domingo, 31 de janeiro de 2010

Haiti: Ser Mártir é Morrer a Sorrir

Keely Kernan

O sismo abriu
Centenas de metros
Engolindo fetos
No pavimento frio

Duzentas mil pessoas
Troando tristes loas
Pairando sobr'a terra...
Não, não foi guerra

Foi o tremor da dor
Ruindo a cidade
Quantas lágrimas rolaram
Pós a vil calamidade...

Parentes e amigos
Perdidos, engolidos
Pelo solo
Descrentes e feridos
Choramos de terror
Sem consolo

Em prantos tentaremos
Reconstruir a nossa vida
E fechar a cicatriz
Dess'imensa ferida

Quem quis isso
Quem isso desejou
Não pode ser feliz
Não pode ser avô

Pois meus netos
Perdi-os todos
Chafurdo no lodo
Sem vivo afeto
Treme-me o corpo
Semimorto
Irrequieto

Minha filha lastima
A perda do noivo
Não temos goivo...
Somente esperança

Nossos finos braços
Perderam os abraços
Mais tenros
Foram-se noras
Foram-se os genros

Agora nos resta
Erigir de novo
Mas a faina molesta
E eu me comovo

Por ter sobrado vivo
Nesta urbe soçobrada
Nos escombros meus queridos
Encontraram sua morada

Sob os mis destroços
Entrevê-se uma caverna:
Um prensado pescoço
Um pedaço de perna

Soterrados
Desalmados
Sem o túmulo
Sagrado

O corpo estilhaçado
Garroteado, esquartejado
Corpo e corpo
Lado a lado

Famigerado País macabro
Libertado... dominado
Independente... amordaçado
Quem sofre é a gente
Não somos cabeça de gado

Um povo subjugado
Pelo poderio militar
Deem-nos arado
E um pouco de ar
Precisamos respirar
Desde qu'usurparam
A nossa pátria,
O nosso lar

Médicos e enfermeiros
Corajosos guerreiros
E pessoas de fé
São vocês os padroeiros
Da nossa Santa Sé
Com seus pés ligeiros
E o sorriso do pajé

Estampado no rosto
São, de quem exerce
Seu trabalho com gosto
Numa viva ação de prece

Pois a mais sacra reza
É a mão estendida
Num teso aperto
De sóbria firmeza
O maior gesto amigo

Nossa gente é forte
Peitamos a Morte
E a sombra do Diacho
Enfrentamos peito aberto
A nossa própria Sorte

E no bravo viver eu acho
Toda a nossa força
A fugir do laço
D'apertura da forca

Eia povo varonil!
Assimila o seu vigor
Da correnteza do rio
E encontra o seu amor
Na diária dureza da vida
Essa vida sol a sol
Duramente combatida.

***

Eis minha modesta menagem a esse povo.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Favela


Gira o mundo
Roda a manivela
E o rotundo acordar
No interior da favela

Vamos às ruas!
Tilintar as gamelas
Não há mais comida
Que já caiba nelas

Meu filho, acordado,
Tirando a remela
C'o dedo sujo da mão

Não temos água
Nem vinho
Nem pão

No desalinho
Rezamos est'oração:

"Ai de mim, ó Deus,
Me ajude
Quero comida na panela
E água no açude

Quero sair da pobreza
E alimento na mesa

Quero sair da favela
Sem vã politicagem
E inútil balela

Melhor vida, sei bem,
É mera miragem
Mas bem pior seria
Nem nela acreditar

Quero uma janela
Com tramela
Pra poder me resguardar
Quando durmo à noite
E feito sentinela
O ladrão vem me roubar

Minhas filhas
Para o tráfico
Inumano

Tamanha tristeza
Ó Deus
Deixa o ser humano
Insano

Eu só peço um novo ano
E entender o ser humano,

Amém."

