quarta-feira, 27 de maio de 2015

Um abraço, professor

Um abraço: tudo de que eu precisava em certos momentos da minha vida. Sonhei que iria matá-lo, chamei-o de cínico, ralhei, mas... no fim do ano ele me abraçou. Na verdade mesmo, meu pesadelo foi muito pior: eu já havia consumado o crime e estava foragido, fugindo de todos, cerceado por minha própria sombra. Despertei perspirando. Foi o raiar de que algo não estava bem em mim. Mas, no fim do ano, ele me abraçou, e seu abraço me curou. Obrigado, cara. Você me permitiu que eu perdoasse a mim mesmo.

Você é um dos motivos mais fortes por que eu sigo fazendo o que eu faço, com a mesma verdade, força e intensidade do teu abraço. Eu abraço o que eu faço, e faço do que eu faço o meu abraço.

Se é fácil fazer o que eu faço? Tão fácil quanto perdoar quem nos ofendeu e a quem ofendemos, com o gesto simples e sem som de um abraço. A força sutil na inocência suave de um abraço, capaz de fazer esquecer ofensas passadas, pesadas, que, repensadas... mostram-se insensatas, insensíveis, insignificantes, na força de um abraço. O passar dos dias assenta em meu seco coração a certeza de que ser professor mede-se mais e além do que a força de dois eSSes.

Mede-se na sabedoria somente mensurável aos que souberam sofrer e, mesmo assim, ser professor sempre, até nos piores dias.

Pois um singelo abraço pode cindir toda nossa concepção sobre o que é ser professor, em tempos difíceis e de provações, privações.

Sua sensibilidade valeu mais que todo o meu salário.

Esta noite dormirei em paz. Você ganhou um amigo - e eu, serenidade. Eu ganhei um abraço, e você: minha amizade, mais sincera.

E se amanhã tudo mudar? Eu diria que a sabedoria de um abraço sincero não muda com o passar dos dias, e esse abraço sincero, em nosso coração, jamais se esfria. O que sentimos permanece, apesar de tudo.

Abraço nota dez? Abraço não tem nota, mas todo abraço, desde que sincero, é digno de nota. Mais: abraço sincero não tem preço, só apreço.

Sou eu que agradeço.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Vale a pena doar

Sou doador desde os 18 anos. Parei por um tempo, mas voltei, e gostaria de incentivar quem me lê a fazer o mesmo. O restante já falei no vídeo...

Se vocês acessarem a página da Fundação Pró-Sangue, verão que o estoque está em nível crítico para os tipos O+, O-, A- e B-. Quem sabe, com ampla divulgação, esta situação não mude um pouco? Aliás, não é só de água que São Paulo está precisando, não é mesmo?

P.S.: link original youtube
P.S.2.: link #doe1minuto

Abraços!

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Democracia

A democracia é complicada. Tenho que aceitar que pessoas que respeito e estimo votam exatamente naquele(s) político(s) que desrespeitam e subestimam o trabalho, a profissão e a carreira que escolhi. Esses mesmos que nada de concreto fazem a favor da instituição em que estudei e que me formou não só em uma área do conhecimento, mas me preparou para a vida. Minha alma mater, que me nutriu para a vida e em relação aos meus princípios.

O voto realmente deve ser secreto e sigiloso. É melhor, para mim, não saber. A democracia põe esta dificuldade: é realmente difícil respeitar a escolha alheia. Portanto, se a escolha alheia não for conhecida, torna-se mais fácil a convivência pacífica no dia a dia. De que adianta bater boca sobre quem nos governa? De nada, até onde sei.

1 minuto de silêncio vale imensamente mais que 10 minutos de intensa discussão por...

Nada.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Um provérbio

Esses dias li no jornal (sim, estou vivo) uma frase latina, acompanhada da tradução:

Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem uma linha.

Ou: nenhum dia sem que se escreva uma linha. Ou ainda: nenhum dia sem escrever uma linha.

Achei-a muito aplicável a mim. Nunca mais escrevi poemas, ou mesmo prosa. Pego no lápis, vejo  o papel à minha frente: nada sai. Nada de bom, ao menos. Nada que eu julgue bom para mostrar a vocês.

Quando veio o bloqueio, de fato pensei que eu iria morrer. O que é um artista sem sua arte? Ou melhor: o que é um suposto artista sem aquilo que ele acreditava ser sua arte? Mais que a nutrição para o corpo fornecida pelo pão, cada poema que eu terminava de escrever parecia acrescentar um ano a mais em minha vida. Parecia cultivar algo dentro de mim, uma horta verde e regada, exuberante mesmo.

Mais eis que sobrevivo, sem o que antes me era necessário para viver. Sobrevivo. Será que vivo?

Obrigado a todos vocês que me visitam. Tudo o que está no blogue é de fato meu, prosa ou verso. Às vezes até eu me surpreendo, porque acho uma ou outra estrofe realmente memorável. Sou extremamente crítico com o que escrevo. Num poema inteiro, às vezes colho uma estrofezinha do meu interesse, que passa à prova dos dias, dos meses... dos anos.

Fico feliz por não ter deletado meu blogue, embora eu nunca tenha cogitado em fazê-lo. Sinto que uma ou outra coisa aqui registrada ainda vale a pena. Para mim, pelo menos. Chego à conclusão que a vida nos muda demais. Demais.

Obrigado a vocês. Digo de coração. É só de coração que consigo ser professor, poeta, tradutor. Sem amor, não sou bosta nenhuma. Desculpem meu palavreado. Perto da USP tem um muro pichado assim:

Apatia tem cura

Essa é uma das melhores frases que li em anos.

Aproveitando que nosso poeta Leminsky voltou à moda com o lançamento, pela Cia. das Letras, de suas poesias completas, recomendo o vídeo que se encontra no seguinte link, em que Leminsky conversa sobre o grafite. Genial. Ge-ni-al.

http://www.youtube.com/watch?v=cXdKmKUcXAk

Um abraço forte a todos vocês, meus queridos e minhas queridas.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Clama

Nada como a cama
Quando ela me chama
...
Ela quem?
A cama

Claro.

domingo, 3 de junho de 2012

Passadiço (passado isso...)

Pus meu pé no teu sapato
Na sola macia e suave
Na mão que segura a chave
Pus minha mão e meu tato

Na boca, outrora um mistério,
Senti teu sorriso quente
Soube o futuro da gente
Não quis nunca mais ser sério

Quando hoje me olhei no espelho
Não me vi jovem, mas vivo
Li o nostálgico livro
O elixir dum homem velho

s.d.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Grão-passarinho

Piou, piou e morreu
Penas marrons, pintas pretas
Perguntou quem era eu
Sou a escuridão da greta

Sou o inominável mal
Sou um néscio sem igual
O buraco fundo em cal
Ser humano e animal

Sou sem me reconhecer
Cada dia nulo
Cada noite engulo
Meu incognoscível ser

Piou, piou e morreu
Perguntou quem serei eu
Ah! Se eu pudesse piar
Saberia lhe salvar

Mas não posso e estou vivo
Vendo-o morrer em mias mãos
Eu, ignorante e cativo
Um fratricida entre irmãos

Quereria lhe ajudar
Causei, porém, tua morte
Vossos olhos feito mar
Sob a sombra da mia sorte

Perdão, meu grão-passarinho
Chorei quanto pude a ti
Pois quis lhe dar outro ninho
E assim seu passar sofri

Reverbero vãs palavras
Sondando meu sofrimento
Perdido em trevas ignavas
É o pó meu alimento.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Comunidade Armênia de SP

Quase dois meses sem postar nada, não por falta de tempo, mas por um ressecamento da criatividade. Espero que seja passageiro, mas talvez não o seja e eu estou preparado (ou ao menos preparando-me o máximo possível) para isso.

Faz um mês que venho buscando descendentes armênios que morem em São Paulo - capital, devido ao meu projeto de Iniciação Científica da faculdade de Letras, no qual venho empenhado desde março/11. Já entrevistei 0ito pessoas, o que já é em si um sucesso, para um curto período de um mês, descontados fins de semana.

Quem conhecer descendentes armênios que morem na capital de SP, ou se por ventura houver algum descendente armênio que leia essas páginas, por favor entre em contato comigo:

fejapimenta@gmail.com

Meu trabalho é idôneo, de caráter e rigor acadêmicos. Sou orientado pela excelentíssima profª Dra. Deize Crespim Pereira, que leciona todos os módulos das matérias de Cultura e Literatura Armênias, no Departamento de Línguas Orientais da USP (Universidade de São Paulo). Eu respondo os e-mails no mesmo dia, ou no máximo no dia seguinte.

Ah! Como se identifica um descendente armênio? Pelo sobrenome terminado em -IAN. Ou se ele for seu amigo e te disser, claro.

Obrigado e um grande abraço a todos.

Fernando

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Despetalada Rosa

Minha nítida memória
Não retorna à minha infância
Não me traz a paz tão glória
De estreitar essa distância

Minha límpida memória
De todo o mal cometido
Não me esclarece a história
Dalgum bem ali contido

Não sou Proust, não recordo
Dos mais mínimos detalhes
Da idade em qu'eu acordo
E perdoo todos males

Não sou Jung, não sou gênio
Não me relembro hoje adulto
Cena por cena o proscênio
Quando o cérebro era inculto

Há em mim uma semente
Plantada entre pedras duras
Teimosa e resiliente
Erguida em negras agruras

Foi um milagre irrompido
Um sussurro no silêncio
Da Terra em guerra um gemido
Seca lágrima no lenço

O sorriso ofuscante
Dentre as trevas da tristeza
Rebrilhava o diamante
Uma prece ao céu acesa

Clareou-se a mente, a noite
Luziu-se inteira em clarão
A lua, em forma de foice,
Projetou-se alva no chão

A memória veio ao homem
Lúcida, clara, divina
E se os outros seres somem
Ela ainda os ilumina

Esquecer o mal passado
É negar o maior dom
Apartar-se do cuidado
De dizer o mau do bom

É negar-se ser humano
A via mais dolorosa
De eleger-se o vil tirano
E pisotear a rosa.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Ínvio Mar

Aceitar sua própria morte
Quem sequer a aceitou
Ver-se fraco, fora forte
Sua força fraquejou

Dolorosa nostalgia
Ver a luz se amaciando
Ao olho o que antes não via
Sem saber jamais o quando

Hoje lampeja e fulmina
A pálida e fosca luz
Nesta funda e escura mina
Onde o sol não mais reluz

Nos calabouços da alma
Na masmorra agonizante
Nada se agita ou se acalma
Ouço eu um só mesmo instante

Minha trilha ao Minotauro
Nesta senda apavorida
Reconstruo e restauro
Passo a passo minha vida

Não fosse este tênue fio
Fino, feio, quebradiço
Esticado no vazio
Deste meu real feitiço

Esta linha tão-só minha
Retilínea, tensa, inerte
Com meus bravos pés caminho
Quem sabe eu um dia acerte

Há saída ao labirinto?
... ou dá voltas sobre si...
Mas só eu sei o que eu sinto
E o que eu jamais senti

No infinito desafio
Posto à prova pelo fio
Pois não foi senão aqui
Onde o cérbero ladriu

Dédalo pranteia ainda
A vã queda do anjo alado
É a dor do pai infinda
Ver o filho morto ao lado

Custou caro a aventura
Da prisão se libertar
Foi sua ideia madura
Afogada no ínvio mar.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Fútil Fardo

No derradeiro momento
Na hora final. Adeus
Neste assento em que me sento
Eu morri por erros meus

Minha certeza almejada
Minha ilusão construída
Ruiu a minha morada
Destruiu a minha ermida

Confiei no corpo, inércia
De estar bem até o além
De por muitas peripécias
Encontrar-me eu lá também
Tornar-me um herói da Grécia
Enganar... não sei a quem

Fiei-me no acaso, o prazo
De chofre expirou, se foi
Veio talvez com atraso
E eu pereci como um boi

Não fosse esse sol nascente
A me dizer: ei, acorda!
Pondo-me aos olhos a lente
Ver em meu pescoço a corda

A corda da morte aqui
Enlaçada firme e forte
Por fim eu a vi, a vi
A vida rumo a um norte

Tortuosos bairros, ruas
A noite escurece o olhar
Dia a dia a alma nua
Não consegue se mirar

Se o corpo rege a mente
O tirano toma o trono
A descrente mente mente
É o meu mundo sem dono

Barreiras intransponíveis
Pedras, cacos e destroços
Desce-se ao inferno em níveis
Já não posso... eu não posso

Talvez possa e quem dirá
O contrário, a negação
Desse sonho acolá
Antevendo a salvação

Morrer de uma vez pra sempre
Sorrindo por dentro ainda
Sem vergonha que me lembre
A terrível vida infinda

Semivida dum zumbi
Semimorto, semivivo
Em seu receio de si
Sem poder dizer: eu vivo.

