Estava jogando bola com meu priminho de Minas Gerais. 6 anos, sotaque mineirim. E, agora, ouvindo pela Cultura FM trechos da insubstituível música tradicional japonesa, confluí certos pensamentos, e me sinto no momento de extravasá-los.
Cada toque que eu dava e ele retribuindo o passe. Porque "não pode chutar, faz barulho". "Já passou das dez, os vizinhos querem dormir". E eu também. Mas a gente faz um esforço, ou nem sequer é esforço. Bater uma bolinha é mais gostoso que fazer trabalho da faculdade. Ainda mais quando nós deixamos de última hora o que devíamos ter feito há tempo. Cada fim de semana passando e nós a termos aquela sensação de que estamos a procrastinar indefinidamente, gota a gota o tempo escorrendo batido pelo crivo, e o ploc ploc ploc* a me infernizar, louco, sem ver ida nem saída.
Mas vi a luz. Meu primo aqui ao lado do PC a rebolar, fazer-se de "caveira", brincando, brincando. Há tanto tempo não jogo bola. E ele rebola. Faz a pegada no saco do Michael. Escutando este som maravilhoso do gamelão, que Lou Harrison compôs, um tanto nipônico, espiritual... sábios olhos puxados da austeridade.
E eu a reclamar das dores, dos parcos amores. Agora (e somente agora, pois depois me esquecerei e voltarei às velhas manias) eu me liberto. Meu passo aberto, a descobrir o mundo - vivo! Não bastasse a sensação subjetiva, tenho pessoas em torno que também estão vivas (ou fazem o papel de modo satisfatório). Posso beliscar à vontade, que as pessoas gritarão e me retribuirão a maldade, e eu também sentirei, pois não é um sonho. Se bem que em sonho já consegui uma vez me beliscar, e, ao invés de acordar, senti algo bem parecido com a dor, etéreo, e cri ser a tênue realidade. Não era. O que seria o mundo sem as exceções? Sem cor, sem graça, o toque divino. Se fossem todos brancos, ou pretos, ou amarelos (escolha a cor) não daríamos pela falta do outro. Mas não somos.
"Eu" queria terminar o trabalho. "Eu", no primeiro momento que pegou o trabalho e os textos somando cerca de 400 páginas (eram mais), sentiu a falta de um elemento feminino naquele instante. "Eu" sobrepôs-se ao desejo lúbrico, mas não fez muito mais que isso. Percebeu o quanto está sem estudar de verdade, sentado numa mesa (que não de boteco), ereto, buscando respostas (neste caso, sobre as origens e a evolução do galego-português, mas bem que poderiam ter sido respostas sobre a própria vida). O programa "Mapa-Múndi (Uma Geografia do Som)", da Rádio Cultura, acaba de terminar.
Mas eu quero escrever. Em dois anos, eu envelheci à beça. Já não tenho a cara ingênua e sem marcas dos 12 anos. Nem a saúde. Nem as tarefas correspondentes à essa idade. Trabalho catalogando um acervo de fotos surpreendentemente diverso, que até agora já englobou desde uma estrela holywoodiana como Cate Blanchett, até fotos de um Canavial brasileiro e seus trabalhadores com feridas grotescas na palma da mão, as veias do braço intumescidas como artérias. Fotos do século retrasado (sim! 1890, 1895), e do desabrochar do século passado, e contemporâneas; Cartão Cabinet, stills de filmes de diretores independentes, takes do cinema alternativo. Fotos do cinema mexicano, um tanto clichês, chavões, lugar-comuns... com seus atores sempre adornados com sombreros, o onipresente bigodão de xerife texano. As belas mulheres ornamentadas com apetrechos ciganos, um toque sensual. A terra sem lei.
