sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Dupla Existência

João

A noite sobreveio em João
Consigo trouxe o germe da reflexão
João não mais vivia
Procrastinava todo santo dia

Deixar de lado a prosa
O olvido à poesia...
Não, João não mais vivia.

O diálogo ficou quebrado,
Seu raciocínio, fragmentado...
João, João, por que tão atormentado?

Palavras lhe fugiam
O ar lhe escapava...
Ai, que nova vida era essa,
Que em si desabrochava?

Penava, pensava, nada saía
Era tudo, menos monotonia
Poder sentir a lareira crepitando...
Eram somente sonhos o transtornando?

Será que a trilha errada,
Ou mesmo o fim da estrada?

João, João...
Quem somos nós?

João, João...
Não estás a sós

[Se o desafio é teu,
O desafio é nosso.]

***
sans-titre

Away, away, away... how far away can we stay?

It's the price we pay for making money like hay

Life is a wonderful thing. There's time to lose and time to win.
What's losing and what's winning only we can aver
As we are just lone outcasts in a bygone tender
Up and down the river we go
Time is ripe to cure our soul
Achille's heel...
Prejudices only we can feel
Wounds only we can heal

Anytime we choose
It's always up to us
Life is to amuse
Beware the wayward bus...

[Campos do Jordão, a neblina e o frio não foram em vão]

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Tenho um sonho, sim

Tenho esperança, sim. Talvez a esperança de um náufrago, ou a esperança de um negro condenado às galés. Mas ainda assim a tenho em mãos. Ou na mente. Não sei ao certo.

Podem ser meus últimos suspiros, os ulteriores ululos da coruja que estou a ouvir. Mas já serão olvidados. Há muito o que gravar, há muito o que lembrar, há. Só não há espaço para tanta alegria em um peito recoberto de mágoas e assuntos mal-resolvidos. Esta fuligem funesta que se assenta em meu corpo, em minha testa, em tudo que a vida atesta.

Não. Sim. Talvez. Palavras que definem a realidade ou a ficção. Mas o que são todas essas palavras, sem um toque de ação?

Seriam nada? Seriam tudo? Seriam pólos antagônicos?

Não se pode viver sem pagar.

Talvez não em moeda, mas pagamos.

Sorte nossa. Não daríamos valor a coisas alguma se viesse tudo de graça e de bom grado.

O ser humano talvez tenha nascido para aprender que nem sempre será amado como gostaria.

E que quase nunca acordará com o anseio de amar seu próximo como aquele esperaria.

Homo... homini... lupus...!

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Aprender a discernir

Recebi um email, com o seguinte comentário sobre a situação palestino-isralense:

Desagradável paralelismo... ...há dois detalhes para 'pior' e 'melhor'... (1) Israel é uma democracia... não uma ditadura que escolheu um povo como inimigo universal... assim o que fazem é por decisão da maioria... sem as desculpas das mistificações da propaganda nazista... (2) por ser uma democracia, por ter sua base original no "Livro", pelo seu próprio passado e pela sua força presente... ainda pode haver esperança que a coragem para superar o 'viver pela espada' possa prevalecer... e a coragem para 'oferecer a outra face' e 'dar o manto' e 'caminhar' com quem lhe pede... também se manifeste... afinal, ainda que pareça apenas um ideário cristão... esses preceitos também fazem parte da raiz mais genuína da fé de Israel, Jesus apenas sublinhou essa parte e exigiu que se vivesse pelo espírito da Lei e não pelos detalhes jurídicos que acabaram criando centenas de páginas de comentários para talmudistas. Apenas essa 'conversão' pode superar o que se vê em casa... não se trata de ingenuidade romântica mas de sabedoria prática: o exemplo está na própria Alemanha pós-guerra onde o tratamento humano, tão diferente dos termos aplicados após a Primeira Guerra Mundial, preservaram o melhor da cultura germânica... É tempo dos israelenses aprenderem a se?gunda parte da lição... ou se esquecem que os palestinos serão capazes de algo muito maior que o levante do gueto de Varsóvia?

Minha resposta segue:

Bem, por tudo que Israel faz, dificilmente diria que é uma democracia. Está mais para um governo totalitário e expansionista disfarçado de democracia, que é o que o mundo aceita. Como o lobo vestido de ovelha, a clamar que "nações árabes o cercam", e que "se vê constantemente ameaçado". Israel tem o exército mais potente do mundo, armado e financiado pelos Estados Unidos da América. Israel é governado por sionistas, que muitas vezes desprezam os próprios judeus e as passeatas que ocorrem dentro do próprio país para uma solução de dois estados e a libertação dos presos inocentes palestinos (aos milhares, em prisões não documentadas, sofrendo abusos inenarráveis diariamente).