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Luta de Classes

Bernie Boston, "Flower Power"

O pobre ao lado do nobre
Não vale sequer
Uma reles moeda de cobre

Desdobra-se em pranto
Entoa seu canto
E se encolhe de novo
Miúdo no manto

Posto de lado...
Triste viver esfaimado

Ser pobre é pecar
Contr'o vil bem-estar
Do marajá hereditário
Explorador do proletário

Quem jamais suou
Pra ganhar o seu salário

O mundo é assim,
Me disseram certa vez.

Quão triste fim...
Quão vã insensatez.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Autossuficiência

Vicki Dameron, "Flower Power"

Já me basto e abasto
De fundos sem gasto
Só...
E nem por isso casto

Não quero um doce
Romance
Denguice adoidada

Desejo uma moça sincera
Que dance e se canse
E sinta-se amada

Quero uma casa singela
E ver da janela
Mi'a nova estrada

Sozinho
Sulcando o caminho
Sentir a minh'alma
Gratificada

Amar, ser amado
Perdoar, perdoado
Quero apenas
Um novo plantio
O meu novo arado

E logo o amor doentio
Será descartado
Um lar sem fé senil
Nem vãos pecados.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Hino Hippie

Ota Nepily, movimento hippie na Polônia

Mi'a tez é humana
Mi'a cor, multicor
Sou da raça hermana
Sou mais paz e amor

Com minha voz vocifero
Um mundo mais justo
Um preço de custo
Um Homem sincero

Sem punhos de ferro
Nem prédios de aço
E o homem no laço
Tal mundo eu quero

Ver a flor em botão
E sentir-me emocionado
Eu sou teu irmão
E estou do teu lado

Tua religião propõe
Um deus amado
Amê-mo-lo então!
Xô c'o diabo...

Antes da união
Vem o primeiro passo
Depois o abraço
E aquele amasso!

Todos filhos da Criação
Vivendo em comunhão
Mas péra.
Tem algo errado.

E o estuprador reincidente
O criminoso condenado
O colarinho branco
Cuspido e conspurcado?

Os governos totalitários
Populistas, sanguinários
Detentores do poder
E as chaves da Prisão...?

Apenas co'a Paz
Conseguiremos vencer
Morrendo aos milhares
Sem nada temer?

Se a luta depende dos vivos
E não só dos mártires
Quantos amigos restarão
Livres do cárcere?

Sem apoio...
Sem separar
O trigo do joio

Logo logo conseguirão
Conosco lotar
Todo um comboio...
Nos bloquear por completo!

Encaminhados seremos
Ao olvido
Da História
Dos vencedores

Flores murchadas
Sem a glória
Da luta abençoada
Pelo gume da espada.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Um Alto Brado à Grande Vida

Ao entrar na casa, saúde-a - James Tissot

Dobro-me
Diante do infinito
Curvo-me em dor e grito

Eis meu auto-de-fé:
Manter-me em pé
Ante o terror que fito!

Conter-me são
Ante tanta insensatez
Reter mi'a mão
E sob o trovão
Jamais me perder de vez

domingo, 24 de janeiro de 2010

Azia

imagem

Uma mão fria, no breu
Vem me tocar
Sinto um toque ateu
O uivo do lobo ao luar

Paraliso em dor
Seria um primor
Conseguir não gritar
Controlar meu esgar

Já não sinto meu corpo
O torpor me consome
Um brado de dor
E a tortura da fome

Mi'a única arma:
Parar o tempo
Buscar na calma
Meu único alento

Lidar c'o sofrimento
Deixa-me atento
Respiro fundo e penso:
É meu último momento

O intenso odor
Do incenso
Leva mi'a ira
Embora

Minha barriga vazia
Deita e chora
Eu pego mi'a lira
E canto o agora.

sábado, 23 de janeiro de 2010

The Mark of Cain


They tear a hole in your heart
They set your brains apart
And convince you
The least thing you are
Is being smart

And from nowhere in life
You could possibly re-start
It all over again

The absolute impossibility
Of living a life
Free of pain -
Home and sheltered from
The ever-pouring rain

They attempt to grab
Your soul and maim
The plan of progress
You've sought to attain

They stain with blood
Your bed, where you've
Safely lain
Till they've ripped apart
Your entire concept of life
All over and over again.