Desacorrentado enfim
Não nos outros, mas na vida
Não em sonho, mas em mim
Minha terra prometida

Ancorar na tempestade
Na luta épica da alma
Coroar-me majestade
No deserto que desalma

A futilidade orgânica
Duma vida sem sentido
O pó, a cinza vulcânica
Dum nobre vulcão extinto

Cospiu feroz - e morreu
Tossiu, engasgou-se em si
Embevecido no eu
Múltiplo, vário, saci

O perneta traiçoeiro
O curupira nostálgico
Meteu o pé no bueiro
Perdeu a noção do mágico

Não escondido ou obtuso
Mas real, escancarado
Ai de mim quando eu acuso
Ser a vida eterno fardo.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Luziluzem Luzes

Labutei dias a fio
Foi sorrindo, foi suando
E no fim um elogio
Transmudou tudo em brando

Eu emagreci, sofri
Sem sequer saber por quê
E no fundo quem eu vi?
O reflexo de você

Objeto ou pessoa?
Era imagem ou miragem?
Ou uma súplica boa
Que os anjos me encorajem

A olhar valente a frente
Estendida horizontal
Não tornar-me um descrente
Na crua cela de cal

E talvez me ver no espelho
Duplicado em você
Com a morte me aconselho
Onde a sombra não se vê

Minha luz fraca e opaca
Pouco ilumina o semblante
Paira hesitante e estaca
De esperança radiante

Quem o resgata em naufrágio?
Meu espírito escravo
Um sussurro embora frágil
Resiliente... e bravo!

Ora! Não vá agora embora
Hoje não fuja de mim
Só vim à esta má hora
Tirar-te o não, dar-te o sim!

Não pergunto qual o prêmio
Se é nobre a iniciativa
Pois bêbado ou abstêmio
Trago mia mente cativa

Meditar a dor, compor
Um espectro reluzente
O hipócrita em horror
Jamais soube o que a alma sente

Se fraqueio ou cambaleio
O passo ébrio e desregrado
E o fogo em mim ateio
Faço tudo de bom grado

Já me desfaço em pedaços
Tal qual eu nasci e sou
A verdade qu'eu rechaço
Ela mesma me matou

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sonho

Sóbrio e róseo céu lilás
Partido em luz e negrume
Novas que só você traz
Embora eu não me acostume

O estertor do respirar
Corta o fogo, a comoção
Um trator a ronronar
Vejo a morte de Abraão

A última hora: o agora
Foi o perdão postergado
Eis a criança que chora
E afoga o fogo do afago

Nao há possível consolo
Perdeu o colo o calor
Reduziu-se o riso a tolo
Por prantear tanta dor

Infante, o que é a morte?
A vida, o amor, o amanhã...
Sul, oeste, leste, norte
Pálida face louçã

Pagou e apagou-se a vida
Moinho d'águas passadas
A vã prece à paz erguida
Chega a guerra à nossa estrada

Não enxergamos quem chega
Passos pesados e firmes
No pão se passa a manteiga
Não suspeitando de crimes

Quem se aproxima de cima?
E vem do alto olhando abaixo...
Tantas vozes, graves, finas
E na greta eu me agacho

As risadas como estrondos
Estalam as tábuas velhas
Treme as paredes o gongo
Toda a casa se destelha

Cessam os ruídos - gritos
Tomam logo seu lugar
Inflama-se o cor aflito
A alma a lacrimejar

Ouço o clamor da chacina
Desnorteado emudeço
A mente não mais atina
O meu corpo fez-se em gesso

Avanço às cegas no escuro
Tudo imagino e cogito
Ao rastejar no chão duro
Gélido como granito

As pálpebras entreabro
Não foi nada, foi um sonho
Sob a luz do candelabro
Me entristeço e me envergonho...

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Raptada Empatia

Austera sombra silvana
Ambivalente suástica
O meu espírito emana
Da insana Via Láctea

Percorrida madrugada
Só querendo um sinal Vosso
Minha cama arrumada
E sequer dormir eu posso

Quereria eu afirmar
Hoje o dia não me agrada
Sinto falta de um mar
Mas... desculpa esfarrapada

Quentes pés na areia fria
Solidão e completude
A luzidia abadia
No campo inóspito e rude

A penitência era a lei
E por nós era seguida
Mas já pouco agora eu sei
Da sagrada e ida ermida

Pelos vícios volteei
Rebuscando uma virtude
Ser meu vitalício rei
Tão embora a vida mude

Aos céus alcei os meus sonhos
Mal meus pés roçando o chão
Os outros, tão enfadonhos
Eu gigante, o mundo anão

De antemão não saberia
Todos próximos pesares
A catástrofe do dia
Ares nada salutares

O enforcamento da alma
No patético patíbulo
A morte cruel e calma
Deste índio desgarrido

Ó, Sol, teus raios não bastam
Para alumiar-me a face
Por ter crido n'algo casto
Antes o algo me matasse

Mas morrer sem direções
Pasmo, inerte, vegetal
Dado à boca dos leões
Eis o mais supremo mal

Ter crido no colorido
Avesso ao vão preto e branco
Para achar-me aqui tolhido
Cego, surdo, mudo e manco

Estupraram meu orgulho
Restou-me este roto corpo
Na raiva e no ódio eu mergulho
Em meu panorama morto

A perspectiva infértil
Ladra uivosa do meu âmago
Já alojou-se o projétil
Tornando o vivaz em lânguido

Foram-se as minhas proezas
Exaltadas, aclamadas
Minha voz, refém e presa
Corre interminável escada

Fraqueja o brilho celeste
Minha alma gela e inverna
Não foste tu quem disseste...
Ser a vida chama eterna?

Pois a luz ensombreou-se
Mutilou-se a mão da tocha
E verteu-se amaro o doce
Do coração feito em rocha.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Verbo d'O Pai

Pai, que foi que tu dissestes?
Taciturno, saturnino
Quando despi tuas vestes
Roupas tuas de menino

Pai, tu trabalhaste tanto
Extraíste o teu gozo
Teu feitiço, teu encanto
Teu trabalho laboroso

Tutear-te agora é bom
Reavivado recordo
Tua voz e o teu som
Quando estávamos a bordo

Desferindo a mesma terra
Esplainada pelo sol
E ninguém, pois, exagera
O poder do arrebol

No sertão caía a noite
O negrume estelar
Só eu sei o quanto dói-te
Separar-te do teu lar

A dicotomia urbana
Esta nunca nos fez bem
Já cortar com força a cana
Eis a paz que nos contém

Eis a luz que não reduz
A bravura e o vigor
Nosso angu e o cuscuz
Para o suor repor

Acordar co'a corda toda
Pôr a bota, a calça jeans
Nossa mão desperta doida
Lavourar é bom assim

A camisa cobre os braços
O chapéu sobre a cabeça
Para trás o torpor lasso
Cuida co'a vaca travessa!

Leite e aveia, pança cheia
Café, água, pão, manteiga
Borbulha o sange na veia
Quão belo café, mia nega

Pôr o berrante a berrar
No topo do cupinzeiro
Seu ruído rasga o ar
Meu sorriso sai matreiro

Os pés nus entre as formigas
Em defesa de seu lar
As picadas mais amigas
Que se pode esperar

Mirando o arcano horizonte
Vastidão extraterrena
Animo a quem quer qu'eu conte
Ser o sertão mia Viena

A terra é pequena, plena
Nada vale a quem mente
Cravejar na alma esta cena
E retê-la eternamente

Faz dum ateu homem crente
Vislumbrar este luar
Gente que vive entre a gente
O anacoreta tornar

Dizer demais diminui
Enfraquece o imaginar
E passa uma impressão ruim
A rei, sultão e czar

Calar-se então é melhor
Já dizia isso o Pai
E sempre saber de cor
Aonde é que alma vai

Se te escapa ou te acompanha
Isso faz-te cego ou sábio
Se é brio ou mera manha
O Verbo a sair-te ao lábio.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Beirada

Todos dedos deformados
Num pé preto de sujeira
Pela dor, pelos calçados
Pela à vida à margem, à beira

Vida beirando a beira dos beirais
A existência suspeita
Só, suspensa, sussurrada
Psiu! E se for cilada...

Viadutos, minhocões
Pulsa em roda a vida alheia
Lendo em rostos bonachões
Sã saúde duma ceia

Qual foi a última vez...
Sobre a mesa a sobremesa
Um cumprimento cortês
Sem a sobrancelha tesa

Qual foi o dia benquisto
Amado, bem recordado
Sem ser pego para Cristo
Sem a exclusão ao lado

Quando foi a ida infância
Se sequer a possuiu
Pacífica vida mansa
Noites inteiras sem frio

O último olhar carinhoso
Apertado abraço humano
Última instância do gozo
O amor em primeiro plano

A insânia se aproxima
Consciência desintegra
O azul céu soberbo acima
E abaixo a alma em quebra

A mole mão esmoler
Tresandando forte cheiro
Não é homem nem mulher
Súplica ao ouro faceiro

Oiro, prata, cobre esnobe
Estendido ao pavimento
Prece ao firmamento sobe
Do chão sórdido, cruento

Pois eu passo e peço apenas
Ao longínquo Pai Noel
Galgue rápido as renas
Traga o prato mais pitéu.

domingo, 17 de abril de 2011

O Ódio

Ai, o ódio me rodeia
Grande roda a girar
Uma agulha em minha veia
Latrocínio em meu lar

Ai, o ódio me permeia
E range a serra da raiva
Arrendei minh'alma à meia
Sem que a outra parte o saiba

Grito surdo me esfaqueia
O tudo entorna-se em nada
Meu amor prendeu-se à teia
Da aranha alucinada

Ai, qual lado em mim odeia
Esvozeia e vocifera
Desfaz meu paço de areia
Prenhe e pútrida pantera

Ai, inveja, angústia e lágrimas
Resvalando-se mesquinhas
Vingam-se, anulam-se máximas
Quisera eu não serem minhas

Que posso eu fazer, dormir?
Esquecer, lutar, amar?
Ver do apogeu ao nadir
Ébrias vagas deste mar...

