domingo, 31 de janeiro de 2010

Haiti: Ser Mártir é Morrer a Sorrir

Keely Kernan

O sismo abriu
Centenas de metros
Engolindo fetos
No pavimento frio

Duzentas mil pessoas
Troando tristes loas
Pairando sobr'a terra...
Não, não foi guerra

Foi o tremor da dor
Ruindo a cidade
Quantas lágrimas rolaram
Pós a vil calamidade...

Parentes e amigos
Perdidos, engolidos
Pelo solo
Descrentes e feridos
Choramos de terror
Sem consolo

Em prantos tentaremos
Reconstruir a nossa vida
E fechar a cicatriz
Dess'imensa ferida

Quem quis isso
Quem isso desejou
Não pode ser feliz
Não pode ser avô

Pois meus netos
Perdi-os todos
Chafurdo no lodo
Sem vivo afeto
Treme-me o corpo
Semimorto
Irrequieto

Minha filha lastima
A perda do noivo
Não temos goivo...
Somente esperança

Nossos finos braços
Perderam os abraços
Mais tenros
Foram-se noras
Foram-se os genros

Agora nos resta
Erigir de novo
Mas a faina molesta
E eu me comovo

Por ter sobrado vivo
Nesta urbe soçobrada
Nos escombros meus queridos
Encontraram sua morada

Sob os mis destroços
Entrevê-se uma caverna:
Um prensado pescoço
Um pedaço de perna

Soterrados
Desalmados
Sem o túmulo
Sagrado

O corpo estilhaçado
Garroteado, esquartejado
Corpo e corpo
Lado a lado

Famigerado País macabro
Libertado... dominado
Independente... amordaçado
Quem sofre é a gente
Não somos cabeça de gado

Um povo subjugado
Pelo poderio militar
Deem-nos arado
E um pouco de ar
Precisamos respirar
Desde qu'usurparam
A nossa pátria,
O nosso lar

Médicos e enfermeiros
Corajosos guerreiros
E pessoas de fé
São vocês os padroeiros
Da nossa Santa Sé
Com seus pés ligeiros
E o sorriso do pajé

Estampado no rosto
São, de quem exerce
Seu trabalho com gosto
Numa viva ação de prece

Pois a mais sacra reza
É a mão estendida
Num teso aperto
De sóbria firmeza
O maior gesto amigo

Nossa gente é forte
Peitamos a Morte
E a sombra do Diacho
Enfrentamos peito aberto
A nossa própria Sorte

E no bravo viver eu acho
Toda a nossa força
A fugir do laço
D'apertura da forca

Eia povo varonil!
Assimila o seu vigor
Da correnteza do rio
E encontra o seu amor
Na diária dureza da vida
Essa vida sol a sol
Duramente combatida.

***

Eis minha modesta menagem a esse povo.

15 comentários:

Jefferson disse...

Duramente escrito e lavrado, isso sim!

André disse...

Cara, isso é uma obra de arte.
Sinceridade e solidariedade em forma de poesia.
MUITO bom, mesmo.

Fernando disse...

Agradeço, André!

Obrigado, irmão!

Faça esse experimento: leia sobre uma catástrofe, comova-se com ela, e tente ordenar no papel seus pensamentos, suas emoções e suas angústias sobre o assunto.

É mais ou menos assim que se dá o trabalho de escrever (no meu caso, já que é nisso que eu me aprimoro) sobre um desastre.

Mais uma vez, obrigado!

Anônimo disse...

:) Uma lindíssima homenagem. Palavras de poeta e de afecto.

Ana Lúcias
arco-Írisreloaded

Fernando disse...

Obrigado, Ana Lúcia. Serei sempre grato pelas tuas passagens cá pelo blog.

Glen Barbosa de Carvalho Batoca disse...

Oi Fernando!
Parabéns por este belo espaço poético!Muito obrigado por sua visita e pelo seu comentário!
Abração e sucesso!

Fernando disse...

Eu que sou grato, Glen! Passarei no teu sítio sempre.

wrodcarica disse...

Fernando,
Você sintetizou de forma poética todo sofrimento que o povo haitiano vive...Sensacional !!!
Abraços...

Tu disse...

Nossa Fernando!

é incrível do jeito que vc esculpi tudo o que vemos e sentimos..

Ordena frases, o texto fica profundo sem ficar pesado!

Parabéns!

Bruno disse...

Muito bom, Fernando!

Valeu pela dica, a charge está devidamente corrigida.

Abraço,
Bruno.

Fernando disse...

Poxa, obrigado, Wlamir! Eu fiquei bastante abalado com o acontecido e tentei fazer disso um ponto de partida.

Tu, você faz um elogio e tanto! Eu fico é muito feliz que não tenha ficado pesado, e mesmo assim transitido um pouco da dor haitiana.

Bruno, sou muito agradecido, estarei sempre passando pelo teu site. Obrigado, todos!

Unknown disse...

poxa, q bonito! q dom, hein
parabéns.

Fernando disse...

Valeu, Meg! Estava com saudade das suas visitas :D Gostei.

GrrreenCartoon disse...

Beleza, Fernando.
Para o universo em desencanto
A Poesia é o acalanto.
Biratan

Fernando disse...

Sim, Biratan, acredito igualmente nesse poder mágico da poesia. Bem colocado. Sinto-me honrado com tuas visitas, obrigado.