Não que eu não soubesse que o fim estava próximo. Eu sabia. Não que eu não soubesse o que eu havia de fazer - isso, também, eu sabia. Mas, abatido. Eu estava abatido, e mesmo vendo a porta, não podia alcançá-la. Uma espécie de paralisia, talvez. Mas eu precisava tanto tocá-la, tangê-la, rangê-la, levantar-me de onde me encontrava sentado e tentar dalgum modo chegar àquilo. À maçaneta, ao ferrolho, àlguma reentrância daquela porta sombreada, escura. Ela estava logo à frente, mas eu não podia fazer nada.
Eu estava recostado na cadeira escutando jazz. Minha música preferida, após Piazzola. Eu deveria fazer aquilo, mas a força me impedia, repelia. Eu preciso chegar lá! Mas não adiantava - se eu acreditasse no fado, no destino ou na Sentença, até que vai. Mas eu não tinha tais credos, e não podia explicar doutra maneira essa falta de vontade, mesmo ante ao dever. O dever não vinha, minha cabeça espiralava, a morte me sondava. A morte de entes queridos, os meus olhos fechados, feridos. Desnorteado, eu já havia esquecido da porta. Poderia fingir que ela continuava ali, mas era como se eu tivesse sido transportado a outro tempo, a outra era.
Abri meus olhos e me vi numa praia desértica. A água batia na rocha, e o firmamento plenamente azul brincava com a minha imaginação. Os cirros plúmbeos planavam em algum outro recanto do mundo naquele momento, pois ali era o azul mais azul, e nem sequer era azul. Que cor era aquilo? Não sei. Era a cor e a luz da vida. Alguma plaga esquecida. Eu estava ali. Atrás de mim havia uma mata, e na frente era o mar, a rorejar, a tocar os penedos indeléveis. Entre a natureza e a dimensão inexpugnável de uma existência rediviva. Um ser. Um ser humano num ermo arcano, mirando o céu o sol e as nuvens. A água transluzente, a vida piscosa transparente, tudo aquilo era minha vida. E não havia nada naquele mundo que eu não pudesse almejar.
Reabri os olhos, ressentindo ter perdido um mundo tão belo e singelo e distante. Apoiei-me nos braços da poltrona, firmei meus músculos e me ergui. Vi então a porta, entreaberta, luminosa. Cambaleei, fustiguei meu rosto com um tapa e disse: É lá que eu quero chegar. Cada passo me doía o corpo inteiro, como se carregasse o mundo nas costas, mas eu não desistia. Não importa que carga se põe sobre o dromedário, ele mantém a cabeça altiva, pois conhece mais que a cáfila em derredor, conhece Deus - e sabe seu centésimo nome, o ignoto e incognoscível a meros humanos. Eu era o dromedário naquele instante. Meu corpo retesado era meu único meio de alcançar o clarão que me anuviava a vista.
Quase cego, em genuflexão, eu roguei aos céus por força. Não por piedade, nem misericórdia, não por isso. Eu necessitava força espiritual. Minha oração era o meu ponto de encontro comigo mesmo. Com o único elemento em mim impermeável à opinião dos outros. Poderiam opinar à vontade equanto eu me encontrasse em contato com minha essência. Ela reinava coroada naqueles passos escorregadios mas firmes, titubeantes mas alegres. Eu sabia minha direção, eu cheirava meu caminho, eu chegava até a lâmina de vidro que era a porta. Entreabri-a resvalando-me no vão e caí morto.
Acordei. Sentado na "poltrona". Minha cadeira de rodas, da qual jamais levantaria.
Há 12 horas
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