Todo dia eu faço uma reverência a tudo o
que é maior do que eu. E há tantas coi-
sas maiores, e tantas coisas melhores,
traduzidas pelos olhos de quem já sofreu.
Muito mais do que eu.
A violência tem um mecanismo misterioso: o de suscitar, na vítima, o silêncio. Este, aliás, é o único solo ubérrimo onde a violência pode medrar incólume. O silêncio e seu ressaibo inegável de omissão e de falta com a verdade. A monocultura extensiva da violência age em detrimento da saúde de toda a população que, por ignorância ou tácito consentimento, alimenta-se de seus frutos eivados já de concepção.
Pouco a pouco essa dieta indigesta depriva seus consumidores da consciência incipiente da existência de uma noção denominada: liberdade. A liberdade é morta quando a violência reina impune; isto é, sob a égide do Estado. Somente o Estado pode perpetuar a violência com (quase) total eficácia, à medida que este se põe acima da massa governada e infunda temor; temor oriundo do simples fato de que o Estado supera a frágil condição de individualidade. Ao indivíduo é natural e cabível atribuir-se culpa e - se condenado em julgamento - a devida sentença carcerária. Mas figuremos o Estado: a massa de indivíduos que o compõem, assim como o poder neles investido, forma elos aparentemente (e enganosamente) inquebrantáveis. Tamanha aura de onipotência traz em si o ônus da inquestionabilidade.
Desse modo, evocar a liberdade e bradá-la nas ruas, na companhia de um séquito diverso e numeroso, é uma afronta aos tentáculos de um governo cujos olhos percorrem as opulentas paredes de palacetes e gabinetes oficiais, e evitam sobremaneira enxergar a imundície da sarjeta. A população hipnotizada com as telenovelas nacionais e programas televisivos afins não se aglomera à massa protestante, revoltada -
e com razão! - com os ardis e esquemas financeiros e políticos conduzidos, de praxe, pelo Estado - essencialmente corrupto, essencialmente cego, e essencialmente injusto. Desd'os tempos imemoriais. Devido à exígua quantidade de pessoas ousadas, que marcham nas ruas - que por ventura lhes pertencem - por uma causa acreditada, a truculência policial é em grande parte facilitada. Banal e favorecidamente justificada; a impunidade ao policial agressor é concedida de mão aberta e estendida. Povo generoso o nosso.
O agredido - não o nomearei
vítima - carrega em seu corpo e em sua mente as marcas do absurdo: a violência do aparato policial eternamente racionalizada nas bases mais frágeis possíveis. E ainda assim aceitas - sem o menor titubeio. Petreamente aceitas, num processo análogo ao dos códigos consuetudinários outrora vigentes de ponta a ponta do globo. De pai para filho passa-se a reflexão temerosa de que "não se deve mexer com a força policial", pois os sustentáculos dessa corporação são
punhos - conhecidamente -
de ferro.
Quão fácil e pueril é inculcar o pavor em tomar parte numa manifestação política, em vão - parece - estabelecida como direito de gozo nosso, nos papéis mal lidos e absorvidos do nosso documento maior: a Constituição brasileira. Amigos me apontam que aqui por estas bandas "a coisa ainda pega leve", visto que, em outras nações, manifestar-se abertamente implica ao indivíduo sair de sua casa sem ter a certeza do posterior retorno. A morte ao libertário espreita com olhos vorazes na próxima esquina.
Mas ser espancado relembra em muito a morte. Porque o ataque à cacetete - vulgo tonfa - em plena luz do dia, é o cúmulo da ausência de valores verdadeiramente democráticos. Valores esses que imbuem de importância a lícita expressão contrária de um grupo. Uma expressão pacífica, política e idônea - porque fundamentada em fatos. Fatos que deveriam chocar a população como um todo, caso esta não fosse dulcificada pelo poder midiático - tão sutil na persuassão das massas que, não importa o quê, "tudo vai bem", e assim normalizando a brutalidade, e com ela todos os procedimentos ilícitos e ditatoriais. Um governo que teme o próprio povo governado e sua capacidade, ainda dormente, de voz, é um governo que, por detrás da arena do Pão e Circo, rege com
punhos de aço, ainda que gradualmente, despercebidamente. Um governo desses está cheio às entranhas de verdades que prefere ocultar, para manter-se intacto.
