'Bako', na língua bambara, significa "a outra margem". Na época do filme, ela era utilizada pelos emigrantes de Mali para designar a França, quando se encontrassem em países fronteiriços, especialmente a Espanha, sem levantar suspeitas.
O diretor Jacques Champreux não idealiza em ponto algum ao seguir passo a passo o tortuoso e infindável trajeto, que leva esses migrantes sem melhores alternativas à Europa.
Os "coiotes" encarregados de levá-los não raro são farsantes, mostrando que as somas vultosas envolvidas na imigração ilegal falam mais alto que a vida de um africano pobre, ou dois, ou quantos forem necessários.
A pior desilusão para muitos desses imigrantes ilegais talvez seja, ou fosse, o momento em que descobrem que, mesmo chegando à sua destinação, foram logrados. Chegando lá, não há ninguém de braços abertos, e os próprios compatriotas, na etnia e na cor, já estão insensibilizados (por tudo o que sofreram), na hora de ajudar os menos afortunados.
Ser olhado por todos com um forte viés de desconfiança é merecido pelos matreiros, não pelos que buscam tão-somente escapar à sina da fome, ao fado da morte. Querer o bem não basta, é infértil e tende à estagnação. O imperativo categórico é fazer o bem, que só assim propaga-se o bem, e a ação de fazê-lo. Sim, é óbvio que pode ser identificada uma isotopia religiosa nesse "fazer bem o bem".
Todavia, sob os ávidos olhos da águia capitalista, apaga-se o espírito coletivo e coletivizador do grupo, quando este vivia em suas terras africanas, quando a necessidade de operar em grupo era cristalina a todos, indistintamente, que um homem só nada faz.
O que mais choca é o aviltamento a que se sujeitam esses desesperados. Gastando todo o dinheiro em espécime que possuem, para aportar num país europeu bastante diverso deste nosso Brasil multicores, no qual os racistas são obrigados a falar baixo. Na França de 1978, a xenofobia asquerosa imperava nas ruas, impregnando inclusive o vocábulo usado para designar os imigrantes africanos - uma mulher branca usa o que em português corresponderia à arcaica e egrégia palavra "crioulo" (o que não dizer da expressão estulta "de cor" ?!?) - ou "nigger", "colored", em inglês. Acendeu-me a ira.
Isto porque fica impossível relevar a sordidez e a indiferença, a sub-humanidade, imiscuídas na venenosa travessia. Quantos não são os que adoecem e perecem no meio do caminho, muitas vezes sem a própria cédula de identidade, retida pelo contrabandista humano ou por quem forneceu crédito adicional, e tem no documento a cruel garantia de que quando o imigrante chegar ao outro país, a quantia lhe será paga.
É um filme desolador, por expor o vil, o cruel, o execrável. Por colocar a crueza humana* sem o intermédio de para-choques, de modo que o espectador sinta o baque com toda a força imputada aos fatos reais. E por ser desolador, irradia faúlhas de esperança: há um modo humano de se tratar o outro. Há sim, e não se deve olvidá-lo, jamás! "Não faça aquilo que você não gostaria que fosse feito a si" - não é esse o prodigalizado ensinamento, primordial à uma pessoa que ousa atribuir a si o caráter humano?
Se ao menos uma pessoa pusesse tal máxima em vigor, em todas as circunstâncias viventes, não tardaríamos de alcunhá-la sob algum epíteto hagiolátra, e não seria soberba fazê-lo. Tal pessoa estaria semeando nada menos que a paz, a viva paz, a paz expressa e meditada consoante o outro. Não tenho a falsa pretensão, no entanto, de fazer-me santo, nem, portanto, de aspirar a semelhante encargo. É preciso ter muita fé, pura fé, e maldade ou malícia alguma no coração. Isto é, para ser santo. Pra ser santo, é preciso parar inclusive o que Gandhi denominou violência interna, que é a que praticamos contra os outros por pensar mal, por querer castigar, sem nem sequer ser preciso expressar, isto é, vocalizar tais pensamentos. Cometemos violência no ato de pensá-la. É preciso ser casto, puro, temente a Deus - não o Deus monoteísta, mas o Ser Supremo, fundação ontológica do universo, o princípio ativo, pontapé inicial, ao que tudo volta. É preciso, sobretudo, verdadeiro labor consigo próprio, um trabalho à altura de Héracles, mas sem saborear a auto-imagem...
Eis os humanos conscientes que somos nós, hã? Controlamos magnificamente bem nossos pensamentos, não é mesmo?
Ah, ser mortal
Bem que rutila
Gema do mal
Ser humano
Ó, ser humano
Por que jubila -
És insano
Ou é tua sina -
No odre arcano,
Chã pocilga,
Neste podre lodaçal?
Bem que rutila
Gema do mal
Ser humano
Ó, ser humano
Por que jubila -
És insano
Ou é tua sina -
No odre arcano,
Chã pocilga,
Neste podre lodaçal?
Bela película - fez-me ígneo como um dia de canícula. O verdadeiramente belo é o belamente verdadeiro. Se para retirar a máscara o cordão há de rebentar, pois que rebente e fira! A dor dirá, como ninguém.
*termo questionável, 'crueza humana'. Psicopatas não são humanos, não no que tange a qualquer característica que distingue o homem do animal, envolvendo não o pensamento, mas qualquer função emotiva, consciente, de empatia.
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