Potentes como o tsunami
Tudo arrastam insensatas
Deitaram-me no tatame
Seu peso sufoca e mata

Reerguer-me renovado
Talvez seja a solução
Sem virtudes, sem pecados
Sorridente e folgazão

Mas e quanto a meu passado
Violento e malquerido
Sigo sempre endividado
Meu remorso cá comigo

Atar-te eu quero à correia
Pôr-te o cabresto e o punhal
Ódio, que ao amor cerceia
Germe do azedo mal

Judas, na última ceia
Cínico, ri e sorri
Cospe, escarra e escarneia
Fez tamanho mal a Ti

Não sei se isso aconteceu
Vejo nisso a alegoria
Diferir o Tu do Eu
E a luz que a nós alumia.

sábado, 16 de abril de 2011

Tchau Tristes Dias

Ah! dores da diarreia!
Quase vós me destruístes
Me influindo ideias tristes
Como o rosto de Medeia

Sentir-me um animal roto
Sentado sobre o mau cheiro
Tresandando a podre esgoto
Fétido de vil bueiro

Horas prostrado no vaso
Co'a face rente ao chão
Já não era brincalhão
Mal-amado pelo acaso

E pensar sempre no ocaso
Nessa morte ignomínia
Afogado em poço raso
Desta pútrida vã sina

Ah! Penitente é quem sente
A vida escoar em berros
Extraídos como a ferros
Na marrom e preta enchente

A matéria nauseabunda
Vai jorrando miserável
A verborreia da bunda
Vai rápida como um sável

Mas não é o mar que singra
Em um ar auspicioso
É o meu corpo que sangra
Esse líquido asqueroso

Ai, convolutas da vida
Luta contra a voraz fera
Devoradora quimera
Das digestões espremidas

E venço, afinal! É lindo
Ver um novo sol sorrindo
Esperanças renovadas
Dentre airosas cachimbadas

Sem correr mais ao banheiro
Branca face, pé ligeiro
Rio e gozo do passado
Gargalho maravilhado

Bau bau, desditosos dias
Sopa de arroz e batata
Sem sal, refeição ingrata
Quando acre eu me desfazia

Alegre e festeiro eu canto
Ter-me desfeito do encanto
Que mia alegria roubava
Fazendo a vontade escrava

Um viva à saúde! um viva!
Longa vida ao coração
Pois hoje transborda em vida
São, airoso e bonachão!

***

Que for ler ou já tiver lido Bernardo Guimarães, entenderá este meu poema. E rirá comigo!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Apocalipse

Já meus joelhos gelados
Rejeitam o teu calor
Jazem juntos lado a lado
Enrijecidos, sem cor

Descoroçoado, eu
Inicio a noite só
Acabrunhado no breu
Assimilado ao pó

Sento e sinto o som silente
Da chuva ciscando o solo
É a paz do sono à mente
E a cruz da calma em meu colo

Me belisco a ver se é sonho
O obelisco mais medonho
Sóbrio ergueu-se sobre a prece
Sua sombra sempre cresce

E se prostra à minha face
Nem se eu lhe suplicasse
Pararia a travessia
Do ermo gélido ao dia

Assombrosa transição
Do amplo universo à terra
E os homens, que farão?
Ao destino que os desterra

Rompe o mar, o chão, a serra
Inaudita explosão
O humano jamais erra
E os homens, chorarão?

Mas a paz desfaz o pranto
Faz do sórdido, homem santo
Tudo quanto havia antes
Esmigalha-se em instantes

Ondas, anacondas, bichos
Fogem, ferem-se, fatais
O efêmero luxo é lixo
Matam-se nos matagais

Palavras trôpegas, tépidas
Ah! Aquecem-nos não mais
Das relíquias restam réplicas
Vis, inválidas, banais

Outro beliscão: desperto
A destruição tão perto
Fora sonho ou vaticínio?
Malsão sabor assassino

Dobram os sinos solenes
Qual moça ou moço não teme
Pesadelos iguais, tais
Quais os meus sonhos mortais

Tão povoados de gritos
Infernais e incisivos
Mito do mal dos aflitos
Todos morrem e eu vivo

De que vale essa vivência
Solitária e seca e crespa
Nessa ignorância imensa
Onde o homem é asno e besta

Bateria de andróides
Mecânico, maquinal
Suas ações debilóides
Dignas dum animal

Bem ou mal, pois tanto faz
Tudo o homem é capaz
Mas nada novo o inova
Néscio renasce à cova

Sábios e sabiás não sabem
Tampouco sabemos nós
Ocultos na cruz do frade
Cobertos no albornoz

Escusos perdões, os mesmos
Milhões de línguas, as mesmas
Mentiras reverberadas
Em petas, contos de fadas

Acerba usura o condena
A tirar do outro à marra
O que nunca será seu
Sobre o Sol um Deus ateu

Amarga ambição o atrela
À covardia mais falsa
Deixa o vizinho sem calça
Inda o põe no cadafalso

O patíbulo é justo
O juiz sequer tem custo
Em pôr-lhe as amarras, garras
Férreas, e sobr'ele escarra

As leis de sua nação
Seu Deus Uno, e por que não?
Noções de pátria e traição
Civilizado está. Bênção!

Ó, pesadelo macabro
Azedume do curtume
Sobe-me e cala-me a boca
Geme mia goela rouca

Ruge e ri já arrastada
Mia parca voz amurada
Em corpos, detritos. Caos
O Nada. Minha morada.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Penas

Pintassilgo, pintainho
Pintarroxo, pinta o céu
De mel, de fel, passarinho
Põe à página o pincel

Meu piar apavorado
Por estar sempre apressado
O preço da pressa oprime
Meu pensar já apoucado

Pernoito em profundidades
Intransponíveis metades
Prestes a perder as penas -
Plumas e pôr-me pelado

Aplainado, pobre, apático
Procuro em mim o viático
A pleno voo, pasmado
Aprendo a premir o vácuo

Em meus poros, palpitando
O vazio que me espicaça
Ameaça e me aprisiona
A morte à sorte é mia dona

O ápice, o nada
O nado sem água
O pico, a praia
Aprazem-me não mais.

Sequestraram minha paz
O rapto o roubo a pilha
Meus pertences eu jamais
Reaverei, não sou rei.

Não mais, já mais, sem mais paz
Sem mais pontes aprumadas
A pender no horizonte

Fontes dos meus principescos
Sonhos, hoje pesadelos
Apenas perdi eu tudo.

domingo, 13 de março de 2011

Incêndios (Incendies, Denis Villeneuve, 2010)

(clique na imagem para ampliá-la)

Começar um filme ao som de Radiohead não é nada mal, vamos lá. Cenas que provocam, desde o início, indagações, ainda mais com uma trilha sonora empolgante até para quem não é fã de carteirinha da banda. Já faz do limão a limonada. Amarga, por sinal.

Filmes que surpreendem, livros que surpreendem, mulheres que surpreendem... (a lista é infinita quanto a que ou quem nos pode surpreender)... apreciamos um bocado todas essas coisas. E eu não sou uma pedra, tampouco uma ilha, como diz a letra da famosa música de Paul Simon & Garfunkel. Completamente entediante, e então profundamente devastador. O filme faz uma transição inacreditável do fastio ao ápice. Um terremoto (isto eu escrevi antes do recente terremoto no Japão, tristes coincidências...) cinematográfico que nos deixa sem chão, eira e beira.

Genial retratar um drama humano, genial em sua abordagem no início pouco ambiciosa, subindo uma espiral até o clímax. Lembrou-me vagamente do pouco conhecido filme romeno, O Entardecer de um Torturador (Dupa-amiaza unui tortionar, Lucian Pintilie, 2001), do qual lembro-me infelizmente o insuficiente. Mas este romeno é um tanto mais modesto em sua amplitude, embora igualmente bombástico em suas dimensões, visto que tange à lástima de ser humano em condições ultimamente desumanas. Quão fortes somos? A que ponto aguentamos pontos e mais pontos de interrogação, os quais, uma vez resolvidos, trazem as mais indesejáveis respostas do mundo - dum desmundo. A canção que rebenta de nosso peito convulsionado e encanta como um mantra o pesadelo sem fim que nos rodeia e apodera, amurados e sós.

Ciclos e ciclos de violência intermináveis - ou será que se os pode afinal terminar? De que modo subtrair as perdas de modo que a soma resulte ainda positiva? A bem da verdade, é preciso estar presente, ainda que a alma almeje ausentar-se. É necessário ser o que nascemos para ser, mesmo que a esmo o venhamos a saber. Senão, o que seríamos de nós? Detritos em meio ao mar de areia da vida? Não. Ou antes, sim. Alçamo-nos à altura do que nos nega, para só assim nos afirmarmos integralmente, sem chance de retroceder.

E ainda que a canção, nossa mais íntima e única canção, soe absurdamente ridícula e sem sentido aos surdos ouvidos alheios, nem mesmo esse parecer fatalista parará nossa voz, embargada em soluços, mas ainda e sempre nossa, nada mais nada menos. Será possível? Ah, bem mais que possível, bem mais que impossível. Tudo o que é essencialmente nosso - e o que não é? - é tão-somente definido por quem somos e quem queremos ser. Não para as próximas gerações, que muito possivelmente não quererão ou poderão nos compreender, ou que jamais ouvirão nossos nomes, mergulhadas em suas próprias ilusões. Mas para nós mesmos. Em situações limite reportamo-nos a nós mesmos e a ninguém mais. Caso esperemos um ressurgido herói ou Cristo interceder por nossa graça, não veremos herói nem Cristo algum. E nem os viveremos jamais em nossa própria pele, e eis ante nós a mais sólida desgraça.

Ter um livre-arbítrio que ninguém nem nada pode nos tirar, conquanto infringido, pisoteado, amordaçado, destroçado. Olhar-se no espelho d'água sujo e abjeto formado no chão pútrido diante de nossos olhos e dizer com firmeza: tentaram, sem o conseguir, tentam, em vão e tentarão com os mesmos resultados anteriores! Minha canção reverberará mais alto que quaisquer alto-falantes que a tentem reprimir e ador de muitos ou ao menos a muita dor que eu sinto esta canção a irá dirimir. Esta anônima canção sem título e sem nação, e sem notas de rodapé anexas, é autossuficiente em sua infinita dimensão. Escopos apertados a verão como tolice de uma mente insana, mas eis que nela se resguarda justamente o poderoso germe de uma sanidade que a tudo resistiu, impassível de dissolver-se na insânia e maldade reinantes. Impassível de ser anulada a pó, à sombra, a pretérito perfeito, pois que é imperfeito este pretérito e ressoa harmonioso e verídico a quem o quer ouvir.

Mas quem quererá auscultar os terríveis batimentos cardíacos coletivos daqueles tenebrosos tempos? Poucos, certamente. Mas são sempre poucos os corajosos, os que não se descoroçoam, e poucos e fiéis são seus seguidores. E a coragem, subjetiva e impessoal como só ela sói-o ser, inexplicavelmente persiste em bravos corações, sem que o tempo a consiga adulterar.

Um hino - porque há de ser musical - a todos que resistem morrer por dentro. Aos sempre poucos eles e elas, um hino harmônico, eufônico e eterno.

sábado, 12 de março de 2011

Além da Vida (Hereafter, Clint Eastwood, 2010)

(clique na imagem para vê-la no tamanho original)

Eastwood teve a brilhante ideia de reproduzir a catástrofe ocorrida na Indonésia em 2004: o tétrico tsunami, cujas imagens percorreram os ávidos olhos televisivos e internautas do mundo inteiro. Abrir um filme dessa maneira, convenhamos, prende sem esforço a atenção do espectador.

Não bastasse isso, temos o excelente ator Matt Damon em um dos papéis principais, protagonista de filmes da qualidade de Gênio Indomável (Good Will Hunting, dir. Gus Van Sant, 1997) e O Talentoso Mr. Ripley (The Talented Mr. Ripley, dir. Anthony Minghella, 1999), numa das performances mais convincentes de sua carreira. Se na maior parte dos filmes nos quais Damon atuou ele se se mostra infalivelmente sorridente e sedutor, aqui ele pouco sorri e se apresenta consternado com um dilema: usar o seu dom (ou seria maldição?) da clarividência, ou tentar levar o que a sociedade denomina uma vida normal.

