alguns grandes criminosos nunca são pegos, a não ser pela morte - que o diga Celso Pitta, Antônio Carlos Magalhães. José Sarney, Paulo Maluf e Fernando Collor? Nem pensar... o governador do Distrito Federal (vulgo Brasília, vulgo "capital do Brasil") enfia dinheiro desviado onde bem entende, e nada lhe acontece.

Se um dia você virar um figurão, e quiser surrupiar dinheiro destinado a causas mais nobres, ditas sociais, ou pró-desenvolvimento, descubrirá que, tendo cuidado, dificilmente irão te pegar. A cultura da impunidade germina cedo na (ausência de) alma de alguns - talvez uma boa parte da população. Eu estou cansado de escrever, eu estou cansado de hipocrisia, e repito que um bom cidadão deve participar. E para participar, ele tem de ler assiduamente, criticamente, ferrenhamente. Questionar, indagar.

Vivemos em tempos de Ditadura Silente. Você não sente, mas ela sequer precisa se esconder. Temos medo de fantasmas, eles nos assombram facilmente, e preferimos criar toda sorte de artifícios para não visualizá-los e mijarmos nas calças de medo. Mas ignoramos que só uma criança que mijou a calça de medo pode aprender a lidar com o medo de uma forma inovadora. Nós temos medo do medo. E assim a sociedade se arruína.

E o único remédio que eu posso recomendar é sott.net. Sem o que nada do que escrevi teria sido minimamente possível. O trabalho desses caras é mágico - notícias garimpadas de cada um dos quatro cantos do mundo, atualizado rigorosamente todos os dias do ano, cobrindo uma vasta atualidade frequentemente deixada de lado pela mídia toda-poderosa. Há sete anos iluminando minha vida.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Vida

Fluida, empedernida. Um sopro: tudo lembra e tudo olvida.


Minhas pernas me levaram pelo centro da cidade. Andando depressa e observante, vi o homem no canto da calçada, as costas curvas, cantando música sertaneja de raiz. Sentado num banquinho, se esforçava em entoar alto, que as pessoas ouvissem sua arte. Poucos pararam para escutar as belas palavras. Não lembro se trazia chapéu à cabeça, de quantas cordas tinha o violão, se usava bota ou sapato ou tênis. Não lembro se era calça jeans, nem a cor da camiseta. Na verdade, de pouco me recordo. Costuma-se dizer que o mal observador se lembra apenas do que o impressiona, o restante passa-lhe despercebido.

Lembro-me que sua voz por pouco não esganiçava, que ele tinha as feições de um homem de 65 anos, que seu rosto era macilento, e um tanto repuxado pela quase total ausência de dentes. E mesmo assim cantarolava, e bonito. Via-se que ele acreditava em sua arte, por mais que os transeuntes ocasionais, de índole crítica, buscassem esmiuçar em sua aparência e simplicidade, os sintomas de uma música ruim; ele mantinha-se firme ali, recurvo sobre o violão, rosto voltado pra cima, como a antena que amplifica a transmissão. O rosto que visa o céu.

Esse homem talvez eu não mais veja. A possibilidade na verdade é uma probabilidade. E a probabilidade me diz, numa voz límpida, que uma pessoa jamais deixará de ser uma pessoa, e esse estatuto jamais será reduzido ou realçado pelo o que ela aparenta ser. Vivemos num mundo em que as aparências precisam ser desvencilhadas da essência, porque tratamos aqui de superfícies lisas, luzidias e escorregadias. Precisamos aprender muito para penetrar no âmago das coisas. Dos nós que damos em nós mesmos. Até lá, seremos bolhas em conflito com milhões de outras bolhas, ignorantes do fato que estamos prestes a estourar.

Algo enganoso nos faz pensar que somos dalguma forma fortes e valentes, mas sequer percebemos a fragilidade de tal concepção.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Consciência Limpa

Eu não tenho a ambição de ser porta-voz de ninguém. Mas já vi e ouvi o suficiente pra me convencer de certas coisas, determinadas práticas, que tornam o policial em justiceiro, e o justiceiro em assassino. Isso eu abomino. O colarinho branco sempre se safa, o ladrão de galinhas sempre se fode. Os políticos corruptos se unem pra engordar a gorjeta e todo dia eu vejo sujeito estirado na sarjeta. Eu pensei: uma vez ali, o difícil é sair - mas nossos governantes não estão nem aí. E quem os elegeu, tampouco. Nós. Cada um confere o próprio nariz, constata se este se mantém arrebitado, no lugar corriqueiro, e facilmente se esquece que a Matriz permanece a mesma pra todos - e que este, e somente este, é o nosso plano Real de existência, ou desistência, como o queira chamar.