***

Not based on the award winning movie or on the band with the same name, though. Just a very good idea of a title that dawned on me. It seemed to me pretty strong and impactant, and that's how titles are supposed to be, aren't they? I acknowledge that, in its forceful approach, it is perhaps even better than the poem itself. As always, thank you.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tuberculose


Cuidado, homem
O verme te carcome
Pouco a pouco
Rói e come
Num rastro louco
A doer de fome

Devora a alma, a calma
E o que mais há de melhor
Leva a luz embora
E a paz ao teu redor
Tal ferida só piora
Tua face perde a cor

O teu rosto tornado
Cinzento
Descobre logo
No momento
Ter perdido
O acalento
De viver livre
De dor

O coração não pulsa
Veloz expulsa
Em tosse e sangue
O ido amor

Quem dera assim não fosse...
O nosso último estertor.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Encontro Final


As madrugadas são só minhas
Tão sozinhas na surdina
Do meu ser

Espezinhando a luz do dia
Impedido de crescer
Numa tal monotonia
Nessa estranha sanha
Me empurrando a perecer

Não quero eu ser alegre -
E correr como uma lebre
Aproveitando a luz do sol?

Mas eis-me à parte
Em meu casebre
Como um triste caracol

Por que meter-me nesta concha
Refugiando-me do mundo
Enquanto a luz reluz afora
No céu azul e rubicundo?

Um mergulho tão profundo
Incapaz de emergir
Afogado, triste, insano
No mais total nadir

E assim afundo...
Sem jamais poder sair.

***

Eu havia escrito este poema há exatos cinco dias, em 16/01, e deliberado naquele mesmo dia que ele seria publicado apenas hoje, 21/01. Tal deliberação veio do fato de que eu prefiro postar um por vez, um por dia (quando possível), e, inusitadamente daquela vez, eu tinha escrito logo de cara uns cinco ou seis seguidos (inclusive este), de forma que eu os fui numerando em ordem de criação. O primeiro a ter sido criado ficou para o dia seguinte, o segundo para o próximo dia em relação ao seguinte, e assim por diante. E acima deste pairava a anotação a lápis (meu encrustado hábito de escrever a quase totalidade dos meus poemas num caderno 96fls, 203x280mm, 31 pautas, a lápis): publicar 21/01/2010.

Hoje amanheci com a notícia de que um tio-avô meu havia falecido. Que desenvolver um trabalho artístico trazia consigo seu lado misterioso, eu já desconfiava. Mas, dessa vez, tenho de admitir qu'eu fiquei um tanto espantado, apesar de certa forma já estar preparado.

Até porque logo em seguida à escritura deste poema, eu compus outro de temática similar - ao menos no que tange à morte. Mas bastante diferente em todos os outros aspectos, estruturais e vocabulares, líricos mesmo. Enfim, é o ciclo da vida. Abençoada seja a alma dele, que tanto sofreu nos seus anos derradeiros.

No dia em que aceitarmos a nossa morte com a mesma naturalidade que aceitamos a morte de outrem, aí sim teremos realizado uma ação cabal na vida. Sabemos que na maior parte das vezes as coisas não são assim, mas a esperança é a última a morrer, e conosco.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Quand'eu chegar por engano logístico ao céu


Perdão, Deus, por fumar
Porque pra mim, esse vício
É gostoso e salutar

Meu tabaco fedido
É o meu melhor amigo
Meu aliado de ofício
Ao escrevinhar

Perdoem-me os céticos
Mas eu não uso antisséptico
Bucal
O vil gosto do fumo
É meu sopro vital

Tem gente que bebe
E também cheira mal
E gente que não faz nada
E cheira à rabada

Deus, peço-Lhe perdão
Por me meter nessa roubada
Por fumar ser minha maior diversão
E meu cachimbo, mi'a mais fiel namorada.

