quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As Três Vertentes do Mal

A ira não é senão um movimento súbito
e desarrazoado que nasce de impulso
determinado pela amargura sentida.
Ela é quem expulsa qualquer laivo de
razão; que ofusca os olhos do espírito;
e que desperta ebulientes furores em
nossa alma.
(Decamerão, de Giovanni Boccaccio -
4ª Jornada, 3ª Novela)


Vingar-se
é trair-se é matar-se. Implausível a não-remetência. Vingar redunda à traição, que redunda à morte. Matar-se é trair o intuito que o trouxe ao mundo, que é conhecer-se, queimar-se nas labaredas dos desafios, cortar-se na lâmina da navalha, para, somente então, aprender a equilibrar-se, incólume e ereto, sobre o fio afiado, cortante, e frio. E matar-se é ultimamente vingar-se dos outros, porém arrancando com os dentes a própria pele. O que é, concordo, um martírio flamejante, mas ainda assim um extirpar da própria existência. Trair-se, por sua vez, implica matar um caro ideal, inflingindo a si uma perda lastimosa. No fim, também uma vingança, devidamente brindada, da parte do mal contra o bem que há em nós, e só a nós é dado conhecer. Ou melhor, dado não, mas revelado, na escuridão hiante e medonha da noite. Cuidado, pois, com o ciclo tríptico vicioso. Quem quer o mal, pratica o mal.

***


1. Trair-se

O furor do assassino
Nos olhos de menino
O amado, enganado,
Homicida despertado

Vãos punhos hercúleos
Maculando a própria força
A hombridade nem nisso reside
Só o leva à forca

A vã glória: vingar-se
Do vil ato feito
É o sujar da memória
Destino imperfeito

Deitar-se no leito
Assombrado, marcado
Qual gado - o cor quebrantado
Só o ódio satisfeito.

2. Matar-se

Ao Gabriel, que ficou de pegar emprestada a
minha versão d'O Admirável Mundo Novo. Não
tendo corda para dar cabo de si (à semelhança
de John, o índio), acabou por defenestrar-se, a
exemplo de Chet Baker. Por causa de ti, ido
amigo, Brave New World jamais me faltará
à mente. John és tu - perfeitamente tu.


Incompreendido, imberbe, e só
Viu na vida sua pior faceta
Olhar-se no espelho, sentir dó
O peso de vir ao mundo

Imundo, mal a mal lavou o rosto
Viu-se de novo - puro desgosto
O que é a vida? Uma existência empedernida...
De sol a sol fadiga e a dura lida...
Isto não é vida

Nasci velho - morrerei jovem
Nem as lágrimas maternas me movem.

3. Vingar-se

Ver-te com outro
Sem verter-me em pranto
Nem bêbado, nem ébrio,
Nem por encanto

Antes sorveria em copos
As lágrimas da chuva
Derramaria com socos
Todo o sangue da uva

Provaria a transubstanciação
Todo o enunciado do Evangelho
Morreria de aflição
Vivendo a vida de um velho

Perdoar eu não perdoo
Seria, sem asas
Alçar o meu voo
Queimando, nas brasas
Do meu próprio enjoo

Querer-te bem eu quero
Mas, cá entre nós,
Sem mais lero-lero

...

Eu o matei
Naquela noite
Atado ao poste
Vergastado no açoite

E agora te mato
Depois eu me mato
E mato teu gato
E o rato também.

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