*

O PM me parou
Um cuspe voou
Da boca dele no meu rosto
Um puta desgosto

Acontece, pensei
Acontece sem querer
Mas ninguém paga nego
Pra gritar e berrar
Sem poder me defender
Isso é humilhação

Me empurrou na viatura
Revistou, insultou
Perguntou:
"Ê, neguinho safado,
Donde veio esse Rolex roubado?"

E daí pro camburão
Injusta detenção
Aquilo foi é plantado
Mas como eu vou provar
Não tenho advogado
Meu rosto detonado
De tanto esmurrar

Me meterram numa cela
Superlotada
Me desonraram e disseram:
Procedimento Padrão

Vou me matar enforcado
E morrer como ladrão
Um guerreiro enganado
Sufocado na prisão

Não consigo nem me olhar no espelho
Já não me serve conselho nenhum
Eu queria é viver
Inserido no meu meio
Minha família, meus trutas
Meu trampo, meu esteio

Falou, sangue bom
Não quero virar carne
Nesse mundo de cão

Um cara inocente
Transformado delinquente
É um cara decente
A menos
Na rala sociedade

É um mundo doente
A dura realidade
A morte do inocente
Germinada na maldade

O pobre não é gente
É burro de carga
Soltou toda a merda nele
Agora puxa a descarga.

Façavor.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade: Assalto

Publico aqui o belíssimo vídeo realizado pelos meus grandes amigos de escola, cuja criação data dos princípios de 2008. Um ano marcante, sem dúvida. Baseado, como diz o título, no poema de Drummond.


Vai abaixo o poema completo:

*

No quarto de hotel
a mala se abre: o tempo
dá-se em fragmentos.

Aqui habitei
mas traças conspiram
uma idade de homem
cheia de vertentes.

Roupas mudam tanto.
Éramos cinco ou seis
que hoje não me encontro,
clima revogado.

Uma doença grave
esse amor sem braços
e toda a carga leve
que súbito me arde.

No quarto de hotel
funcionam botões
chamando mocidade
fogo, canto, livro.

Vem a quarteira
depositar a branca
toalha do olvido
insinuar o branco

sabão da calma.
A perna que pensa
outrora voava
sobre telhados.

Em copo de uísque
lesmas baratas
acres lembranças
enjôo da vida.

Ponho no chapéu
restos desse homem
encontrado morto
e do nono andar

Jogo tudo fora.
A mala se fecha: o tempo
se retrai, ó concha.

*

link

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Relatos estrangeiros

Sem rodeios nem floreios
Eu quero te contar
A seguinte história
Vai agora começar:

O sal do mar ardendo os olhos
O sol do mundo abraseando
O limpo céu causando risos

A alegria de estar vivo
Gota a gota escorrendo
Pelo crivo do tempo

A contagem inexaurível
Que o corpo nu'acompanha
Nunca pôde acompanhar

Na parca vida só há esta façanha
O eterno retorno ao lar

O despertar da jornada
E as estrelas como guias
Mais esta caminhada
Pelas sendas mais esguias

Mais uma tentativa
Seguindo as rochas frias
Pega embalo a comitiva
Todo dia é santo dia
De se plantar a alegria

Ante o suor do esforço
E o cansaço do mormaço
Nossos olhos reluzem
Sob a sombra das nuvens...

Penugens ao vento.

Sabor do Saber

O sol no horizonte
Etérea ponte
Entre homem e céu
Eterna fonte
Ao homem incréu

Os braços cruzados
Os olhos erguidos
Os pés já cansados
E o grupo de amigos

Debruados sobr'a orla do mundo
Num anseio
De contar e abranger
Olhar e ouvir
O elixir do diálogo

Quanta vida, gente
Quanta vida aqui presente
Tanta vida a alma sente.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Revolta!


cartum: Latuff

Famílias nas ruas
Vivendo nas calçadas,
Deixadas
Pra rezar pro céu
Pra rogar perdão
Mas não!

O céu vem depois
E o que fizemos nós
Pra tirá-las da miséria?
Aqui não é Argélia, Nigéria
Vivemos no Brasil

Terra da alegria
Mas que alegria é essa?
Vivendo com pressa
Virando a cabeça
Pro lado
Quando vemos o sujeito
Marginalizado?

É esse o futuro da Nação?
A precária educação -
A probreza - tristeza
Uns poucos comem ostra
A maioria sobrevive
À base de pão - que o governo amassou
Ladrão.

Que futuro é esse, meu irmão?