À semelhança de filmes como Amores Brutos (Amores Perros, Alejandro González Iñárritu, 2000), Crash - No Limite (Crash, Paul Haggis, 2004) e Babel (Alejandro González Iñárritu, 2006) , neste último filme dirigido por Eastwood as vidas de distintos personagens se cruzam e nos deixam a indagar: a que ponto nossas vidas inevitavelmente se entrelaçam às de outras pessoas, impactadas da mesma maneira que nós? Aproximamo-nos daqueles que nos podem ajudar de maneira absolutamente acidental? Ou haveria algo místico e mágico tramando invisíveis fios de ouro ao nosso redor?

Como o audacioso e às vezes injustiçado filme Babel, Além da Vida propõe uma improvável ("forçada", como já tanto ouvir dizer de Babel?) união entre os protagonistas, uma "globalização", assim por dizer, da relação entre as pessoas, mas desta vez pondo em maior evidência a oposição entre experiências limítrofes à morte e a derradeira opção por seguir vivendo, apesar de tudo, que esses personagens tomam.

O amadurecimento desses heróis e heroínas do dia a dia aqui representados se dá de modo doloroso, envolvendo rupturas de laços familiares, afetivos e uma retomada da autoconfiança no curso de suas vidas, após terem sido vítimas da profunda descrença e incompreensão alheias. Aonde quer que vão deparam-se com barreiras, simplesmente por expressarem uma maneira de enxergar o mundo (ou, antes, o além-mundo) alternativo ao estrito escopo de uma sociedade materialista, no pior sentido que esse adjetivo pode abarcar: vive-se uma vida espiritualmente vã, cerceada de necessidades imediatas, e mesmo após desgraças de proporções enormes nos atingirem, poucos são aqueles que se permitem uma reflexão mais adensada sobre quem são e o que, afinal, querem com a presente vida.

O filme não faz senão mostrar que os vigaristas e os falsos profetas e gurus roubam a cena desse mundo "esotérico" (tomou uma desproporcional e incrédula conotação pejorativa esta palavra), os primeiros sapientes de sua má fé, estes últimos em autoengano quanto aquilo em que creeem. Turvam esses mágicos ilusionistas as águas de um rio já suficientemente turvo devido aos nossos próprios preconceitos, inculcados desde cedo pela abjeta efemeridade de valores do oco mundinho ocidental no qual vivemos, e que o mundo inteiro já contaminou: há questões deixadas para trás quando dessa nossa busca irrefreável pela satisfação ordinariamente mundana, extraída às pressas de nossas vidas mais que corridas. Há indagações que deixamos de fazer com sinceridade - e com igual sinceridade buscar suas talvez pouco agradáveis respostas -, pelo inescrutável medo de "perdermos nossa credibilidade" e sermos humilhantemente ridicularizados e menoscabados até mesmo pelos mais próximos de nós. Não foi isso que quis Jesus dizer, em Marcos 6:4, Novo Testamento: Nenhum profeta é tido em pouco senão em sua pátria e entre seus parentes e em sua casa

Poucos não serão os espectadores que sairão da sala de cinema com a impressão de ser um filme "meia boca". Imagino-me por quê. Meia boca não seria nossas vidas a nos empurrar ao inevitável fim, escravizados pelo trabalho e acabrestados por uma questionável superficialidade de valores diariamente postulada pela grande mídia? Vivemos cada vez mais, mas paradoxalmente cada vez menos, cada vez pior, à medida que poucos são aqueles entre nós que, rodeados por esse inferno de bestialidades e besteiróis que nos sufocam, conseguem divisar um horizonte mais amplo às suas vidas, que não o mecanicamente financeiro, corriqueiro e ulteriormente ba-nal. Verdadeiramente entrever e atribuir um sentido à própria vida, esquivando-se desse contagioso individualismo ultranarcísico que nos assola, eis o desafio proposto aos poucos (ou seriam muitos?) que o queiram por fim enfrentá-lo. Ora, se a vida nesta abençoada terra é irremediavelmente finita, o que esperamos nós?

Transparece no filme esse embate aparentemente tênue, mas em essência visceral, ao que eu agradeço tê-lo visto. Muitos de nós estamos cansados de vermos a velha e gasta fórmula de heróis e vilões holywoodianos, não importa de qual maneira seja readaptada, pois cujo fim já sabemos de cor e salteado. Não me surpreende, portanto, que o mesmo diretor de Menina de Ouro (Million Dollar Baby, 2004) tenha proposto uma reflexão inquietante e que nos define como seres humanos. Agimos como dignos representantes dessa nossa espécie em desconstrução e decadência frente a uma cultura pop que nada nos responde no que mais nos diz respeito e é mais unicamente nosso? Agimos?

Assistam e me contestem.

***

¹tradução do texto original grego pelo P. Dr. Frei Mateus Hoepers, O.F.M. 9ª edição, editora Vozes Limitada (Petrópolis, RJ, 1973).

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Bão dia, São Ão

Minha peregrinação
No deserto do sertão
Onde eu conheci São Ão
De chinela e tamancão

Ele ria e dizia
Faz um sol de meio-dia
Essa minha travessia
É um banho de água fria

No meu corpo quase nu
Esfolado pelo sol
Trago a vaca que fez mu
Entoado em si bemol

E por pouco a chifrada
Nesta pele depenada
Não fez um rombão enorme
Onde o intestino dorme

Eu fiquei foi mais esperto
Nunca mais cheguei tão perto
Doutros bois de cara preta
De espingarda de espoleta

Ai, mamãe, que é qu'eu fiz
Nesta vida de aprendiz
Pra nascer tão infeliz
Co'esse rosto bonachão

Se fui salvo por um triz
Foi porque o fado quis
Co'essa linda flor-de-lis
Recheada de emoção

Respirar o ar do mar
Por aqui não consegui
Só o belo bem-te-vi
Pude ver no céu silvar

O pedreiro desta terra
Faz do alto sua mansão
O joão-de-barro é fera
Jamais erra uma mão

Pelejei com a enxada
Chapéu coco na mia cuca
Esse cabo que machuca
Grita, berra, urra e brada

Capinei, rocei, suei
E gritei: E-í E-í e Ei
Ô-í ô-í ou, eu vou
Procurar em mim o ouro

Ouro fino, ouro preto, ouro
Branco de joias reais
Elas em mim valem mais
Que um simples, fixo agouro

Predestinado da vida
Tão precoce e resumida
Por rezas e esconjuros
Prisioneiros de seus muros

Onde eu conheci São Ão
Rima de libertação
Forte como a explosão
De um vivo e rico Não

Não à mão que esmurra e bate
Nas bochechas escarlates
Dessa moça nova e bela
Pra mantê-la sob a sela

Não a todas bagatelas
Ditas por um Zé Ruela
Cuja vida é mentir
Com astúcias seduzir

Se eu amo a aventura
Foi devido à vida dura
Adoçada à rapadura
Quando a noite vinha escura

Foi devido aos meus amigos
Os meus cães qu'eu sempre sigo
Me livrando do perigo
De focar meu próprio umbigo

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Não quer...

Minha mão na contramão
Torto escreve, reto apaga
Não é mão de homem são
Nem herói de uma saga

Quer carícia, mas afaga
O papel de cor pastel
E a moça de anágua
Tão longínqua como o céu

Quer as curvas da mulher
Mas só acha o caderno
Despe, dobra, toca o terno
A frieza da colher

Quer cabelos anelados
Para enrodilhar os dedos
E com toques saciados
Relembrar de manhã cedo...

Quer o talhe de Iracema
Romanesca e rebuscada
Sua voz doce e amena
Convocando ao tudo ou nada...

Quer... apalpar superfícies
Planas e heterogêneas
Bruscas, lisas e difíceis
Como as montanhas do Quênia

Quer, bem-me-quer, malmequer
Se são flores ou quereres
Se são cores ou mulheres
Escrever a mão não quer.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ato de Cidadania

Um grande amigo meu pediu, a todos que pudessem, ajudá-lo lendo o pequeno post no blogue do grupo dele: LINK

Parece que para o projeto dele ser viabilizado será levada em conta a quantidade de votos (clicando no coraçãozinho abaixo do artigo) e de comentários, preferencialmente comentários que gerem feedback dos autores (fazer uma pergunta é um jeito de gerar feedback...). Já li, votei e comentei.

Eu agradeço por ele, já que ele é um grande camarada meu.

Muito obrigado!
\O/

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Mouro Mar

Desmanchando a machadadas
Chagas dum amor doente
Xícaras de chá deixadas
Cheias de vil aguardente

Nas prateleiras ruídas
De minha fiel estante
Onde um dia vi saídas
À mia vida inconstante

Por só ser um ser humano
Em um mundo animal
O único bicho insano
Dividido em bem e mal

Como eu posso ser um deus
Se resido neste corpo
Se vejo dejetos meus
Como besta serei morto

E memória infalível
Nunca tive nem terei
E o sublime alto nível
Não pertence nem ao rei

Sobre o trono como um mono
Babuíno empoderado
Assombrado em seu sono
Com um mundo inalterado

Por reger e comandar
Sob o peso da coroa
Tudo no mesmo lugar
E a inércia amaldiçoa

Longas noites sem dormir
Debruçado em seu cachimbo
E as volúpias do devir
Lascivamente sorrindo

"Ficarei louco", murmura
Poço de sexo e cobiça
Minha mente é uma tortura
Se aqui ou na Suíça

Pouco importa onde estou
Sigo sendo sempre o mesmo
Sem saber o que eu sou
Singro esta selva a esmo

Miro o céu e as estrelas
Abundando o fundo breu
Minha vida quero enchê-la
Mas o quão vazio sou eu

E se olho o denso mar
Auriverde glauco azul
Pura glória de estar
Norte oeste leste sul

E não mais me ensimesmar
Em vãs vaidades chãs
Maravilhado no mar
Feminino das cunhãs

Das sereias endeusadas
Prata cobre açafrão
Como um conto de fadas
Onde o mal e o bem estão

Sabiamente separados
Numa oposição polar
Inatravessável a nado
Mouro mar a marulhar...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Traficante de Almas

Nunca sei a sensação
Passada assim para mim
De quem mata sem perdão
Sem pesar o próprio fim

De quem ceifa um homem são
Como se dissesse um sim
Extraindo o sangue à mão
Como ao arrancar capim

Como uma alma tão ruim
Pode ao nosso mundo vir
Sem ser santo eu mesmo vim
E sem sangue irei partir

Quanto dói matar alguém
Quando a noite insiste em vir
E na treva os fatos vêm
E o momento de carpir

Qual prazer há em se ver
Nu e cru frente ao espelho
O sangue alheio a correr
E ao Cão eu me assemelho

Qual fortuna eu posso ter
Se a memória fugidia
Do sol sadio a nascer
Lembra-me o outro dia

Embebido em sangue e ódio
O mais inumano em mim
Sem qualquer misericórdia
Em meu crime de Caim

Matei Abel, fui cruel
Confessá-lo não mitiga
Nem tira o ácido fel
Da mia ira fratricida

Se morrerei enforcado
Na seca angústia amargada
Não sei - e quem sabe o fado...
Dum homem entregue ao nada?

E quem andou esta estrada
Continuando sua vida
Será uma alma penada
Bem mais morta que vivida

Cada passo um passo falso
Trôpego, vazio, sem sombra
Rumo ao próprio cadafalso
Cujo aberto chão assombra

O vão da vala abissal
Insensível ao perdão
Seu ruído gutural
Murmurando o eterno Não

Não à póstuma injustiça
A quem quis desafiar
A ordem e as premissas
Do universo, nosso lar

Se o divino em nós está
Seu oposto, igualmente
Ai da consciência má
Que a si, teimosa, mente

Pois a alma já pressente
A vontade de enganar
E o Mal, visto à lente,
Transformado em Bem está.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Resposta

Eu sei como dói, meu bem
A dor de garganta, a dor
De dente - rente à gengiva
Amor, você é mia diva

E, olha, eu não brinco não
Eu sou louco mas sou são
Quando eu toco tua mão
Penso sempre: por que não

Sem talvez, pois somos duas
Pessoas e jamais três
Pois essas mãos são as suas
Só há nós dois esta vez...

