terça-feira, 20 de julho de 2010

Lelé da cuca

Milhões de passos com pressa
Andando a esmo o caminho
Mil avenidas avessas
Nós nos sentimos sozinhos.

Nós nos sentimos tão sós.
A gente não é plural
Senão um monte de nós
Um nó górgio sem igual

Um grande nó no pescoço
A grande amarra na boca
No cotidiano insosso
Desgraça tão grande é pouca

Desgraça esconder-se em roupas
Engraçado ficar nu
No hospício de almas loucas
Cada um em seu iglu

Nosso manicômio urbano
É totalmente perfeito
Ali - fulano e sicrano
Sonham a sós em seus leitos

Sonham imagens explícitas
Da realização máxima
Papai Noel traz na lista
Suas vontades de lástima

De amar as árvores verdes
Índias impuras tomadas
Nas mãos sedentas de sede
Sequiosas das amadas

Mãos calejadas nos barcos
Vidas guiadas por remos
Podres mantimentos parcos
Seres entre o mar pequenos

Egoístas, cobiçosos
Ó formosos navegantes!
Matem índios ociosos
Os selvagens ignorantes

Os ímpios dalma, os hereges
Adoradores das plantas
Como bem prega o Evangelho
Filhos das grutas das antas

Salvem suas almas
Trucidem seus corpos
Índios sob as palmas
Índios hoje mortos

Sob a cruz religiosa
O cruzeiro estrelado
A Maria milagrosa
Limpadora de pecados

A espada não tem fé.
Nunca teve nem terá.
Mas o mar e a maré
Têm na marca o mal-estar.

O tenso sono pesado
Dos tantos doidos dormentes
A loucura, esse estado
Muitas vezes consciente.

Malogrado ser maluco
Neste mundo tão normal
Onde bate firme o cuco
Para o juízo final...

Eu sou louco - quer um pouco?
Da mia mente ensandecida?
Sou tão oco como um coco...
Cuja água é minha vida.

***

Após ter assistido ao absurdo e genial filme Bad Boy Bubby (dir. Rolf de Heer, 1993)... um dos filmes mais insanos, mais comoventes, mais tragicômicos, mais kafkianos, mais abrangentes, revoltantes, repugnantes, encantadores, calorosos, que eu já vi na vida. E é bem capaz que seja o ápice máximo de todos esses adjetivos. É o paradoxo da vida humana levado ao extremo, sem romantizações de caráter, destino, Deus. Até hoje eu não creio que outro diretor¹ tenha se imbuído da coragem de rodar algo tão fascinante, discrepante, revelador e realista. Algo tão "tudo" ao mesmo tempo, sem pecar por excesso de cautela, ou mesmo por sinais evidentes de ambição. Jamais vi algo como esse filme, e creio que qualquer outro que, por acaso, se assemelhasse, ou, por intuito, buscasse se assemelhar a essa avis rara do gênero (gênero... ultimamente inclassificável e inantecipável), não o alcançaria de modo algum.

Esse filme gerou, por veios e meios indiretos, um poema (o acima) que eu estimo muito. Nele eu busco, na descrição dos navegadores e da "descoberta", cenas de um filme do diretor alemão Werner Herzog (1942 - ), ao qual tive a grata oportunidade de assistir. Chama-se Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972). A descoberta da América Espanhola de uma maneira nada romanesca, portanto, nada ilusória.

Nota:

1. Há diretores que foram longe na unicidade de suas obras, como o próprio estadounidense James Broughton (1913-1999), cujos filmes (uma parcela deles) espantam pelo teor abertamente lascivo, descaradamente sensual, apelando à intimidade de nossos corpos. São difíceis de tragar, confesso, como espectador atônito que sou.

Três filmes de J. Broughton, que foram extremamente desafiadores para mim, por seu inegável teor voyeurístico:

1. Hermes Bird (1979)
2. The Golden Positions (1971)
3. Devotions (1982)

Você sabe quem é...

Nenhum comentário: