Ele era mais baixo que eu, talvez em seus 1 metro e 68 centímetros. Talvez 1 e 65. Tenho um bom olho para arriscar-me em "chutes" de dimensões corpóreas, mas não há a mínima necessidade de delongar-me enfadonhamente nisto. Tinha a barba rente, grisalha, e aparentemente a idade do meu pai. 55 anos. Daria menos, mas logo se notava que não havia passado pelas melhores das situações na vida. O dia era frio, 15ºC, e ele vestia uma jaqueta um tanto escurecida pela sujeira acumulada, que não era excessiva a ponto de causar repugnância, nem tampouco fedia, mas seria de pronto rejeitado em qualquer entrevista de trabalho. As pessoas do ponto de ônibus visivelmente evitavam olhá-lo. As pessoas, como uma regra geral, não costumam fixar a vista no que lhes é desagradável. E as aparências contam muito.
Veio esse homem até mim e perguntou-me: Aqui passa o Butantã? Respondi-lhe num gutural que me assustou, assim como a outro jovem homem que estava próximo: É! E então veio a pergunta desse homem que me deixou estupefato: Lá dentro [da USP] "ele" faz denúncia em todos os lugares? Respondi-lhe: Faz! Monossílabos esses que me permitiam elocubrar o que esse desconhecido estava afinal querendo dizer, e refletir se ele estava em plena posse da razão. Do nada, então, ele começou a relatar sua vida em pormenores... e eu, que nunca o havia visto antes, passei a escutar e anuir com a cabeça, olhando-o nos olhos...
As irmãs dele o haviam colocado num "manicômio", para embolsarem o dinheiro da assistência do governo. "Coisa pouca" de dinheiro. "E isso se faz a alguém?" Respondi-lhe: Não, não se faz. Continuou, dizendo que o pai lhe negara e o encomendara ao diabo, já no leito de morte, negando-o também como filho de seu próprio sangue. O pai o odiava. A mãe, desnaturada, prendera-o no galinheiro, forçando-o a comer o "lodo" pisoteado e emporcalhado pelas aves. "E isso se faz a um homem?" Não, meu senhor, coisa dessas não se faz...
Ele, pois, queria "fazer denúncia" desses abusos dos quais tinha sido vítima, e viera de Bauru, cidade do interior paulista, para esse fim. Disseram-lhe - sabe-se lá quem lhe disse semelhante asneira - que "aqui" ele poderia denunciar esses maus-tratos sofridos e angariar uma indenização. Por conta dessas terríveis tribulações, às quais fora submetido pela própria família, havia sobrevivido à tuberculose, pneumonia, febre amarela, e estava "doente das pernas", morando na rua. Não, não me pediu dinheiro. Queria mesmo era relatar sua história, sem quês de piedade ou súplica. Relatava sem sorrir, sem mostrar um dente sequer - talvez não os tivesse, talvez os escondesse muitíssimo bem, sabe-se lá por quê tal procedimento.
Sua aparência era de fato frágil, sendo ele um homem de fenótipo magro, as bochechas sugadas, os olhos estranhamente azuis... havia trabalhado "no Estadão", ganhava uma boa grana, mas o enganaram, dizendo-lhe para largar aquele emprego pois haviam lhe encontrado "coisa melhor". Viera e se desiludira. Novamente tapeado pela vida, ou por aqueles que a transformaram pouco a pouco num inferno. Já dentro do ônibus, desatou a tossir. Tossiu uma ou duzas vezes, mas foi o suficiente para ter uma ideia precisa do estado de seus pulmões. Haviam-lhe tirado a moradia, e "nem que fosse para andar lá dentro" [da USP], ele queria porque queria encontrar o tal lugar onde se pudesse fazer a tal denúncia.
O problema era que... ele não conhecia absolutamente nada da USP... nunca estivera sequer lá dentro. Pensei: esse homem não sabe o que está fazendo... ninguém quererá ouvi-lo lá dentro, e caso peça informações a algum transeunte, de três, uma: ou lhe ignorarão ao ver suas vestes malcuidadas, ou tirarão graça da cara dele (há sempre quem se divirta com a miséria alheia), ou, por fim, não saberão lhe informar aonde ir,
como ir. Para todos os três casos, a certeza única é que ele se encaminhava para a própria perdição.
Disse-lhe: Senhor, pergunta para o motorista qual é o ponto do hospital lá dentro (Hospital Universitário), e desça lá. "Hospital? Por quê?". Porque lá é capaz que lhe deem a informação [de onde fazer a "denúncia"]. Ele agradeceu, sempre olhando-me direto nos olhos, mas permaneceu estanque. Num determinado ponto de sua história pessoal, antes de chegar nosso ônibus, lágrimas quase lhe brotaram dos olhos. Era ou um ator, ou um sofredor. Mas isso de ficar estanque após minha sugestão de indagar ao motorista, eu não pude compreender. Perguntar no lugar dele, eu não perguntaria. Se esse homem tivera a capacidade de dirigir-se a mim e pedir informações, e contar sobre seu maldito passado, inegavelmente poderia perguntar o que fosse ao motorista. A fala ele tinha.
Apesar de sua situação, verdadeira ou não, morador de rua ou não, vítima da maldade alheia ou não, fosse ele salafrário ou honesto, o fato que me avivou a memória foi que esse homem retinha consigo uma certa dignidade, e olhava bem nos olhos - característica já mencionada -, sem, no entanto, dar a impressão de que intencionava manipular pelo olhar, ou retirar desse contato visual qualquer favor para si, explícito ou implícito. Parecia mesmo que ele estava procurando fazer a tal "denúncia", e tudo leva a crer que ele cria piamente que isso pudesse ser realizado dentro da USP. Em qual faculdade, ele não sabia... A rua, o endereço, o número desse tal lugar no seio da cidade universitária, tampouco conhecia...
Eu não sei quem era esse homem de boné com temática de exército, à venda em qualquer camelô. Mas se um dia eu ficar lelé da cuca, ou me tomarem por algum lunático ou coisa similar, a imagem, a voz, a tosse e a pungência - real ou não - da vida desse homem, haverão de me vir à memória. Contra todas as minhas suspeitas, eu devo ter "cara de conversa", ou de ouvinte aberto, ao menos a algumas pessoas. Não é possível...
não foi a primeira vez que alguém me contou sua história, sem nada pedir em troca... Exato. Sem nada pedir ou pegar em troca. Meu digno pagamento é calar, ouvir e aprender com os erros alheios.
Não posso senão me pôr a imaginar onde esse homem está neste exato instante, e o que faz...