* *** *

P.S.: Já que agora nos Estados Unidos da América há empresas e instituições não contratando fumantes, e submetendo os candidatos a exames de nicotina, que, caso positivos, automaticamente os cortam do processo seletivo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aos corretíssimos senhores anti-tabagistas


De fumo eu não morro
Vou morrer de canseira...
E de cima do morro,
Rogando socorro

Proclamarei um abaixo-assinado
Contra toda asneira

Eu fumo
Antes, durante e depois
Qu'eu escrevo
E vem a mídia dizendo
Que fumar é veneno

Pois bem!
Fique sendo um veneno
Mas eu não condeno
Pois, pra mim,

Continuará sendo um remédio
Que me cura da loucura
E do tremendo tédio
Nestes tempos de assédio
Que fedem (e como fedem!)
À mais pura ditadura.

* *** *
Leia:

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Manipulação da Fala, ou, A Palavra Que Cala

"Coragem, homem!"
É mi'a frase preferida
Com ela as mágoas somem
E me relembro da vida

Garrida, esforçada
Meus dois pés firmes
Galgando a senda alada
Minh'alma limpa de crimes
E a jornada começada

Em busca do bosque da Razão
Perdi-me inúmeras vezes
Andei quilômetros em vão
Por anos e meses

Me vi de perfil
Num espelho d'água
Meu cor não mentiu:
Aquilo era uma cilada

Como posso ser tão grande?
Isso é obra do orgulho...
Nem que Deus me mande
Nesta poça eu não mergulho!

E assim me pus de lado
Lembrando-me de Ghandi
Eu ria desbocado...
Isso é obra do chifrado!

Devo manter-me atento
Pensei
Não irei dar alento
Ao que foge à lei

Onde o tridente rege
A mentira se faz Rei
O artifício é a sede
Do palácio Real

Lá não se fala em ditadura
A palavra certa é travessura
Muito menos repressão...!
Cujo equivalente é gostosura
Não se engane, não!
Aqui não há censura

Escondemos a prisão
E a masmorra escura
Gostosura ou travessura,
Qual você quer mais?
Leva logo as duas
E de bônus leva a Paz -
Isto é, tua morte,
Nas mãos do capataz.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Mãos ao Alto!


Fizeram de mim
Um covarde
Desceram o porrete
Sem ruído e
Sem alarde

Minha face carmim
De sangue que arde
Diminuído, preso
Esvozeando a verdade

Sair ileso
Não saí
De golpe a golpe
Eu caí

O corpo resiste
Ante à violência gratuita
Mas a alma fica triste
E perde-se a luta

Minhas primas amadas!
Rodeando mi'a cabeça
Quero amar-vos muito ainda
Antes qu'eu faleça

Abraçar-vos sorrindo
Neste dia luminoso
Límpido e lindo

Mas eis-me jogado
Na suja sarjeta
Amaldiçoada seja
A ditadura seca!

Espreitando da esquina
Nos lança ao porão
Os fortes extermina
Pouco a pouco matarão
Na truculência mesquinha
A esperança dum mundo são

Os verdugos edazes
Sulcando a estrada
Depredando cartazes
E a liberdade cassada

Um sombrio futuro
Paira sobre nós
Cercados de muros
Cerceados e sós
Por isso eu juro
Erguer a minha voz
Contra o infame monturo
A acercar-se de nós.

**
crédito à imagem: Policiais da cidade de Selma, Alabama (EUA) detêm manifestantes pacíficos, na década de 1960.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Reinaldo



O curioso do Reinaldo
Era o seu jeito de soldado
Seu porte atarracado

Seu cabelo, de praxe raspado
O passo militarizado
Comprido, continuado

E por cima de tudo
Um pacifista acirrado
Jejuador abnegado

Celibatário calado
Dizia-se punheteiro
Pra não ser tido
Como santo rogado

Sempre solteiro
Independente
Nunca carente

Ô, Reinaldo!
Saudade dos tempos
Em que tu vinhas cá no bar

Alegrar
Bebericar e
Fumar

E encantar
Com tuas palavras
Minh'alma
E meu lar.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Universidade

Cada dia qu'eu não ia
Me doía
E só eu sentia

Meu pai me dizia
Você faz um grande erro
Cadê tua alegria?