Quem é perfeito não é
Tem defeito em não ter fé
Noutra vida, noutra alma
Em ser dois sendo nenhum

Em ser dois nem sendo um...
Só ser sozinho achatado
Torto quadrado sem lados
Dado à garrafa de rum

Este não pode sonhar
Ser reflexivo sem dar
Uma chance ao cego acaso
Resplandescer no ocaso

Pois eu digo: o que somos?
No que cremos? O que fomos?
Somos do mundo os donos?
Não, não nos contentaria...

Se um dia acontecesse
Vermos a cara-metade
Nesse espelho mutilado
Refletindo a nossa face

Cansamo-nos dela - bela
Que seja! Ou hórrida horrível
Morre o corcel sob a sela
Mas sua alma é inesquecível

Sua alma em tempos de calma
Não vale, senão no horror
No dever de recompor
Uma amálgama de nós

Um amálgama a sós
Não se faz - é quebradiço
Desmancha feito um feitiço
Não é questão nem resposta

Mão é a mão que encosta
No meu ombro e me diz
Quis contigo ser feliz
Tua é a mão que me encosta.

***

Após o muito bom filme: Strange Days (1995)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Chovemo-nos

Chuva cheia encharca o chão
Chove vida no verão
Água deságua e enxágua
Enxuga o meu coração

Poças espelhos azuis
Teu machucado curou
Meu bem-amado chegou
Cego já sonha co'a luz

Céus do mais límpido azul
Chacoalha o vento do sul
Quem não pode advinhar
Qual a cor que benze o mar

O amarelo singelo
Junta-se ao sangue carmim
O verde e o caramelo
Unem meu não ao teu sim

Quando passa a depressão
Vem meu corcel alazão
Preto e fogoso carvão
Lambe mia palma da mão

Se eu pudesse imaginar
Um lugar onde ficar
Donde eu saísse a voar
Sem nenhum mal mais pensar...

Sem nenhum'alma pensar.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Na despensa da memória

Exatos cinco dias antes do meu aniversário de vinte anos minha mãe me contou uma história estarrecedora. Porque quando a gente é criança e ouve - se é que ainda contam - histórias de ninar, parece que crescer é indolor. Ainda que haja a troca de dentes, arranhões nos braços e joelhos, quando não membros quebrados, amorecos não correspondidos, como acontece universalmente a todos, a parte dura da vida nossos pais deixam ao encargo do tempo. Cada coisa tem sua hora e seu lugar. Depois do que me contou, não duvido mais. Estávamos na cozinha, e, digamos, perdi um pouco do apetite.

Como eu sou o único receptor da história, e a história ocorreu há mais ou menos trinta anos, e prometi não contar a ninguém, ponho-me a escrever maquinalmente as impressões que a história me suscitou. É difícil arcar com a verdade quando de supetão nos é soprada no ouvido, sem nos dar tempo de bandear prum lado, cambalear pro outro. O cavalo galga alucinado, a sela não está firme, o cavaleiro trêbado pende as pernas sem sentir o mundo, e o chão... o enorme chão imundo está cada vez mais próximo, sua alma flutuante, o corpo insensível, a mente insensata.

São histórias macabras, da realidade cotidiana que esperamos não acontecer a nós, mas mesmo assim acontecem. Se aconteceu à minha mãe, oras, o mínimo que posso imaginar é essa terrível sensação de proximidade. Suspeita-se da humanidade quando ocorre algo semelhante. Ah, e como se suspeita. Porque o quê é um homem sem os outros, e quando os outros se põem a trai-lo dessa maneira nauseabunda... bem, o que restam senão dúvidas do que é ser humano, e senão há exceções à regra... e quão brutas e vis tais exceções são.

Do dia em que levamos o tapinha no bumbum do doutor até o dia em que levamos o tapinha nas costas de adeus, percorremos milhas e milhas, milhares de lugares, mil pessoas diferentes se imiscuem em nossas vidas - muitas delas preenchem esse nosso vazio de vir só ao mundo, ainda que às vezes acompanhados por irmão gêmeo, ou trigêmeos, ou qualquer múltiplo incrédulo que a fertilização agora permite. Ouvi dizer de uma mulher estadounidense que pariu oito de uma vez. Óctuplos, os oito tentáculos do polvo. É filho pra danar. Mas voltando à questão anterior: se há pessoas que nos preenchem maravilhosamente e as preenchemos de volta, com risadas e gracejos, abraços e beijos, lágrimas de alegria, concessões e perdões, há de fato aquelas opostas: as que nos esvaziam, ou que o tentam com uma pujança e uma má fé tais que soam inexplicáveis.

Fazem-nos sofrer admiravalmente. Parece que nasceram pra isso. E, se não estou enganado, não só parecem, mas é fato corroborado. Semear desgraças, desconfiança, alucinações de massa, misantropia. Há motivos de sobra para odiá-las, excluí-las. Mas pulemos a primeira parte, que é de todo inútil: o ódio. O ódio é, no pleno sentido da palavra, não-útil. Odiar convida outros atos piores a entrarem em cena: vingança, revanche, violência. E, com isso, uma avalanche de fatos ainda piores que aqueles que deram origem à toda nossa raiva. Uma bola de neve que termina por nos sufocar e soterrar, e da qual há pouca, senão nenhuma saída uma vez incitada a rolar.

Então nos concentremos por ora no segundo ponto: excluí-los de nossa vida. Oras, na minha cozinha há um cesto de lixo, no banheiro também. Até no sistema virtual do computador há uma lixeira reservada a arquivos inúteis ou corrompidos. Onde há sujeira, há um lugar para dela se desfazer. Viver em meio ao lixo faz mal. Imensamente mal. Quanto mais o lixo humano, decerto o mais fedido e não reaproveitável de todos os outros. Cocô de bicho vira adubo, alimento pra outros bichos com "estômago de abutre", e até energia, ouvi dizer. Por conta do gás metano que da bosta evola ou coisa parecida. Mas o cocô de gente não só tira, numa lufada só de vento malcheiroso, a concentração do indivíduo mais santo, como também germina toda a sorte de doenças fatais. Digo: fatais. Não é brincadeira.

Já me deparei com pessoas ruins de todas as etnias, de ambos os gêneros. Após anos de estudo e leitura sobre o tema, e participando de grupos eminentes de discussão, nos quais me foram apresentados os nomes dos principais psiquiatras e psicólogos, autores que se dispuseram a escrever livros e ministrar palestras sobre isso, transformando ao longo dos anos o polêmico tópico em ciência - verificável e arguível - conheci o nome da maldita maleita: psicopatia.

É claro que, mudando de escolas a vida toda por questões econômicas, e transitando por todas as camadas sociais no dia a dia, e cruzando e entrecruzando uma das maiores metrópoles do planeta, e a maior do Brasil, eu pude tomar nota desse fenômeno patológico, pessoalmente, usando-me de todo o conhecimento adquirido com tais autores. E descobri a nível pessoal, como já afirmavam esses autores, que psicopatia não tem nome, não tem cor, não tem religião, etnia, nem sexo, status social ou índice de riqueza ou pobreza.

Esses autores praticamente se punham a afirmar que a psicopatia era uma característica herdada nos genes, pois nenhum contexto explicava seu surgimento. E, o mais relevante, ela se manifestava desde a tenra infância. Eu amo crianças, sempre estive em contato com elas, já fui uma um dia, e posso dizer que toda criança, com suas naturais traquinagens e molecagens, encaram um dia a decisão que irá delinear sua vida posterior: mudar ou piorar. Não é, na maior parte dos casos, uma decisão tão chocante. Segue o rumo da vida, segue o aprendizado em seu curso, o desenvolvimento corpóreo, o ônus da responsabilidade de "crescer e ser alguém".

Mas vamos bater o martelo no prego e dizer que, quando criança, eu tinha uma série de problemas. Falam que toda criança tem problemas, mas os meus eram maiores. Eu estava envolvido em vários ciclos de violência concomitantes e a cobra parece perserguir o próprio rabo com a boca, porque até hoje é dificílimo afirmar o que desencadeava o quê, exatamente. Meu pai me dava séries de 10 ou 20 cintadas, se abrisse o bocão e descambasse a chorar antes do primeiro golpe, eram 20. Se fosse "macho", eram "só" 10. Lembro-me até hoje de uma vez em que me atingiu com a fivela. Ficou um roxão que eu até mostrava aos mais íntimos, num misto de espanto "por ter sobrevivido", e de audácia e orgulho do que era necessário para me conter. Minha mãe me espancava com havaianas. Até hoje não as gosto de usar, apesar de ter um par nos pés neste instante. Eu era o valentão do tipo que odiava a desigualdade. Não sei se sonhava em ser herói, mas desempenhava bem o papel de um Robin Hood moderno, macunaímico: cheio de contradições e detalhes mal explicados - elipses vergonhosas, e predicados forçosamente destacados do sujeito e pontuados com vírgulas, pontos-e-vírgulas, reticências duplas, triplas.

Eu era um cara estranho, e não me surpreendo em ver minhas fotos de criança: o mesmo rosto sério, sombrio, como que querendo enfrentar a morte de frente. Os olhos fixos nalgum ponto além do observador, como que desprezando aquela ridícula tecnologia de capturar um instante da minha vida e congelá-lo a nunca mais. Não me surpreendo também que, aos dez/onze anos, as diretoras e coordenadoras do colégio onde eu estudei suspeitassem, não sem indícios, que eu era um caso de antissociabilidade singular. Eu bambeava entre a bondade e a maldade, a ingenuidade e a precocidade de forma assustadora. Tenho certeza que fui o último aluno de todas as turmas nas quais estudei a ter parado de mijar na cama. Lembro-me com nitidez as fichas médicas escolares que meus pais anualmente preenchiam e nelas sempre constava um item cuja lacuna era prontamente preenchida: enurese noturna.

Lembro-me de enxaquecas tão fortes que eu me tornava fotofóbico ao abrir os olhos: a luz penetrava nas duas órbitas semicerradas e parecia que a dor se emanava da alma. Lembro de ter ido parar na direção por desenhar pênis e toda sorte de genitália no recreio. Quarta série. Tudo isso antes da quarta série. É o que se diria precoce, ainda mais tendo em vista que a explicação da querida professora Rosemary de termos vindo ao mundo, em sala de aula, era a de que papai havia plantado uma sementinha no solo (ou era colo?) fértil de mamãe e havíamos nos formado e nos nutrido no interior desse magnífico corpo reprodutor, produtor de pirralhinhos como eu. Boquiabertos escutávamos aquilo, e eu com vontade de me masturbar. Putz grila! Por que começou tão cedo? Bom, foi um alívio ouvir da boca de um amigo meu que ele começou aos sete! Ufa! Foi uma das melhores sensações de alívio que senti nestes curtos vinte anos. Sinto-me grato até hoje por essa confissão bem-humorada. Grato, sempre, pelo bom-humor descabido alheio. Rio por dentro e por fora como só eu.

Na quarta série eu provocava meninos maiores que eu, mais fortes, e mais inescrupolosos. Como apanhei... uma vez levei um chute triplo de Karatê Kid, em meio a fila de pingue-pongue que se aglomerava religiosamente no recreio. Chamei um cara loiro e rechonchudo, muito parecido com meu irmão, de viado e bicha. Fiquei chorando, sentado no banco de pedra da mesa descomunal de grande em que tomávamos nossos lanches. A Érica veio me consolar. Ah, os tempos das lancheiras adesivadas com nossos personagens de desenhos animados prediletos, lanchinhos meticulosamente preparados pela mamãe, embrulhados em plástico transparente ou alumínio, acompanhados de um desses leites achocolatados em caixinhas de 200ml, e montinhos de guardanapo branquinhos e asseados. Que alegria! Bisnaguinha com salame e manteiga, bisnaguinha com manteiga e queijo prato ou moçarela. R$1,20 para o pão de batata requentado da lanchonete e o refrigerante tomado no canudinho, tão gelado a ponto de gelar a testa... porque competíamos quem esvaziava o conteúdo mais rápido, e a testa parecia que ia pular fora da cabeça. Não importa, era gostoso pra caramba. O que não mata, engorda, e eu era bem fortinho. Uma criança de dar inveja - descontados meus problemas.

