Não que a vaca não tivesse razão: ela tinha. A Natureza tem lábios sábios e eu não ousaria contrariá-los. Eu olho em volta e vejo o quê? Vacas e mais vacas Nelore, e eu preciso tomar meu banho. O sol já não está mais a pino, a tarde não tarda por acabar, e é hora de aproveitar a água morna que o sol, este lindo sol do norte de Minas Gerais, fez o favor de acalentar, deixá-la tépida e imensamente apropriada ao banho humano. Ok, sem mais floreios e filosofias baratas. Eu estou na roça, chinelo havaianas metido na terra fofa adubada naturalmente pelo inodoro cocô que o gado distribui à vontade. É gostoso pisar descalço e afundar bem fundo os pés, sabe. Mas meu pé está suado e eu quero tomar banho.
Eu não sou obcecado por banhos, é bom esclarecer. Também não vou negar que me é das coisas mais agradáveis da vida estar sob o chuveiro, tomar uns dois ou três banhos frios quando o dia está fazendo 35-40ºC na sombra. É maravilhoso ver, sentir, ouvir, tocar, degustar e cheirar o jato de água encanada jorrando em meu corpo nu. Se há erotismo nisso, eu não sei. Sou um cara ingênuo, e com um faro bem apurado quando o assunto são todas as coisas boas e baratas da vida. São as mais duradouras e as mais plenamente felizes. Falar com uma criança, cheirar uma flor, escutar a canção dos pássaros. Meu tio-avô, tão querido mas já falecido, costumava dizer logo que saía do banho diário por estas terras: Só tem uma coisa melhor que um banho. Sabe qual é? Do-is banhos!
Faço questão de concordar com ele, por mais que ele não possa mais me escutar. Quando ele falava isso eu era muito pequeno pra entender, e, creio eu, nunca cheguei a presenciar. Agora já é tarde para desejar escutar sua voz novamente. Quem me disse que ele falava isso foi meu pai, de forma que essa citação muito salutar sobre banhos, e a higiene pessoal em geral, é de segunda mão, meus caros leitores. Mas meu pai é uma fonte preciosamente confiável, deixa comigo. Voltemos sem mais volteios agora à essência desta minha história, que sou eu na roça do meu tio (irmão mais velho do meu pai), no começo do fim da tarde, a 30km de uma cidadezinha encantada chamada Bocaiuva, no coração do Norte do estado de Minas Gerais.
Eu estou suado, a roupa está pregando, e o banho neste momento me parece a coisa mais inteligente e simples e proveitosa do mundo. Ma-as... não é tão simples como parece, chegar lá. Por um motivo não tão muito simples: eu tenho medo de vacas. E, para ser completamente honesto sobre ser um cagão (como se diz por estas bandas, e não é gíria dos mais novos, como se poderia pensar), digamos que esse medo meu se estende a todos os animais maiores que eu. Resumindo, eu não tenho medo de pit bulls. Sei que bastaria dar-lhes um chute muito bem dado e acertado que qualquer antipatia inicial estaria naturalmente terminada. Quer dizer, a vida do pobre cãozito estaria terminada, e a minha justamente re-começando. E o mundo continuaria a girar como se nada houvesse acontecido. Um acerto de contas com um cão que tenta - sem sucesso - dar cabo de sua vida é um assunto demasiado local para deslocar o eixo do planeta ou algo semelhantemente catastrófico para o restante da raça humana. Pode ter faltado um bocado de humanidade da parte de quem findou a vida do bichinho, mas não entremos nessa discussão agora.
Eu tomei toda a bravura do meu peito, inflei as narinas e comecei a gritar e gesticular, pincelando a cena com um toque decisivo e cinematográfico, para embelezar. Uma mãozada de firmeza jamais é demais. Ôoo, Ôoo, Ôoo, Ôoo... Êei, Êei, Êei, Êei...! E as vacas se dispersavam. Uma por uma menos uma. Vaca dum preto brabo, com dois chifres curtos e grossos encimando a cabeçorra, ela a uns doze passos de mim. E eu pensei: ... ... ... ... bom, é melhor não revelar o que me atravessou a cuca vazia naquele instante. Mas assumamos que havia uma poeirinha hostil no ar, como nos filmes macarrônicos de faroeste americano, e esse clima estava mesmo é menosprezando o meu banho e colocando a Mãe Natureza diretamente contra a melhor e menos ambiciosa das intenções humanas num dia de calor.