O País do futebol
Eterno besteirol
Cerveja, carnaval -
Cara de pau
Opressão medieval

Chega de mentira
É hora de agir
Expressando a nossa ira
Nós vamos resistir!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Coming to Terms


Once I believed in love
It was truthful and all-embracing
It was joyful and ever blissful
Everything that ever mattered

Two souls fusing into one
Synchronicity plus simplicity
It was a matter of fact
That two persons should bond
And deep down care for one another

This way I was plunged
Into the depths of hell
My own hell
My own self

I was cast adrift
In the midst of the relentless sea
My eyes were shut
Light made me blind

The unbearable pain
Made me refuse to hold
For once
My entire life bare naked

For all I believed
It couldn't be real
No way could I turn so empty
From one day to another

It was a pang bang
Murdering my soul

***

But now I know it better
All my tears had their reason
Today is a brand new day
It's wholefully mine

Come rain or shine

Bein' in love is cool
But when it ends
You play the fool
... and you never knew
Where you stood

You stood on the razor's edge -
That sudden slip cut you in two...
Pretty hard to tell
Who's who

The one part you love
The one part you hate
On and on goes the debate
Without knowing who you really are

Long forlorn the kind embraces
The first loving kiss
The unforgettable bliss

It is past
Though it'll last
But you've got your own story
Now to tell
The days you lived
Your very particular hell

...

Boy, what an empty shell.

Jesus' Verdict

I confess
For some I came as a curse
For others, just like a bless

And I'm no nurse
To sort out this mess

From the day I was placed on the cross
Humanity was at a loss.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Piparotes Diários

Fumando sem nada na barriga
Pensando naquela rapariga
Ô diacho de ferida!
Que não cala e não sara

Ora sara e reabre
É um golpe de sabre!
O meu cor cá morrendo
Azedo, vinagre

Um estoico me disse:
Mais sofrer, mais ensina
Eu cá não sei...
Tão triste sina!
Tanto sofrer desanima!

Melhor mulher não há...
Cantou o sabiá
Já sei, já sei...
Mas ond'hei de achar?

Ou serei eu o achado...

Ah, Fado malvado!
Ensina errado ao pupilo aplicado
A quem resta chorar, confrangido
E sofrer resignado

É tudo, então, uma peça, uma troça?
Tamanha brincadeira insossa!
Do início ao fim da vida...

É de embrulhar a barriga.

Sorte Citadina

Qual sorte a nossa!
O perfume pós-banho
Cheirar a Tietê -
Vulgo: fossa.

Curtir o forninho do vagão
A encoxada do busão
Epa, rapaz! Ó a mão!

Funk gostoso esse, mermão
Esse samba tamém é legal
Só não quero morrer nesse caixão
Que nada tem de genial...

Passa a mutuca, Joe!
Vamo incinerar
Esse charles charmoso
Pra relaxar

O dia foi duro
A mulherada disse não
Uma puxada tudo passa
Os óio fica vermeião

Dá uma fome que embaça
E aquela sede de cão
Puxa de novo que passa...
Ah... Paz...
Essa é a nossa religião

Disse o barbudo:
A religião é o ópio do povo
Mas o povo, papudo, se encheu da analogia
A gente quer é maconha
E fumar sem vergonha...
Nossa ordinária orgia

Pão e circo que nada...
A gente é mais beque e muié pelada...

O Saco Cheio D'água

Moacyr Lopes Junior-08.dez.2009/Folha Imagem

Milagre!
A água uniu
Rua e rio
Tempestade

Nos deixou
Tremendo de frio
No torpor da cidade

Buzinas de moto, de carro
Um cuspe, um arroto, um escarro
Ninguém se lembra dos índios navajo
Nossos pés estão sujos de lama

A madame, irascível, reclama
Sentar-se no carro é deitar-se na cama
E a madame ainda se inflama

Oh, Grã-cidade estagnada!
Das sujas ruas sem pelada
Nossa vida: refinada, poluída -
Inundada
Nossa alma esburacada,
Grita em dor -
Congestionada.

O cruzamento -
Encruzilhada
O primeiro tiro certeiro - Paf!
Eis a moto derrubada.

Bem-vindo à nova ordem!
E um brinde final:
À inescapável morte!
Hoje coletiva e civilizada,
Nesta triste bacanal.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pollyanna


Que livro fabuloso, tanto o primeiro (Pollyanna), quanto sua sequência (Pollyanna Moça)! Escritos por Eleanor H. Porter, o primeiro em 1913 e o segundo em 1915. Foi com estes que a autora tornou-se aclamada mundialmente, e deu à luz esse nome um tantinho surpreendente, misto de Polly + Anna, dois nomes femininos até então (creio eu) dados apenas separadamente. Aliás, eu conheci uma garota chamada Poliana, no dia 9 de junho deste ano, o dia em que a polícia "brincou" de pega-ladrão conosco, estudantes uspianos, dentro do campus da nossa querida universidade.

Bom, preciso dizer que eu nutria profunda desconfiança por esse romance que havia caído de repente na boca de todos, desde os meus pais até a nossa geração - ouvi outro dia meu amigo explicando a origem do nome, e fiquei intrigado: ué, se todos falam, é porque algo tem. Não necessariamente, mas bem capaz que tenha! E continuei empurrando para baixo o impulso de pegar o livro e lê-lo para sanar essa dúvida.