Fui pra direção por colocar os pés sobre a carteira enquanto a professora passava algum filme no escuro, ou algo do tipo. Havia apostado com meu grande amigo de aventuras da época, quem teria a coragem daquela façanha inaudita. E não nos desapontamos. Os dois destemidos pestinhas foram prontamente expulsos a brados da sala de aula. Olhares espantados de nossos colegas, autêntica incompreensão. O que estávamos querendo mostrar? A quem? Ao que parece, a nós mesmos.

Ou então quando esse mesmo Flávio, eu e o Caio combinamos de pedir pra ir "ao" banheiro e de não retornar à sala de aula. Decidimos nos esconder num banheiro que se mostrou pequeno demais para nós três e nossas sonoras e infantis gargalhadas. Puxa vida, o Caio ria rouco demais, o Flávio gargalhava cacofonicamente, e eu não deixava por menos, e uma assistente, bonita que só, veio bater à porta, exigindo que saíssemos. Direção de novo.

Ou quando eu e o Grabriel da Matta, judoca, um dos amigos mais singulares de minha infância, nos dispusemos a brigar - um por vez - com o Leonardo, garoto engraçado, sucesso na opinião feminina, e o Grabriel levou um chute que subiu como em câmara lenta do chão e foi fazer uns ovos mexidos no capricho quando alcançou o apogeu. Ai, essa doeu de verdade. Foi a primeira e única vez que vi o da Matta cair de joelhos e chorar. Direção de novo.

E quando, então, meti um tapa na boca da Júlia, pra ela parar de matraquear... depois do que ela nunca mais falou comigo. Chamei, num sábado de grêmio esportivo, o professor de Ed. Física de ladrão na cara dele, no meio do futebol. Me mandou pra fora da quadra e direto pra casa, não sem antes ter pedido pr'eu repetir o insulto, ao que eu repeti. Ué, não era homem (leia-se: pirralho) o bastante pra ter dito uma primeira vez? Pois que dissesse uma segunda. E arquei com as consequências.

Mas que tipo de "homem" exatamente eu era, se nos dias dos pais e das mães me sentia compelido a chorar, ao cantar as canções de fossa que treinávamos, as danças que preparávamos e chegar a hora do abraço, em que meu pai, sempre contido, uma mistura de reserva e amabilidade, e minha mãe, derretendo-se sempre como manteiga na frigideira, nos davam, me davam, aquela recompensa emocional que eu não podia compreender...

E na quinta série, em outra escola, quando bati no coreano Michel. Que besteira. Pois que até a oitava série não trocamos mais uma palavra sequer, um cumprimento. O mal havia sido feito, tudo por uma pedrada que levei no meio da testa, quando brincava sozinho no balanço do parquinho. Não fora ele que atirara, mas o Mário, e as últimas e únicas palavras do Michel dirigidas a mim, durante os quatro anos inteiros em que estudei naquela escola, foram: "Não fui eu, foi o M..." ... mas não conseguiu terminar. Numa impulsividade que eu desconhecia em mim, desferi soco após soco à Bruce Lee na boca do estômago dele, e me tornei, a partir daquela tarde, o inimigo número 1 da escola. O Michel estava naquela escola desde o berçário, conhecendo e sendo conhecido por todos, ao passo que eu era um mero bolsista novato com 70% de desconto nas onerosas mensalidades, cujo nome ninguém sabia. Até então. Pois passaram a saber. Cada cão louco tem seu próprio nome. Bati nele e fui embora. Nada de sangue, nada de marcas ou golpes no rosto. Eu era violento, sim, mas jamais um desalmado. A covardia de bater em quem se rendeu me repele. No dia seguinte havia um conglomerado me esperando, me espreitando, cochichando, me olhando e apontando (foi ele, mano! foi ele!) com olhos raivosos, ressabiados, aguardando o horário do intervalo, mãos se esfregando, bocas se contorcendo, gestos, dedos alheios indicando o meu magro corpo.

Foi o mais próximo que cheguei a um linchamento em massa. 11 anos de idade, sem saber o que eu fazia na vida, indo sempre razoavelmente bem nas notas e sendo um lobo solitário consumado, eu certamente sabia o que era me sentir um excluído. Não sintam pena: só a exclusão permite a liberdade do pensamento crítico para se escrever um texto como este, sobre um passado repleto de imperfeições, imprecisões, pontos sem nó e sem dó. Não tenho vontade de agradar a ninguém ou embelezar quem sou ou fui com ele, muito menos acusar ninguém pelos males que cometi, quero simplesmente relatar porção ínfima e talvez insubstancial de meu passado, nua e cruamente. O troço era feio, e fiz coisas audazes e malucas difíceis de crer, embora não se inclua nelas ter tirado a vida de nenhum ser vivo que não formigas, ou, no máximo, baratas. Matar mamíferos me evoca pena. Já comê-los, não. Também não estraguei a vida de ninguém, e tenho certeza que a minha perene sensação de culpa para com tudo e todos é ao menos dez mil vezes maior que a "atrocidade" dos meus atos - se fosse passível de ser mensurada. Um caso de superneurose controlada, provavelmente.

Aos 11 anos tomei coragem junto de meu novo amigo Flávio, japonês, para pedir o telefone da Carol, garota loira, linda, a primeiríssima e última loira pela qual me apaixonei. Ela era, para meus olhos de 13 anos, o mais próximo que já se chegou no mundo de se misturar tudo de bom da beleza de Uma Thurman com tudo de bom da beleza de Cameron Diaz. Era verdadeiramente linda, imbativelmente a menina mais bonita que havia posto os pés naquela escola, e, por natural dedução, no mundo. Não era preciso estar de queixo caído. Todos os garotos temiam sussurrar uma palavra que fosse a ela, acho que foi isso que a fez mudar de escola no ano seguinte. Ser bonito é bom, mas tanto assim não deve ser fácil. Estou debochando um bocadinho, mas tem aqui seu quinhão e quilate de verdade. Ela tinha um bom humor formidável, uma gargalhada marcante, e dois olhos grandes e belos de doer. Voz de mulher, atitude de mulher, alta, esbelta, cabelos lisos. Longos. Dourados. Toda ela era bela e cinderela. Meu coração batia forte, eu entrei cara e coragem na biblioteca, dirigi-me à sala de leitura e lhe disse: Carol, você pode me passar seu telefone?

Minha voz tremia, minhas pernas estavam cambembes, ela abriu um sorriso que me tirou o equilíbrio igual Velho Barreiro, e sua prima Tatiana, pequena e maliciosa, sentada a seu lado, riu em desprezo e escárnio, olhando-me de cima a baixo. A Carol me respondeu firme e com um leve suave sorriso nos cantos dos lábios: E quem é você? Eu balbuciei: F-F-ernan-do. A Tatiana exclamou, em derrisão, algo do tipo à prima: Fala Não pra ele! Dispensa ele logo! A Carol disse um límpido, assassino, curioso: Não. Tinha um quê de misericórdia na voz dela, uma hesitação galhofeira em decapitar o bandido, que parecia querer me dizer: ou eu nasci errado, ou cheguei da maneira errada. Ok, de qualquer forma, consolo zero. Meu mundo obscureceu, eu baixei a cabeça em vexame, saí da biblioteca em passos pesados, e o Flávio, sempre alegre e brincalhão, me disse: E AÍ, meu, conseguiu? N-não..., cara, ela disse não... AH, tudo bem, isso passa... NÃO vai chorar agora, NÉ?... Não... que isso! EU, cho-RAR? BAH!

Segurava as lágrimas quando minha mãe me buscou de carro naquele dia. Minha mãe perguntou se estava tudo bem, eu respondi um teso e taciturno "A-hã", ela saiu da cozinha pra pegar papel-toalha ou sei-lá-o-quê, e eu não me aguentei mais. Enchi até a borda minha piscina particular.

Nesse mesmo dia eu pronunciei uma máxima que se realizou: Vou deixar meu cabelo crescer por 5 anos, e só depois vou cortar. Vou virar monge. Claro, só falei a primeira parte pra minha mãe, que, conhecendo minha natureza de turrão e teimoso, sabia que era papo de piá maduro. Cumpri meia promessa. 3 anos de celibato total e cabelo comprido. Não há nada de romântico nisso - sofri pra dedéu. Era feliz, mas por essas escolhas ficava óbvio que me distanciava dos demais no que tangia à recém-descoberta iniciação tímida da sexualidade com o sexo oposto, e vi-me forçado a recusar uma por uma todas as garotas que me quiseram. Jamais me esquecerei do nome de cada uma delas, de seus rostos, de como elas eram bonitas, suas lágrimas ante à recusa, e quanto me machucava dizer "Não". A lição de dizer Não eu aprendi cedo. A ferro. A fogo.

Hoje eu sei que essa série de escolhas muito me ajudou, mas me custou caríssimo. Paguei com a minha própria pele e minha reputação. Se recusava mulheres só podia ser boiola (vocês não adoram este mundo determinista?). Mas, mãe, por que você tinha de me dizer aquela verdade lúcida, horrível, frankensteiniana, exatos cinco dias antes dos meus vinte anos?

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Guarda-me meu bem

Certa vez uma criança
Me disse assim baixinho
Ouça tua alma que dança
Tão mansa ao som do caminho

Saracoteia, rodeia
Te faz tão feliz, não é?
Por que você a odeia?
Anda no mundo sem fé...

Teu pé metido na meia
Não cheira nunca a chulé
Tua alma dentro do corpo
Não mostra quem você é...

Trato por tu a você
Que finge jamais me ver
Sempre entretido a ler
Tudo em que você não crê

Foges de mim, foges sim
Tu corres desesperado
Tentando alcançar o alado
Ágape do querubim

Mas o amor está na terra
Se o ler não te ilumina
Não verás o fim da mina
Rodarás como uma esfera

Saber dói, mas esclarece
Se doer, sussurre a prece
Que eu hoje te ensinei
Do universo a nossa lei

Seja bom, seja sincero
Veja como eu te quero
Sempre bem, com todo esmero
Sem vã glória, lero-lero

Sempre assim te quero bem
Vosso pai e mãe também
Se tu queres ir além
Não se faça de refém

Vitimar-se é a perdição
Olha bem tua própria mão
Só há está condição
Conhecer-se de antemão

E saber-se acompanhado
Pelo céu anil dos astros
E no balouçar dos mastros
Poder rir frente ao trovão

E durante o teu cansaço
Venha unir-se ao meu abraço
Tua mãe é minha mão
E teu pai, meu coração.

sábado, 27 de novembro de 2010

Missiva dum intelectual ocidental em crise

Para mim, é insuportável a passagem dos dias. Lembranças, que evocam lembranças... que evocam lembranças. Verdades contadas à meia boca, em sussurros, inacreditáveis, ainda que inegáveis. Mentiras hoje comungadas como verdade.

A boca enorme e hiante das passagens subterrâneas, obnóxias e cavas dos mineiros de Emile Zola. Páginas lidas no arrefecimento do vinho que restou sobre a mesa após a farta ceia de Natal. Imaginando-me em cada morte terrível que se sucede sem fim naquele livro desolador, cada desgraça relatada enquanto deitado invertido na cama, devorando suas linhas, embriagado pelo vinho, empático, humano.

