quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Ó a enchente, minha gente

Não me recuso a ser recluso
Enclausurado em minha cela
Não quero entrar em parafuso
Neste mundo bagatela

Me falaram da verdade
E onde ela está...
Eu só vejo a vaidade
E a consciência má

Dia a dia me rebaixo
Sob botas, sob ordens
São todos muito machos
E pelo osso mordem

Uns aos outros
Ladram soltos
Cães com baba
No pescoço

Escorrendo a contragosto
Molham a barba já bem suja
E o pergaminho tosco
Embebido em garatujas

Lá se escrevem leis
Repletas de brechas
Dirigidas aos reis
Copiadas com pressa

Onde dois mais dois é três
E fim de papo
Quem contrariar de vez
Toma no ato um sopapo

Os ricos se safam
Quem não pode, implora
Gargalham os poderosos
E se mandam embora

Dona Rita, uma senhora
Foi desalojada
Ajoelha e ora
Na beira da calçada

O dilúvio de Noé
Chegou de surpresa
Quem não tem fé
Não pôde acreditar

Sem arca nem barca
Ruas nuas inundadas
Malsã água pútrida
Mães e filhas afogadas

Nadar no lodo pardacento
É de ficar na memória
Aquele lento momento
De sobrevida inglória

Mas a história se repete
Ano a ano é o descaso
Em páginas de internet
Lê-se tudo sem atraso

O pouco caso do governo
É fenômeno corriqueiro
Uns no céu, outros no inferno
O assunto sempre o mesmo
Pouca verba, falta dinheiro!

Dona Rita e seu filho
Foram protestar
Na boca o estribilho:

Queremos nossa casa
Queremos nosso lar!
A prefeitura sempre atrasa
Agora é hora de mudar!

Pá Paf Pof Pum
Balas de borracha
Spray de pimenta
Esmaga a populacha!
Que pobre tudo aguenta!

E no medo se afugenta
E na mídia se distorce
Decifração lenta, lenta
Desse código Morse

As eleições chegando
A revolta noticiada
Mas de um jeito brando, brando
Parece até piada

Mas é isso mesmo...
Povão da pelada
Mi'a pobre gente
Amanhã tem torresmo
Um brinco de feijoada!
Político nunca mente...

Só dá uma disfarçada.

3 comentários:

Tu disse...

Adorei o texto...infelizmente na minha casa da enchente...é exatamente assim

continue tirando as palavras do coração!

Tava postando tbm e vi q vc acabou de postar!!

bjs

André disse...

Poesias engajadas, manifestos.
Suas obras de protesto são simples no vocabulário, didáticas. Mas profundas no significado e encharcadas de indignação.
Muito bom!

Fernando disse...

Tu, eu já passei por enchente, mas andando na rua em dias de temporal. Nunca na minha própria casa. Tenho certeza que é terrível! Vou ler tua postagem neste momento.

André, a intenção é essa mesma, como você bem notou: introduzir nesses poemas um vocabulário falado e romper um pouco com o tracionalismo lírico de preciosismos (tão admirável, mas em contrapartida limitante).

Muchas gracias.