segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A Vida Secreta das Palavras (2005)


Assisti a esse belíssimo filme dirigido por Isabel Coixet no Centro Cultural São Paulo, aproveitando a VII Mostra do Cinema Catalão em Sampa, que terminou ontem, 13/09/2009. Fiquei encantado, porque é um filme que lida com sentimentos enterrados, difíceis de serem trazidos à tona, pela carga emocional neles imbuída.

No enredo central, Sarah Polley faz o papel de Hannah, uma operária que tira férias, mas, ao invés de descansar - após quatro anos trabalhando sem uma folga -, propõe-se a trabalhar como enfermeira numa plataforma de refinamento de petróleo. Lá, ela irá conhecer pouco a pouco seu paciente Josef, interpretado por Tim Robbins. Josef recupera-se de queimaduras sofridas ao tentar salvar seu melhor amigo dum incêndio ocorrido pouco tempo antes, na própria plataforma.

Não só Hannah irá adentrar o mundo de Josef, mas mostrará a ele, após passado um período inicial de silêncio e esquiva, que sua vida atravessou um longo período de sofrimento, dum sofrimento, aliás, insólito a muitos de nós, um sofrimento de tempos de guerra. Ela é sobrevivente dos conflitos armados ocorridos na região dos Bálcãs na década de 1990.

Hannah se esconde, em suas conversas com Josef, sob o nome fictício de Cora - seu nome real só será conhecido por Josef quando ela, a enfermeira até então muda, se abrir, revelando ao paciente acamado os maus bocados pelos quais passou, em seus tenros 20 anos. No filme, faz-se menção ao Genocídio dos Armênios, sobre o qual já tratei neste blog(segundo link), pois por algum acaso benquisto, adquiri num sebo, há anos, um livro magistral sobre o assunto, com fotos das vítimas, dos algozes sorrindo ao lado dos corpos empilhados, e um texto de arrepiar os pêlos e cabelos. Não é um livro de fácil leitura - a primeira resposta é atirá-lo para o lado, para longe, e fingir que o mundo vai bem, obrigado.

Mas não vai. E a história que Hannah conta evoca lágrimas, porque esse sofrimento indizível segue como prática comum em regiões de conflito e guerra - estuprar mulheres é o único espetáculo da guerra para muitos soldados - os quais, sem dúvida, apresentam os mais evidentes sinais de psicopatia. Já na República Democrática do Congo, enquanto escrevo isto, até homens estão sendo estuprados. Digo "até", porque, mesmo nos tempos atuais, o estupro de homem por homem é visto como algo aberrante, inimaginável (imaginável, talvez, no interior de uma cela, de uma penitenciária) - mas é um crime que chama uma atenção muito maior do que quando a vítima é mulher. Isto mostra um pouco sobre o nosso mundo, que insiste em enxergar diferenças no tratamento de homem e mulher. Mas o estupro, seja contra homem, mulher ou criança, é um crime igualmente execrável e horrendo, ao qual não deveria jamais ser concedida impunidade, expressa ou tácita, uma vez que visa extirpar da vítima seu senso de dignidade e auto-afirmação, mais ainda, creio eu, que a tortura. Por meio desse ato atroz, o criminoso brande a arma do poder no interior do corpo da vítima, exatamente onde ela se vê resguardada. O último quinhão da liberdade e do livre-arbítrio, a interioridade individual, é maculada num fazer bestial, num des-fazer do indivíduo, do outro, da alteridade - num ato bruto, desumano e absolutamente covarde.



Daí a força do filme, ao explorar as facetas de pessoas, que, traumatizadas, expõem a causa do mal que as acomete, e somente assim há a catarse. O filme em si veste-se dum manto catártico, pois o espectador vê-se impelido a olhar para dentro de si e buscar algum resquício que seja de uma situação-limite pela qual tenha passado. Uma situação assustadora, temerária, violenta, que talvez já esteja nos cantos recônditos da memória, do Inconsciente, para ali empurrada porque esse é o processo mais fácil encontrado pelo nosso corpo e nossa mente para seguir vivendo. Levar o tapa e dar a outra face - o erro crasso já pregado pelos grilhões da religião.

Enquanto não enfrentarmos nossos fantasmas imanentes, eles continuarão nos assombrando, fazendo-nos mal, destruindo-nos. É preciso extirpá-los, se é que se almeja viver bem. Mas quanto custa?

O preço é alto, porém o bem que advém, inefável.

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