Fazia coisas boas naqueles tempos com meu tempo. Com minha vida. Alguns comemoravam a passagem do ano velho para o ano novo, quero dizer: muitas pessoas no mundo todo, 2005 para 2006. Eu chorava e me mordia e suava frio de tristeza por aquelas vidas que me pareciam desperdiçadas numa labuta aviltante e inacabável nos intestinos sórdidos da terra, e pelo excesso de vinho Porto que metera sem pensar duas vezes goela abaixo. Fora-se a garrafa inteira no decorrer da madrugada. 15 anos recém completos.

Eu ainda tinha a nobre capacidade de sentir-me melancólico pela miséria alheia, porque tinha saúde, porque teria, sem dúvida, bons e longos sonhos após tanto sofrer por vidas outras. Pode-se compadecer-se muito quando se está bem. Pode-se ser solidário, compassivo, pode-se viver, ou alimentar a ilusão de viver, muitas outras vidas simultâneas. Há muito chão pela frente - é o que nos dizem - é-se novo, está-se no auge das forças e da vitalidade, no ápice da embriaguez sóbria, sente-se o coração pulsar firme e espaçado, e não há vida melhor que esta.

Ou que aquela, pois já passou. Já passou e não a vivo mais. Apaixonava-me porque cria numa espécie idealista e platônica e máxima do amor, indestrutível. Indestrutível. Anos depois, não me resta uma migalha dessas crenças enaltecedoras, até então inabaláveis. Na minha cabeça de adolescente inexperiente, o sexo era fruto do puro amor, e o puro amor era palpável, tão tocante como a vida, tão verdadeiro como aquela, o mais alto sonho tornado verdade.

Quero aquela vida sem querelas quixotescas de volta. Olhava as pessoas nos olhos e não havia quem honestamente não gostasse de mim. Nos meus olhos via-se respeito à humanidade, ao que há de melhor e mais divino em cada homem, e não os desviava jamais. No meu olhar infundia-se minha fé suprema nas palavras proferidas por Cristo: Não julgueis, e não serás julgado. Não precisava frequentar o adro da igreja para aprender na ternura de meu espírito ingênuo os mais caros ensinamentos dessa figura mais que humana, mítica, nomeada Jesus. Jesus de Nazaré, onde há luz há fé, há conhecimento e poder, poder de ser, crer, criar e viver, poder ser-se (como diria Fernando Pessoa, meu xará), isto é, ser humano no mais amplo sentido. Um leque inesgotável abria-se multicor como um pavão imponente aos meus olhos maravilhados, e a vida aparecia-me como um caminho reto em direção à amplidão da alma, suficientemente duradouro para nutri-la até o segundo que precederia o fenecimento deste corpo. Cada passo contava-se supremo rumo ao infinito, cada passo consistia no caminho inteiro.

A morte. Era um fenômeno distante, mas igualmente próximo. Passei minha adolescência figurando-a no instante seguinte, meu eterno incentivo para fazer o que houvesse de ser feito, dizer o que quer que houvesse de ser dito, sem delongas, sem preguiça, sem sensação de baixa autoestima. Outra frase atribuída a Jesus no Novo Testamento ressoava-me na cabeça: Não ajudeis os preguiçosos. Atividade era o meu lema, meu tema, meu rema. Atividade, bondade, altruísmo e amor.

Mas o que é a humanidade, mesmo? Ambição, fornicação desconexa a qualquer idealismo de amor e união, tirar proveito dos mais fracos e ignóbeis, explorar, lucrar, manipular, persuadir e dominar. Há neste mundo algum espaço, exíguo e insignificante que seja, para santos e monges fora de seu monastério e eremitério? É uma questão que anseio por responder positivamente não por mim mesmo, mas por parte de minha tia pia e freira, a quem amo tanto. Quiçá o consiga assim que voltar a olhar nos olhos os cegos, os injustos, os aflitos, os sacanas e os pobres d'alma que me rodeiam. Gente infeliz que crê na permanência e só existência do corpo, uma tolice sem tamanho, mas aceita como um amém. Falsa hóstia boca adentro.

Olho ao redor, olho-me ao redor, e já não desejo que meus olhos vejam absolutamente nada mais. Quero paz, mas tenho guerra, almejo o céu mas prendo-me à terra, o real me desterra, e eu fora de mim nem suspeito onde estou. O etéreo foge-me entre os dedos e fenece, desacordada, minha esperança na boa-aventurança da vida humana sobre a Terra. Há males que vêm para o bem, mas eu quero o além, e não viver me torturando na cotidiana autoflagelação desta pele sensível, queimada pelo sol, povoada por veias e decisão latejantes, embora incapaz de tatear este mundo nauseabundo em sua temível integridade, o que me rememora sempre os terrores que esta pútrida terra testemunhou e testemunha de forma contínua, porque não deixa de ser a mesma, habitada pelos mesmos seres mesquinhos e egoístas de séculos, senão milênios e decênios atrás.

Só há uma coisa ainda a ser dita. Creio na humanidade. Creio no elemento humano. Seria insânia descrer até nisso. Não obstante tudo o que eu disse entre meus dentes rilhados até aqui, creio solenemente em ti, e de ti tiro a imbatível crença abençoada em mim e, por natural extensão, em todos nós. Somos farinha do mesmo saco vazado. Pois não importa onde estamos, o único ponto relevante é o que somos, verdadeiramente somos e nos compremetemos a ser.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Triz da Felicidade

Não que a vaca não tivesse razão: ela tinha. A Natureza tem lábios sábios e eu não ousaria contrariá-los. Eu olho em volta e vejo o quê? Vacas e mais vacas Nelore, e eu preciso tomar meu banho. O sol já não está mais a pino, a tarde não tarda por acabar, e é hora de aproveitar a água morna que o sol, este lindo sol do norte de Minas Gerais, fez o favor de acalentar, deixá-la tépida e imensamente apropriada ao banho humano. Ok, sem mais floreios e filosofias baratas. Eu estou na roça, chinelo havaianas metido na terra fofa adubada naturalmente pelo inodoro cocô que o gado distribui à vontade. É gostoso pisar descalço e afundar bem fundo os pés, sabe. Mas meu pé está suado e eu quero tomar banho.

Eu não sou obcecado por banhos, é bom esclarecer. Também não vou negar que me é das coisas mais agradáveis da vida estar sob o chuveiro, tomar uns dois ou três banhos frios quando o dia está fazendo 35-40ºC na sombra. É maravilhoso ver, sentir, ouvir, tocar, degustar e cheirar o jato de água encanada jorrando em meu corpo nu. Se há erotismo nisso, eu não sei. Sou um cara ingênuo, e com um faro bem apurado quando o assunto são todas as coisas boas e baratas da vida. São as mais duradouras e as mais plenamente felizes. Falar com uma criança, cheirar uma flor, escutar a canção dos pássaros. Meu tio-avô, tão querido mas já falecido, costumava dizer logo que saía do banho diário por estas terras: Só tem uma coisa melhor que um banho. Sabe qual é? Do-is banhos!

Faço questão de concordar com ele, por mais que ele não possa mais me escutar. Quando ele falava isso eu era muito pequeno pra entender, e, creio eu, nunca cheguei a presenciar. Agora já é tarde para desejar escutar sua voz novamente. Quem me disse que ele falava isso foi meu pai, de forma que essa citação muito salutar sobre banhos, e a higiene pessoal em geral, é de segunda mão, meus caros leitores. Mas meu pai é uma fonte preciosamente confiável, deixa comigo. Voltemos sem mais volteios agora à essência desta minha história, que sou eu na roça do meu tio (irmão mais velho do meu pai), no começo do fim da tarde, a 30km de uma cidadezinha encantada chamada Bocaiuva, no coração do Norte do estado de Minas Gerais.

Eu estou suado, a roupa está pregando, e o banho neste momento me parece a coisa mais inteligente e simples e proveitosa do mundo. Ma-as... não é tão simples como parece, chegar lá. Por um motivo não tão muito simples: eu tenho medo de vacas. E, para ser completamente honesto sobre ser um cagão (como se diz por estas bandas, e não é gíria dos mais novos, como se poderia pensar), digamos que esse medo meu se estende a todos os animais maiores que eu. Resumindo, eu não tenho medo de pit bulls. Sei que bastaria dar-lhes um chute muito bem dado e acertado que qualquer antipatia inicial estaria naturalmente terminada. Quer dizer, a vida do pobre cãozito estaria terminada, e a minha justamente re-começando. E o mundo continuaria a girar como se nada houvesse acontecido. Um acerto de contas com um cão que tenta - sem sucesso - dar cabo de sua vida é um assunto demasiado local para deslocar o eixo do planeta ou algo semelhantemente catastrófico para o restante da raça humana. Pode ter faltado um bocado de humanidade da parte de quem findou a vida do bichinho, mas não entremos nessa discussão agora.

Eu tomei toda a bravura do meu peito, inflei as narinas e comecei a gritar e gesticular, pincelando a cena com um toque decisivo e cinematográfico, para embelezar. Uma mãozada de firmeza jamais é demais. Ôoo, Ôoo, Ôoo, Ôoo... Êei, Êei, Êei, Êei...! E as vacas se dispersavam. Uma por uma menos uma. Vaca dum preto brabo, com dois chifres curtos e grossos encimando a cabeçorra, ela a uns doze passos de mim. E eu pensei: ... ... ... ... bom, é melhor não revelar o que me atravessou a cuca vazia naquele instante. Mas assumamos que havia uma poeirinha hostil no ar, como nos filmes macarrônicos de faroeste americano, e esse clima estava mesmo é menosprezando o meu banho e colocando a Mãe Natureza diretamente contra a melhor e menos ambiciosa das intenções humanas num dia de calor.

Minha ducha de água fria estava sendo contestada e prorrogada pela vaca arredia, que permanecia deitada folgada na terra e ruminando, e me encarando com olhos bodeados. Uns olhos... ... e quem, em-no-me-de-Deus, abençoou esses bichos maiores que nós com olhos mais humanos que os nossos? Você já se perguntou isso ao acariciar o papo do cavalo que você iria montar?

Bom, terei de apelar. Lembrei o modo como meu tio afastava as resilientes quando elas se punham de manha, assim de má vontade e corpo mole de nos obedecer. Apanhei uns tocos de pedra no chão e atirei-os perto da vaca, e ela matutando o que fazer, olhando-me como um estranho que houvesse adentrado sem permissão sua sacra propriedade. Eita, vaca indiana orgulhosa. Imagino, ainda na minha ingenuidade, que haja olhares assassinos sutilmente mais afáveis que aquele que ela me entregou de bandeja antes de ser pôr de pé. Ixe, pôs-se, pode-se afirmar, de-ci-si-va-men-te de pé. Bufou. As pedras restantes caíram da minha mão em um movimento de abrir e fechar dos dedos inconsciente. Com uma das patas dianteiras arrastou a terra logo debaixo. Eu olhei com o rabo do olho para a esquerda e para a direita, paralisado, procurando não-sei-quê. Mais uma vez, e mais firmemente, eu diria F-A-T-A-L-M-E-N-T-E, ela repuxou irritada o torrão que restava debaixo de si. Eu desta vez não pensei em nada. Para os lados, ela me pegaria na certa, bem, e para trás seria a senhora desonra correr o risco de ter um par de chifres invadindo meu território proibido, mas era a única alternativa.

Desta feita ela soltou um mugido que parecia saído das páginas fresquinhas de Revolução dos Bichos, um mugido que, por seu terror bélico e tom monstruoso, me eriçou o pelo, o cabelo e quanto mais houvesse direito. Foi aí que eu percebi minha burrada. Ela estava fazendo tudo aquilo porque estava com seu bezerrinho do lado. Xi, Maria, humano atoleimado. A cabeça da bicha baixou, eu ouvi as passadas galopantes dela atrás de mim, escutei o arfar se aproximando, meti-me por entre o vão da cerca, a cerca limítrofe entre vida e morte. Segura arame, tira pé, passa pé, tira braço, passa braço, cabeça e opa! Chifres e cabeça amontoando-se no exato milímetro donde eu escapara numa fração de segundo atrás, eu do outro lado com um riso bobo e o coração literalmente na goela, a tremedeira, o suor frio na espinha, bufei em alívio. Hora mais errada, impossível. Valha-me Deus e os santos daimes d'universo que havia três bezerros graúdos justo do lado seguro da cerca, que me salvou mas me pôs em outra! Batata quente atazanada! Eles, não me espanto, tomaram partido da parente enfurecida e se lançaram em trio sobre mim!