Minha ducha de água fria estava sendo contestada e prorrogada pela vaca arredia, que permanecia deitada folgada na terra e ruminando, e me encarando com olhos bodeados. Uns olhos... ... e quem, em-no-me-de-Deus, abençoou esses bichos maiores que nós com olhos mais humanos que os nossos? Você já se perguntou isso ao acariciar o papo do cavalo que você iria montar?
Bom, terei de apelar. Lembrei o modo como meu tio afastava as resilientes quando elas se punham de manha, assim de má vontade e corpo mole de nos obedecer. Apanhei uns tocos de pedra no chão e atirei-os perto da vaca, e ela matutando o que fazer, olhando-me como um estranho que houvesse adentrado sem permissão sua sacra propriedade. Eita, vaca indiana orgulhosa. Imagino, ainda na minha ingenuidade, que haja olhares assassinos sutilmente mais afáveis que aquele que ela me entregou de bandeja antes de ser pôr de pé. Ixe, pôs-se, pode-se afirmar, de-ci-si-va-men-te de pé. Bufou. As pedras restantes caíram da minha mão em um movimento de abrir e fechar dos dedos inconsciente. Com uma das patas dianteiras arrastou a terra logo debaixo. Eu olhei com o rabo do olho para a esquerda e para a direita, paralisado, procurando não-sei-quê. Mais uma vez, e mais firmemente, eu diria F-A-T-A-L-M-E-N-T-E, ela repuxou irritada o torrão que restava debaixo de si. Eu desta vez não pensei em nada. Para os lados, ela me pegaria na certa, bem, e para trás seria a senhora desonra correr o risco de ter um par de chifres invadindo meu território proibido, mas era a única alternativa.
Desta feita ela soltou um mugido que parecia saído das páginas fresquinhas de Revolução dos Bichos, um mugido que, por seu terror bélico e tom monstruoso, me eriçou o pelo, o cabelo e quanto mais houvesse direito. Foi aí que eu percebi minha burrada. Ela estava fazendo tudo aquilo porque estava com seu bezerrinho do lado. Xi, Maria, humano atoleimado. A cabeça da bicha baixou, eu ouvi as passadas galopantes dela atrás de mim, escutei o arfar se aproximando, meti-me por entre o vão da cerca, a cerca limítrofe entre vida e morte. Segura arame, tira pé, passa pé, tira braço, passa braço, cabeça e opa! Chifres e cabeça amontoando-se no exato milímetro donde eu escapara numa fração de segundo atrás, eu do outro lado com um riso bobo e o coração literalmente na goela, a tremedeira, o suor frio na espinha, bufei em alívio. Hora mais errada, impossível. Valha-me Deus e os santos daimes d'universo que havia três bezerros graúdos justo do lado seguro da cerca, que me salvou mas me pôs em outra! Batata quente atazanada! Eles, não me espanto, tomaram partido da parente enfurecida e se lançaram em trio sobre mim!
Dá-lhe sebo na canela, Zé Ruela! Sorte a minha que tinha um cercado alto de troncos de madeira postos na horizontal, dentro do qual meu tio tira o leite das vacas que parem, e lá pra cima, lá vou eu! Esbaforido, sem saber como chegara ali tão alto dum supetão, uma única havaiana sobrevivente - a outra virou butim de guerra para os quadrúpedes -, a camiseta regata empapada, fedendo a bode bigodudo e beiçudo e o shorts rasgado da escaramuça, eu fiquei ali. Embasbacado, lambendo os lábios besuntados por um suor salgado e bruto que só a luta ou fuga pela sobrevivência sabe produzir. Uma perna minha bamboleando mole e sem forças para cada lado do santo pau, o mais alto do amurado. Ora me deitando, ora me erguendo, deitava de novo, impressionado, mistificado... zureta e zonzo e sem um zás na vista zarolha de adranalina... não xinguei nem vaca nem a mim mesmo, nem a deus pai, filho, espírito santo, buda, maomé, nem a ninguém, amém seja, amém... quer dizer que, por um mero triz, eu por pouco deixei de ser feliz. Um triz, o que é um triz? É, meus amigos, tudo o que nos faz feliz.