E então findou o ano
E com ele o ido plano
De passar na faculdade
Em todas as matérias

Aprendi na humildade
A lidar com minhas misérias

Nem sempre estou certo
E foi passando por apertos
Qu'eu fiquei mais esperto

Se eu me achava bom em tudo
Foi me olhando no espelho
Que por um minuto quedei-me...
Mudo.

Calei-me.
Sufoquei-me.
Uma derrota
Com sabor de vitória

Ter vencido
Sem vã glória
Isso sim jaz
Com um gosto
De paz
Em minha mais tenra memória.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Um Minuto de Silêncio

Apontar o lápis
Pra nu'apontar o dedo
E só por isso eu escrevo

Apontar o lápis
Pr'afugentar o medo
E só por isso escrevo

Meu pavor do olvido:
Preterido...
Esquecido

Ante o punho erguido
E seu golpe
Desmedido

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Por que lutar sem sangue, sem máscaras, sem ódio

Todo dia eu faço uma reverência a tudo o
que é maior do que eu. E há tantas coi-
sas maiores, e tantas coisas melhores,
traduzidas pelos olhos de quem já sofreu.
Muito mais do que eu.


A violência tem um mecanismo misterioso: o de suscitar, na vítima, o silêncio. Este, aliás, é o único solo ubérrimo onde a violência pode medrar incólume. O silêncio e seu ressaibo inegável de omissão e de falta com a verdade. A monocultura extensiva da violência age em detrimento da saúde de toda a população que, por ignorância ou tácito consentimento, alimenta-se de seus frutos eivados já de concepção.

Pouco a pouco essa dieta indigesta depriva seus consumidores da consciência incipiente da existência de uma noção denominada: liberdade. A liberdade é morta quando a violência reina impune; isto é, sob a égide do Estado. Somente o Estado pode perpetuar a violência com (quase) total eficácia, à medida que este se põe acima da massa governada e infunda temor; temor oriundo do simples fato de que o Estado supera a frágil condição de individualidade. Ao indivíduo é natural e cabível atribuir-se culpa e - se condenado em julgamento - a devida sentença carcerária. Mas figuremos o Estado: a massa de indivíduos que o compõem, assim como o poder neles investido, forma elos aparentemente (e enganosamente) inquebrantáveis. Tamanha aura de onipotência traz em si o ônus da inquestionabilidade.

Desse modo, evocar a liberdade e bradá-la nas ruas, na companhia de um séquito diverso e numeroso, é uma afronta aos tentáculos de um governo cujos olhos percorrem as opulentas paredes de palacetes e gabinetes oficiais, e evitam sobremaneira enxergar a imundície da sarjeta. A população hipnotizada com as telenovelas nacionais e programas televisivos afins não se aglomera à massa protestante, revoltada - e com razão! - com os ardis e esquemas financeiros e políticos conduzidos, de praxe, pelo Estado - essencialmente corrupto, essencialmente cego, e essencialmente injusto. Desd'os tempos imemoriais. Devido à exígua quantidade de pessoas ousadas, que marcham nas ruas - que por ventura lhes pertencem - por uma causa acreditada, a truculência policial é em grande parte facilitada. Banal e favorecidamente justificada; a impunidade ao policial agressor é concedida de mão aberta e estendida. Povo generoso o nosso.

O agredido - não o nomearei vítima - carrega em seu corpo e em sua mente as marcas do absurdo: a violência do aparato policial eternamente racionalizada nas bases mais frágeis possíveis. E ainda assim aceitas - sem o menor titubeio. Petreamente aceitas, num processo análogo ao dos códigos consuetudinários outrora vigentes de ponta a ponta do globo. De pai para filho passa-se a reflexão temerosa de que "não se deve mexer com a força policial", pois os sustentáculos dessa corporação são punhos - conhecidamente - de ferro.