Fotos da Chapada Diamantina, de castelos e pubs na Irlanda, dos veículos clássicos (velharias?) de Cuba, duma mulher mostrando apenas os seios pela janela aberta (o rosto às esconsas detrás do vidro levantado, impossível de se ver), uma outra mulher, de seios fartos, olhos cerrados, jazendo na cama vestida apenas numa camisola solta. Isso quando uma amiga não me mostrou o Renato Consorte peladão, numa posição mágica de balé, exibindo a arma da nudez aos olhos curiosos. Retratos de família, congressos, Winston Churchill, de uma loirona de sobrenome Gallagher (lembrei-me de Noel Gallagher, vocalista do Oasis) à la Marylin Monroe, que posava em capas de uma revista estadounidense ou inglesa da 2ª Guerra Mundial. Fotos pertencentes à coleção "São Paulo Antiga", verdadeiras preciosidades sobr'a cidade. Fotos aéreas e terrestres da edificação do Memorial da América Latina, na estação Barrafunda. Fotos de mulheres e homens muito bonitos. A beleza... é definitivamente pra ser apreciada.
Eu não sou belo (nem fisicamente nem por dentro), mas me aprecia ver o belo, pegá-lo em minhas mãos (enluvadas), por mais q'aquele segundo fotografado esteja defunto e recoberto de pucumã há décadas, ou mesmo uma centena de anos. Fotos... um flash que congela o momento, um fantasma criológico, teratologia que assusta os viventes. Quão irreal. Às vezes me sinto guiado às origens, às crenças dos nossos indígenas, os quais acreditavam que as câmeras fotográficas captariam sua alma ad aeternum. Quando da advinda tecnológica e do anseio irreprimível de retratá-los e expô-los ao mundo, como Debret o fizera 120/130/140 anos antes (divirta-se com o link, se você é chegado a incursões antropológicas amadoras, tal qual eu).
Tomei a última golada do chazinho de cidreira feito pela mamá justamente antes de digitar esta linha. Antes do chá, a cachimbada. Fecho a porta, para não despertar minha tia, insone, que repousa no quarto do pavimento superior. Minha tia querida, que reza por ela e por todos, com sua fé inquebrantável. E a tia dela, minha tia-avó, é freira. E meu bisavô e outros ancestrais, que foram benzedores nos tempos da roça agreste do nordeste mineiro. Todos da família paterna. E também na família materna essa ancestralidade ligada a algo extraterreno vingou. Que seja uma ilusão. Ao menos as drogas daquela época eram um café açucarado e a ida semanal à igreja, fazer filhos, embriagar-se na lida árdua da roça (como bem o disse Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica). Libertamo-nos de peias somente para nos aprisionarmos em grilhetas. What difference does it make? O fato é que ainda hoje as pessoas creem ser mais livres que a geração anterior. E quando, neste mundo, não foi exatamente assim, tintim por tintim? Dentro da família ao menos, tem sido uma ilusão bastante sólida, que não gerou maus frutos. Começa o Jazz da Cultura. Esse Jazz que meu pai não gosta, minha família estranha, e eu amo desd'a primeira vez que o escutei.
E o meu trabalho da faculdade, perto de tanta história, de súbito torna-se pequeno, do tamanho do cata-piolhos, do mindinho... ou menor, intangível. Linhas quebradas da vida a compor um mosaico de arrancar suspiros d'algum'alma vivente. Talvez a minha, ou a tua, ou a de ninguém.
Faça o bem não importa a quem. Importa sim. Nem todos vêm prum afago. Alguns cães vêm pra morder (Cães de aluguel?). Um chute lhes caberia bem. Afastado o mal, durmo no céu. Trabalho findo ou não. C'est la vie, mon ami. É a vida, irmão.
*Ploc ploc ploc... Leia O Deserto dos Tártaros ("Il Deserto dei Tartari"), de Dino Buzzati. E/ou assista ao filme homônimo e lastrado na obra, de Valerio Zurlini. A ordem dos fatores não importa. Se tu leres o livro, verás os ploc ploc plocs de tua vida e em ti ou em outro buscará o encanador, que nalgum lugar se encontra. De preferência antes que dos ploc ploc plocs nasçam as flores do mal.
Há 12 horas
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