Eu não sou obcecado por banhos, é bom esclarecer. Também não vou negar que me é das coisas mais agradáveis da vida estar sob o chuveiro, tomar uns dois ou três banhos frios quando o dia está fazendo 35-40ºC na sombra. É maravilhoso ver, sentir, ouvir, tocar, degustar e cheirar o jato de água encanada jorrando em meu corpo nu. Se há erotismo nisso, eu não sei. Sou um cara ingênuo, e com um faro bem apurado quando o assunto são todas as coisas boas e baratas da vida. São as mais duradouras e as mais plenamente felizes. Falar com uma criança, cheirar uma flor, escutar a canção dos pássaros. Meu tio-avô, tão querido mas já falecido, costumava dizer logo que saía do banho diário por estas terras: Só tem uma coisa melhor que um banho. Sabe qual é? Do-is banhos!
Faço questão de concordar com ele, por mais que ele não possa mais me escutar. Quando ele falava isso eu era muito pequeno pra entender, e, creio eu, nunca cheguei a presenciar. Agora já é tarde para desejar escutar sua voz novamente. Quem me disse que ele falava isso foi meu pai, de forma que essa citação muito salutar sobre banhos, e a higiene pessoal em geral, é de segunda mão, meus caros leitores. Mas meu pai é uma fonte preciosamente confiável, deixa comigo. Voltemos sem mais volteios agora à essência desta minha história, que sou eu na roça do meu tio (irmão mais velho do meu pai), no começo do fim da tarde, a 30km de uma cidadezinha encantada chamada Bocaiuva, no coração do Norte do estado de Minas Gerais.
Eu estou suado, a roupa está pregando, e o banho neste momento me parece a coisa mais inteligente e simples e proveitosa do mundo. Ma-as... não é tão simples como parece, chegar lá. Por um motivo não tão muito simples: eu tenho medo de vacas. E, para ser completamente honesto sobre ser um cagão (como se diz por estas bandas, e não é gíria dos mais novos, como se poderia pensar), digamos que esse medo meu se estende a todos os animais maiores que eu. Resumindo, eu não tenho medo de pit bulls. Sei que bastaria dar-lhes um chute muito bem dado e acertado que qualquer antipatia inicial estaria naturalmente terminada. Quer dizer, a vida do pobre cãozito estaria terminada, e a minha justamente re-começando. E o mundo continuaria a girar como se nada houvesse acontecido. Um acerto de contas com um cão que tenta - sem sucesso - dar cabo de sua vida é um assunto demasiado local para deslocar o eixo do planeta ou algo semelhantemente catastrófico para o restante da raça humana. Pode ter faltado um bocado de humanidade da parte de quem findou a vida do bichinho, mas não entremos nessa discussão agora.
Eu tomei toda a bravura do meu peito, inflei as narinas e comecei a gritar e gesticular, pincelando a cena com um toque decisivo e cinematográfico, para embelezar. Uma mãozada de firmeza jamais é demais. Ôoo, Ôoo, Ôoo, Ôoo... Êei, Êei, Êei, Êei...! E as vacas se dispersavam. Uma por uma menos uma. Vaca dum preto brabo, com dois chifres curtos e grossos encimando a cabeçorra, ela a uns doze passos de mim. E eu pensei: ... ... ... ... bom, é melhor não revelar o que me atravessou a cuca vazia naquele instante. Mas assumamos que havia uma poeirinha hostil no ar, como nos filmes macarrônicos de faroeste americano, e esse clima estava mesmo é menosprezando o meu banho e colocando a Mãe Natureza diretamente contra a melhor e menos ambiciosa das intenções humanas num dia de calor.
Minha ducha de água fria estava sendo contestada e prorrogada pela vaca arredia, que permanecia deitada folgada na terra e ruminando, e me encarando com olhos bodeados. Uns olhos... ... e quem, em-no-me-de-Deus, abençoou esses bichos maiores que nós com olhos mais humanos que os nossos? Você já se perguntou isso ao acariciar o papo do cavalo que você iria montar?