Dá-lhe sebo na canela, Zé Ruela! Sorte a minha que tinha um cercado alto de troncos de madeira postos na horizontal, dentro do qual meu tio tira o leite das vacas que parem, e lá pra cima, lá vou eu! Esbaforido, sem saber como chegara ali tão alto dum supetão, uma única havaiana sobrevivente - a outra virou butim de guerra para os quadrúpedes -, a camiseta regata empapada, fedendo a bode bigodudo e beiçudo e o shorts rasgado da escaramuça, eu fiquei ali. Embasbacado, lambendo os lábios besuntados por um suor salgado e bruto que só a luta ou fuga pela sobrevivência sabe produzir. Uma perna minha bamboleando mole e sem forças para cada lado do santo pau, o mais alto do amurado. Ora me deitando, ora me erguendo, deitava de novo, impressionado, mistificado... zureta e zonzo e sem um zás na vista zarolha de adranalina... não xinguei nem vaca nem a mim mesmo, nem a deus pai, filho, espírito santo, buda, maomé, nem a ninguém, amém seja, amém... quer dizer que, por um mero triz, eu por pouco deixei de ser feliz. Um triz, o que é um triz? É, meus amigos, tudo o que nos faz feliz.

sábado, 13 de novembro de 2010

E que comece outra vida

Infinitude - Dimitriy Polyakov

O que é um homem sozinho quando a doença o abate? O que é um homem só quando o inominável o atormenta? O que é um homem solitário quando suas forças não lhe valem mais? O que dizer da solidão do albatroz sobrevoando o cais, o abismo inenxergável entre terra e mar, o borbulhar das gotas dispersas da chuva, da chuva chacoalhada pelo vento...

O que são esses instantes todos, imesuráveis, incontáveis, que formam nossa vida? Parece-me tão pequena e distante do universo ao ver-me moribundo dia a dia. Sonho coisas terríveis mas não posso fazer nada, senão achá-las fascinantes - em sua grandeza, imaterialidade. Há quem chame de pesadelo o que nos assusta nas horas ermas da noite, fazendo-nos transpirar nos lençóis, e gritar em desespero e despertar transido de medo ao som dos próprios berros.

Eu chamo de iluminação. Passado o pavor, é claro. Nas trevas da escuridão do meu quarto, eu vejo a luz. Não a luz do dia, sagrada seja, mas a luz da minha consciência - terrivelmente alquebrada, em frangalhos, ainda que unida aqui e ali por fiozinhos microscópicos e cambaleantes. Ontem mesmo tive um sonho horroroso, e pasei o dia a tentar escondê-lo de mim mesmo, por mais que o contasse a minha mãe, meu irmão. Sempre sucede assim - primeiro o espanto, depois o encanto, e então o olvido.

Há um mendigo que transita pelo meu bairro e o conheço de vista há anos. Faz bem uns dez anos que o vejo: sempre de chinelo, os pés nus, a cabeça calva e com cabelos brancos, o nariz avantajado, adunco, tez branca. Mais que a minha. Às vezes está em pé, às vezes agachado à entrada de uma loja fechada, às vezes com uma bíblia preta metida nas mãos, aberta, ou debaixo do braço, fechada. Curioso observar aquele que nos vê apenas como mais um. Para ele eu sou um simples transeunte. Mas para mim, ele é a exceção, e se eu fosse um pintor, saberia esboçá-lo como ninguém. Até suas expressões faciais cravaram-se em mim. Curioso, não?

Pois no sonho noturno de ontem esse homem estava na plataforma de trem. Ao longe via-se o trem de passageiros chegando, e e ele inusitamente saltou sobre os trilhos. O trem não demoraria a vir sobre ele, o que me deixou perplexo, meus olhos transfixos em sua figura que deixaria de ter vida em questão de segundos. A aproximação da morte, inevitável, inadiável, é algo realmente terrível de se mirar. Mas nossos olhos prendem-se aos últimos detalhes da vida daquele que decerto deixará de viver, mesmo não havendo nada que possamos fazer. É de uma morbidez insuportável.

Justamente antes do trem passar por cima dele, eu pude vê-lo por inteiro, de frente. Esse senhor abriu seus braços, soergueu seu queixo pontudo e sorriu celeste, majestoso. Era o riso de um possesso, de quem já sofreu de tudo no mundo e mostra-nos como superar as tragédias altivo, entregue de alma e corpo que só a ele soía entender. É preciso ter muito mais que colhões ou vulgar destemor para fazer um tal ato - necessita-se ser dono de si, e ter um objetivo ulterior a esta vida. É um exercício solene de fé. Estar e estar-se presente no presente, sem mais nem menos. Eu tenho tudo o que esse homem não tem: casa, dinheiro, amigos, colegas, um conjunto enorme de conhecidos, um amor terreno para viver - o amor à mulher e da mulher que eu amo e me ama. E tendo tudo isso, perto desse último ato dele, eu não sou absolutamente nada. Nadinha. Necas.

Sou um completo covarde no que tange ao seguir vivendo, não importa por que, por quem, na ignorância ou na sabedoria, no puro egoísmo ou na solidariedade. A sórdida irrelevância da inércia preguiçosa me abraça todas as manhãs e me beija com seu hálito sonífero, anestésico. Permaneço o resto do dia acordado, mas indolente, caprichoso, um fresco, um alguém que jamais dá 100% de si. Um incompleto sem anseio algum por preencher-se. Abominável, mas tão-só similar a 99% dos meus semelhantes...

Meu lema até hoje tem sido seguir vivendo até que um dia me matem, ou eu morra em decorrência de algum acidente, ou doença, ou velhice, ou qualquer outra coisa. Insanidade, provavelmente.

Esse último momento foi divino. Abrir os braços e sorrir supremo ante à morte iminente é algo inaudito, a não ser que consideremos mais uma vez Mohandas Karamchand Gandhi, o Gandhi-ji, o Mahatma, a grande alma. Após alvejado num repente por projéteis à queima-roupa, aos 78 anos de idade e macérrimo de seus religiosos jejuns, pôde ainda resgatar as forças que lhe restavam para evocar o nome sacro de Deus e conceder por essa santa via o perdão ao seu carrasco - sem rosto, sem nome, sem passado e sem futuro. Nem a morte, parece, pega o homem que viveu uma vida frugal e de sacrifícios de surpresa. Nem mesmo a derrocada final deste corpo é vista com maus olhos por sua alma radiante. Fiat lux.

Mas de um mendigo, supostametne como outro qualquer, que habita uma das maiores metrópoles do mundo, o que se poderia esperar? Certamente não que tivesse a audácia de findar sua vida numa iniciativa de martírio sublime. Certamente não isso. Suicidar-se de olhos cerrados, batendo os dentes, trepidando, desesperado, arrependido no meio do ato, com todas as razões e desrazões possíveis do mundo ou extra-mundo, com lágrimas copiosas aos olhos, matar-se pouco a pouco dia a dia e perder lentamente o interesse em viver, na vivacidade, na ação e na transformação e na mudança, é uma coisa. Já entregar-se de corpo e alma à morte com os braços abertos em cruz e um sorriso digno de Jesus é outra. São formas tão distintas como uma pedra e uma flor. Bárbaro seria igualá-las.

O sonho não acabou aí, mas a estória sim. O que haveria mais para contar? A minha angústia naquele instante ante a inevitabilidade da morte de todos que nos são mais caros nesta terra - e, surpresa! - que a morte de um sujeito mendicante naquele momento tenha me doído mais fundo no imo que a morte súbita de um dos meus amigos de adolescência? Sério, o que haveria mais para contar quando se alcança este ponto inenarrável? Acaba aqui um sonho, e nasce um mártir diferente de sua estirpe.

Pela liberdade do espírito humano. Ponto final.

domingo, 24 de outubro de 2010

Todo Dia é Dia

Todo dia nascem flores
E crianças e amores
Nessas águas de Açores
Por isso, meu bem, não chores.

Todo dia é dia ainda
De te ver assim tão linda
Quando Deus feliz me brinda
Com as boas boas-vindas

Sonho contigo, e comigo
Tu sempre sonhas também
Sempre serei teu amigo
Sempre serás o meu bem

E em meus passos te sigo
E vejo-me em teu umbigo
Onde contigo me ligo
Somos gêmeos não nascidos

Religados pelo acaso
Um amor sem dor sem prazo
Há quem faça pouco caso
Nos amamos mesmo assim.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Que É

O que é que aconteceu
A tontura que me deu
O meu chão tornou-se o céu
Antes homem, depois Deus

Envolvido face à face
Neste vívido entrelace
Como se um só bastasse
O nó uno nos atasse

Aquele que sou, não é
O todo composto em pé
Aquele que fui, será
Como o sóbrio sabiá

Piando aprumado n'árvore
Busto solene de mármore
Peito subindo e descendo
Seu pio suave crescendo

Tingindo e pintando o ar
As nuvens a dispersar
Levam leve ao meu lar
O são sopro salutar.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Pia Só o Carcará

Carne seca seca ao sol
O facão já amolado
Carne seca, seca, ao sol
Meu facão mal amolado

Se há carne sobre a mesa
Demos conta da despesa
Mas a mão segue tão tesa
Nada pode agarrar

Se há água na represa
São tempos de realeza
Mas nos mata a moleza
E a garganta a apertar...

Sobe o sol sempre tão cedo
Como se sorrise agora
Quando bate firme a hora
De amansar o meu mancebo

Meu mancebo mal nascido
Descortina a solidão
Desd'o berço destruído
Sabe quais os males são

Antes mesmo de falar
A mãe o ensina a rezar
O pai o ensina a calar
Segue quieto e seco o lar

Irrompe o choro faminto
Se há algum pão, eu minto
O menino se esgoela
O pai monta sobre a sela

Espora a besta esfaimada
Secas costelas à mostra
A seca pele o sol tosta
Racha no meio a estrada

Se vier chuva, vivemos
Caso não venha, morremos
Essa alegria nós temos
Esta tristeza dos demos

Quando é que nós perdemos
O rumo reto - a vitória
Sucumbindo à vida inglória
De viver nos esfalfando

Uma sombra quando em quando
Pois nem isto bastará
Sem palavras pra sonhar
Pia só o carcará.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Uma Duna una

Ah, os bárbaros berberes
Sobre as dunas do deserto
Camelos postos em série
Onde o Sol está tão perto

E a água tão distante
Nesta areia angustiante
Lunáticos beduínos
Entoando loucos hinos

Dez dromedários sedentos
Cem homens sob o céu pleno
Marcham ao oásis rente
Em seu passo penitente

E não é em busca d'água
Em busca do conhecer
O que todos vêm a ser
Dentre o mar que nos deságua

Confluindo vida e morte
Neste signo do mais forte
Quem virá prevalecer
Quando o dia amanhecer

Azenegues alma entregues
Beduí beduim - sim!
O teu não jamais nos segue
Vive a vida a vida em mim

Nossa cáfila descansa
Tudo quanto a alma alcança
Nosso caravançará
Fica onde a alma está

Costa à costa, mar a mar
Seco o solo, fértil lar
Dromedários, meus rosários
Contas do sacro colar

Pingentes do meu pescoço
Aparando o suor grosso
Escorrendo em minhas veias
Quando a lua já vai cheia

Cheios n'alma estamos nós.