Quão fácil e pueril é inculcar o pavor em tomar parte numa manifestação política, em vão - parece - estabelecida como direito de gozo nosso, nos papéis mal lidos e absorvidos do nosso documento maior: a Constituição brasileira. Amigos me apontam que aqui por estas bandas "a coisa ainda pega leve", visto que, em outras nações, manifestar-se abertamente implica ao indivíduo sair de sua casa sem ter a certeza do posterior retorno. A morte ao libertário espreita com olhos vorazes na próxima esquina.

Mas ser espancado relembra em muito a morte. Porque o ataque à cacetete - vulgo tonfa - em plena luz do dia, é o cúmulo da ausência de valores verdadeiramente democráticos. Valores esses que imbuem de importância a lícita expressão contrária de um grupo. Uma expressão pacífica, política e idônea - porque fundamentada em fatos. Fatos que deveriam chocar a população como um todo, caso esta não fosse dulcificada pelo poder midiático - tão sutil na persuassão das massas que, não importa o quê, "tudo vai bem", e assim normalizando a brutalidade, e com ela todos os procedimentos ilícitos e ditatoriais. Um governo que teme o próprio povo governado e sua capacidade, ainda dormente, de voz, é um governo que, por detrás da arena do Pão e Circo, rege com punhos de aço, ainda que gradualmente, despercebidamente. Um governo desses está cheio às entranhas de verdades que prefere ocultar, para manter-se intacto.

Vivemos, portanto, em tempos dúbios, nos quais os vocábulos violência e truculência são amaldiçoados pela historicidade do termo ditadura, relegado a designar tão-somente o passado. Um passado, quer dizer, nada distante. Quer dizer, um tanto presente. Entretanto, para a estupefação dos que ainda têm tato com a realidade, na (ida?) era do cálice de vinho tinto de sangue, a natureza do regime era exposta e escancarada, bravamente peitada, enquanto hoje paira um tenebroso silêncio. Onde bradam os corajosos, os apartidários, as tochas reluzentes da Humanidade? Quem porta, hoje, destemidamente, a labareda da verdade, o fogo gerador de luz? Quais são os que, nos tempos atuais, ousam pôr a própria segurança em risco, por não condescender com a voz distorcidamente unilateral do Estado?

São poucos? São muitos? Como saber... ecos do exterior da caverna perfuram os nossos tímpanos, há longo desabituados à sobriedade. Falta-nos, malgradamente, muita consciência para nos apercebermos de que, duro que é lavar golpes de cacetete, ninguém , pois, quererá, num futuro próximo, sair de seu lar para receber descargas elétricas no corpo, não por raios - macacos me mordam! - mas por tasers, amplamente testados em estadounidenses "desobedientes". E, logo logo, o mais novo artifício nas mãos dos nossos gendarmes conterrâneos.

Uma cacetada bem dada - e eles a dão belissimamente bem! - poder vir a rachar a cabeça, quebrar um membro, desutilizá-lo pelo restante da vida, provocar hemorragia interna; por outro lado, a descarga elétrica de um taser pode parar o coração, torrar um portador de marca-passo, e com total certeza imobilizará o "meliante", tomado por espasmos, mijando-se e defecando-se descontroladamente em meio à via pública - pelo mero fato de (ter ousado) tomar parte num ato "supostamente" (apenas "supostamente") pacífico.

Friso que, se hoje a violência já é desmedida (e quando é que foi "medida"...), com o uso já consumado de gás lacrimogêneo, gás pimenta, balas de borracha, bombas de efeito moral e o "bom e velho cacetete" - não deixando de lado as ditatoriais botinadas - o que será de nós (se até este ponto você não aceitou ser englobado, parta para uma leitura mais aprazível aos sentidos) ante a um aparelho que nos imobilizará como a um animal? Eis a minha singela pergunta, dirigida a todos - e em especial a todos que têm medo de participar de manifestações, constitucionalmente (se é que isso importa) legítimas.