Bom, terei de apelar. Lembrei o modo como meu tio afastava as resilientes quando elas se punham de manha, assim de má vontade e corpo mole de nos obedecer. Apanhei uns tocos de pedra no chão e atirei-os perto da vaca, e ela matutando o que fazer, olhando-me como um estranho que houvesse adentrado sem permissão sua sacra propriedade. Eita, vaca indiana orgulhosa. Imagino, ainda na minha ingenuidade, que haja olhares assassinos sutilmente mais afáveis que aquele que ela me entregou de bandeja antes de ser pôr de pé. Ixe, pôs-se, pode-se afirmar, de-ci-si-va-men-te de pé. Bufou. As pedras restantes caíram da minha mão em um movimento de abrir e fechar dos dedos inconsciente. Com uma das patas dianteiras arrastou a terra logo debaixo. Eu olhei com o rabo do olho para a esquerda e para a direita, paralisado, procurando não-sei-quê. Mais uma vez, e mais firmemente, eu diria F-A-T-A-L-M-E-N-T-E, ela repuxou irritada o torrão que restava debaixo de si. Eu desta vez não pensei em nada. Para os lados, ela me pegaria na certa, bem, e para trás seria a senhora desonra correr o risco de ter um par de chifres invadindo meu território proibido, mas era a única alternativa.
Desta feita ela soltou um mugido que parecia saído das páginas fresquinhas de Revolução dos Bichos, um mugido que, por seu terror bélico e tom monstruoso, me eriçou o pelo, o cabelo e quanto mais houvesse direito. Foi aí que eu percebi minha burrada. Ela estava fazendo tudo aquilo porque estava com seu bezerrinho do lado. Xi, Maria, humano atoleimado. A cabeça da bicha baixou, eu ouvi as passadas galopantes dela atrás de mim, escutei o arfar se aproximando, meti-me por entre o vão da cerca, a cerca limítrofe entre vida e morte. Segura arame, tira pé, passa pé, tira braço, passa braço, cabeça e opa! Chifres e cabeça amontoando-se no exato milímetro donde eu escapara numa fração de segundo atrás, eu do outro lado com um riso bobo e o coração literalmente na goela, a tremedeira, o suor frio na espinha, bufei em alívio. Hora mais errada, impossível. Valha-me Deus e os santos daimes d'universo que havia três bezerros graúdos justo do lado seguro da cerca, que me salvou mas me pôs em outra! Batata quente atazanada! Eles, não me espanto, tomaram partido da parente enfurecida e se lançaram em trio sobre mim!
Dá-lhe sebo na canela, Zé Ruela! Sorte a minha que tinha um cercado alto de troncos de madeira postos na horizontal, dentro do qual meu tio tira o leite das vacas que parem, e lá pra cima, lá vou eu! Esbaforido, sem saber como chegara ali tão alto dum supetão, uma única havaiana sobrevivente - a outra virou butim de guerra para os quadrúpedes -, a camiseta regata empapada, fedendo a bode bigodudo e beiçudo e o shorts rasgado da escaramuça, eu fiquei ali. Embasbacado, lambendo os lábios besuntados por um suor salgado e bruto que só a luta ou fuga pela sobrevivência sabe produzir. Uma perna minha bamboleando mole e sem forças para cada lado do santo pau, o mais alto do amurado. Ora me deitando, ora me erguendo, deitava de novo, impressionado, mistificado... zureta e zonzo e sem um zás na vista zarolha de adranalina... não xinguei nem vaca nem a mim mesmo, nem a deus pai, filho, espírito santo, buda, maomé, nem a ninguém, amém seja, amém... quer dizer que, por um mero triz, eu por pouco deixei de ser feliz. Um triz, o que é um triz? É, meus amigos, tudo o que nos faz feliz.
4 comentários:
Cara, ainda bem que sobrou algo de você para contar essa história! Ri muito, principalmente do "uma única havaiana sobrevivente - a outra virou butim de guerra para os quadrúpedes". Que saudades do chuveiro civilizado de casa, hahahaha! O pior é que a vaca tava no direito dela.
Abraços!
O que me espanta é que até mesmo sobreviver é puramente fruto do acidente. Pode acontecer, como pode não acontecer. Se um pé meu ou uma mão houvessem enganchado, eu nem teria o que relatar.
Nossa vida é frágil demais!
Oi Fernando!
É bom dividir, mesmo que desgraças.
Mas, salvaram-se todos, menos a havaiana.
Se der, me visite.Dou umas rabiscadas.
abs.
Berzé
http://berzehq.blogspot.com/
Olá, Berzé!
Visitei teu blogue, já, e me tornei seguidor.
Ter me saído vivo e bem foi uma grande 'graça', creio eu. 'Desgraça' seria se houvesse me ferido de alguma maneira, ou coisa pior, né? ;D
Abração!
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