Por um total acaso, acordado de madrugada (não lembro se por algum pernilongo ou outro motivo igualmente forte), fui vasculhar o interior de uma das estantes aqui de casa. Ela fica bem pro alto, e sempre dá vontade de olhá-la! Preciso de uma escada para alcançar seus volumes, e subir - para alcançar as prateleiras do topo - até último degrau, o que é emocionante o suficiente para uma alma aventureira como a minha. Foi então que descobri que ali estava, intocado há anos e anos.... Pollyanna! Traduzido por Monteiro Lobato, então... mais uma razão para abri-lo, investigá-lo, tocá-lo... enfim, todos esses sutis prazeres desfrutados por nós, bibliófilos.

Que estória maravilhosa nos apresenta a autora: uma garotinha que brinca do "Jogo do Contente". O simples - porém desafiador - jogo consiste em contentar-nos com o que temos, não importa o quão ruim, ou o quão abaixo de nossas expectativas iniciais. No começo, franzimos a testa para tal iniciativa: parece, naturalmente, otimismo demais para ser posto em prática! Mas descobrimos que com isso Pollyanna consegue mudar as pessoas de uma maneira radical. Isto é, porque ela vive o jogo, e sua natureza expansiva a faz convidar completos estranhos a dele participarem, operando mecanismos de cura insconscientes, e assim se aproxima de tais pessoas e toca seus corações de modo inenarrável. É uma estória fabulosa, visto que não pressupõe uma evangelização das pessoas, uma pregação de sermões, uma exegese bíblica.

Ela simplesmente age numa maneira altruísta e exploradora de ser, numa ingenuidade impressionante, sem distinguir pobre de marajá, branco de preto, novo de velho. Para ela, todos são potenciais jogadores do Jogo do Contente, e, sendo assim, não há diferenciação de uma pessoa para outra. O que quer dizer que todos são potencialmente bons seres humanos, ainda que não tenham descoberto uma maneira de sê-lo. Incrível como ela põe esse jogo em prática, jamais se isolando numa redoma de falso contentamento. Não, esse contentamento é algo que é parte integrante dela, e seus frutos logo amadurecem de um jeito esplêndido. Pessoas entediadas com a vida, ou mesmo enfermas, descobrem que há pequenos prazeres que podem ser gozados e esse simples contentamento é algo que pode mandar de um minuto a outro sua miséria existencial embora!

Claro que, sendo um romance, a autora achou preciso obstar o caminho do pleno contentamento com desafios dignos de serem superados. E assim se desenlaça a estoriazinha catequizante - embora nada tenha a ver com religião alguma. Propõe-se, sim, uma religião da alma, e os seguidores são livres para agir conforme seus princípios ou não. Quem não for de acordo, não será mal-visto. Pelo contrário, terá em volta pessoas que se sentem melhores após terem começado a tomar desse antídoto, e tais exemplos podem, como não podem, ser seguidos.

Pollyanna Moça traz novas dificuldades para ela, porque na vida adulta é que normalmente deixamos nosso espírito brincalhão e bonachão, e a feliz bonomia de lado. E ela adentra esse mundo com seus passos vistos como infantis, inapropriados para alguém que está crescendo e precisa entrar nos conformes da sociedade que a enroda e já segue uma certa rigidez de costumes - entre eles: bancar o sério, exigir, demandar, depreciar o serviço mal-feito, mas jamais elogiar o feito corretamente.

Pollyanna, tem, portanto, uma jornada cheia de pedregulhos para seguir. E sabe-se que é tarefa impossível a qualquer que seja chutar para longe todos os pedregulhos do caminho, simplesmente por nos incomodarem. São muitos, e dalguns precisamos necessariamente nos desviar - esses são, aliás, grandes demais para os nossos pés. Acabariam por nos machucar, e disso não gostaríamos nadicas. Vê-se ela, portanto, diante do problema de como continuar pondo em prática um mote de vida que é visto como tipicamente pueril, apesar de não sê-lo. E, ainda por cima, continuar praticando-o quando já não se é mais um infante, e já não se tem sobre si olhares na maior parte benévolos e compreensivos.

As críticas hão de vir, mas sua força de espírito e d'alma reinará. Como se dá isso? Só lendo esses dois curtos volumes! Eu ri muito com essa obra. Redescobri a importância de ver, nos pequenos momentos, os mais majestosos, porque simbólicos da fragmentação do Uno - e facetas do Real, o Numênico kantiano, invisível a nós, pobres mortais. Mas que, em vida, muito podemos fazer - por nós, e, indiretamente, pelas partes interessadas.