Vivemos, portanto, em tempos dúbios, nos quais os vocábulos
violência e
truculência são amaldiçoados pela historicidade do termo
ditadura, relegado a designar tão-somente o passado. Um passado, quer dizer, nada distante. Quer dizer, um tanto presente. Entretanto, para a estupefação dos que ainda têm tato com a realidade, na (
ida?) era do
cálice de vinho tinto de sangue, a natureza do regime era exposta e escancarada, bravamente peitada, enquanto hoje paira um tenebroso silêncio. Onde bradam os corajosos, os apartidários, as tochas reluzentes da Humanidade? Quem porta, hoje, destemidamente, a labareda da verdade, o fogo gerador de luz? Quais são os que, nos tempos atuais, ousam pôr a própria segurança em risco, por não condescender com a voz distorcidamente unilateral do Estado?
São poucos? São muitos? Como saber... ecos do exterior da caverna perfuram os nossos tímpanos, há longo desabituados à sobriedade. Falta-nos, malgradamente, muita consciência para nos apercebermos de que, duro que é lavar golpes de cacetete, ninguém , pois, quererá, num futuro próximo, sair de seu lar para receber descargas elétricas no corpo, não por raios - macacos me mordam! - mas por
tasers, amplamente testados em estadounidenses "desobedientes". E, logo logo,
o mais novo artifício nas mãos dos nossos gendarmes conterrâneos.
Uma cacetada bem dada - e eles a dão belissimamente bem! - poder vir a rachar a cabeça, quebrar um membro, desutilizá-lo pelo restante da vida, provocar hemorragia interna; por outro lado, a descarga elétrica de um taser pode parar o coração, torrar um portador de marca-passo, e com total certeza imobilizará o "meliante", tomado por espasmos, mijando-se e defecando-se descontroladamente em meio à via pública - pelo mero fato de (ter ousado) tomar parte num ato "supostamente" (apenas "supostamente")
pacífico.
Friso que, se hoje a violência já é desmedida (e quando é que foi "medida"...), com o uso já consumado de gás lacrimogêneo, gás pimenta, balas de borracha, bombas de efeito moral e o "bom e velho cacetete" - não deixando de lado as ditatoriais botinadas - o que será de
nós (se até este ponto você não aceitou ser englobado, parta para uma leitura mais aprazível aos sentidos) ante a um aparelho que nos imobilizará como a um animal? Eis a minha singela pergunta, dirigida a todos - e em especial a todos que têm medo de participar de manifestações, constitucionalmente (se é que isso importa) legítimas.
Percebam que em nenhum momento eu demonizei ou vilifiquei os policiais. Muitos há que perduram em seus princípios, quero acreditar. O fato é que os policiais passam por um treinamento que não distingue trabalhadores, professores e estudantes dos que de fato merecem as grades: estupradores, assassinos e toda a calhorda que os acompanha. Infelizmente, com a indevida isenção dos corruptos e criminosos de colarinho branco. Abençoados por uma impunidade alheia aos princípios (apenas "supostamente") igualitários, resguardados na Constituição. Não sagrada, mas suficientemente laica para uma sociedade - dita - pluralista.
Acreditarei no poder do diálogo até o eclipsar da minha vida, e o diálogo entre manifestantes e policiais deve existir, sim! Demonizar o outro é demonizar a si mesmo. E estaremos fadados a falhar (eles como nós) enquanto durarem rivalidades datadas e usadas como uma grande arma contra todos nós.