Percebam que em nenhum momento eu demonizei ou vilifiquei os policiais. Muitos há que perduram em seus princípios, quero acreditar. O fato é que os policiais passam por um treinamento que não distingue trabalhadores, professores e estudantes dos que de fato merecem as grades: estupradores, assassinos e toda a calhorda que os acompanha. Infelizmente, com a indevida isenção dos corruptos e criminosos de colarinho branco. Abençoados por uma impunidade alheia aos princípios (apenas "supostamente") igualitários, resguardados na Constituição. Não sagrada, mas suficientemente laica para uma sociedade - dita - pluralista.

Acreditarei no poder do diálogo até o eclipsar da minha vida, e o diálogo entre manifestantes e policiais deve existir, sim! Demonizar o outro é demonizar a si mesmo. E estaremos fadados a falhar (eles como nós) enquanto durarem rivalidades datadas e usadas como uma grande arma contra todos nós.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Liberdade Ultrapassada


Fui responder à pergunta
Levei uma cacetada no braço
E eu queria o quê?
Um abraço?
Certamente que não...

Me rendi, os braços pro alto
Mais uma cacetada
E o meu sobressalto:
O qu'eu havia feito,
Pra merecer tamanho desrespeito?

Fui protestar contr'o prefeito
E o aumento da tarifa
Do busão
E a cacetada no queixo
Pr'eu aprender na marra
A não falar na contramão

Dos grandes interesses do Estado
De deixar o povo bem quietinho,
Sossegado, sussurrando baixinho
E os corajosos na surdina
Espancados...
Desmoralizados.

Eu ali, encolhido no chão,
Como eu vim ao mundo
Em pequena proporção
Cercado de PM me
Descendo botinada
Minha face acobertada
Ante tanta humilhação

Eu e mais dois
Num camburão fechado
Quarenta minutos
Dum viver sufocado

Ansiando o momento
Em qu'eu seria libertado
E o mal-entendido
Fosse todo explicado

O suor escorrendo
Pelo vidro da viatura
Meu desespero me roendo
Me corrói, me perfura

E eu calado, cabisbaixo
Só fui ser liberado
Horas depois...
Eu e mais três
Mas quanta insensatez!

Só porque tomamos parte
Numa manifestação
Recebemos porradas e palavras
De baixo calão

Já não se pode mais lutar
Pelos próprios direitos
Temos todos de aguentar
Perjúrias e despeito.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dor e Amor nas mãos do Escritor


"O escritor não precisa se expor"
É mentira.
O escritor revela seu Amor
E junto sua ira.

A dor vira ardor
Desilusão, Amor
E nasce o cantor
Mesmo sem voz...

Como todos nós
O escritor vem ao mundo
Da barriga materna
Empunhando o gládio
Da luta eterna

Uns tantos, infelizes
Vendem sua Arte
Sem nela acreditar
Seduzem com palavras
Sem sequer saber amar

Os felizes em sua obra
Têm vida de sobra
O tempo esvaído
A alma recobra

Expor ao mundo
Seu amor
Eis a flor oferecida

Em tempos de dor
A mais nobre colheita
Da vida.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A Luta Muda


Palavras semeadas ao vento
Atravessando as grades
Da cela de um detento

Pedindo a liberdade
Que lhe foi tomada
Cumprindo com suas asas
Toda uma jornada

Buscam na vida o seu sabor
No ar a sua cor
Ressuscitam um velho amor

Suas roupas já puídas
Sua alma escondida...
Ser solto é o início de tudo
Para o prisioneiro mudo

Ninguém sente
A verdade deprimente
De estar num calabouço
Refém da própria mente

O pão com aguardente
Descendo a goela
Não esquenta a frialdade duma cela

Mas ele quer ser solto
Liberado, libertado
E para isso ele luta
Até que os anos deem cabo

Desse sonho transviado
O tempo esgotado
Os dentes já caídos
E o pescoço degolado

Tendo sorte...
A vida recomeça
Jamais o fantasma
Da antiga pressa

Libertar-se é tudo
Para o prisioneiro mudo.