Se fosse somente isso. Israel vem massacrando os palestinos desde o início de sua existência. Uma existência falsa, porque os palestinos habitavam aquelas terras muito antes. Instalaram-se no território que lhes foi dispensado pelas potências econômico-mundiais daquela época, Inglaterra as encabeçando, e não pararam até hoje de tomar para si terras alheias. Usurpar a liberdade, dominar, estuprar, trucidar. Sem piedade. Mais de 400 vilarejos e aldeias palestinas foram varridos do mapa nos primeiros anos. Mais de 400!

Você tem idéia do que é isso? Genocídio. O extermínio deliberado de um povo. Não é à toa que vários grupos israelenses tenham se formado, defendendo um processo pacífico de se solucionar esse assassínio de um povo sem terra. Mas um povo desterrado, isto sim, porque possuía belas plantações de olivas antes do implante de um povo estrangeiro e cujos ascendentes familiares nada têm a ver com os habitantes precedentes daquela região. Ou seja: uma terra que não deveria estar sob as suas posses.

Não, um genocídio só tem solução quando as vozes se erguem e são feitas sentir. A tendência dos fatos atuais é uma eclosão vulcânica, e não temos muito o que esperar. Mais e mais palestinos, crianças, velhos, mulheres grávidas, são mortos sem o menor resqüício de remorso, ou sombra de dúvida.

É tudo muito fácil, e tudo muito desumano. É como jogar um jogo, e os soldados israelenses são amestrados como cães, para farejarem suas vítimas. Devem inclusive competir quantos matam. Devem achar que estão jogando Doom. Que são as forças supremas do Bem, contra as onipresentes do Mal. Devem achar muitas coisas. Todas mentirosas e caluniosas.

Tudo em que creem uma grande pilha de esterco. Fedorenta, asquerosa, terrível. Terrível para as pessoas que têm alma e que não estão no poder, e que veem o que os psicopatas que estão no poder estão fazendo: jogando povo contra povo, numa colisão de forças que anulará a civilização.

O caos é imposto de cima para baixo - e vê-lo é somente o primeiro passo. O segundo é escrever sobre isso, divulgar.

Sem meias-verdades, como uma "promessa de esperança". Não há esperança alguma enquanto houver psicopatas nos governando, e revirando as concepções que nos tornam essencialmente humanos. O mais notório dos quais, para os brasileiros, Maluf: "Estupra mas não mata. Rouba mas faz."

Para ele, está muito bem. Mas e para nós que vemos os psicopatas no poder?

Sobre psicopatia, o site mais sério, didático e instrutivo sobre o tema: http://www.cassiopaea.org/cass/site_map_qfg.htm [ver o tópico "Studies in Psychopathy", descendo, no canto esquerdo da página]




E falando em esperança, republico a gravação musical abaixo, que me emocionou pela profundidade de suas palavras - e de todo o processo de composição que permitiu a este artista palestino, Doc Jazz, expor tão bem o que está acontecendo:


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Verdade por Trás dos Bastidores

Estes vídeos, em conjunto com a postagem anterior, formam um díptico - duas partes gerando o uno.

Na curva do rio

As águas passavam correndo
Mas cada fio d'água cristalino
Turvou-se no meio do caminho:
Reflexo de inocentes morrendo.

Torpes assassinos desembainhavam
As armas do poder inquestionável
Nossas perdidas crianças miravam
O princípio d'um genocídio infindável

Sobre a pedra embaciada, à luz solar
Sentamos, pois, chorando até o luar
Percebemos que o retorno não seria breve
E nenhuma de nossas almas voltaria leve

De todas as paisagens naquele dia avistadas
Discernimos nossas ermas e futuras jornadas
Haveríamos de bater o pé naquela penedia
E nada neste mundo nossa vida mudaria

Protestos em vão fizeram, e foram ignorados
Nossos assassinos seguirão impunemente calados
E nossas vidas ninguém, por elas ninguém clamará
Uma morte à estilingada... ignóbil Sabiá.

Cantamos e louvamos nossas tradições
No coração carregamos tais canções
Que afastam este mal diário: o medo
O povo árabe guiado ao degredo.

Do degredo ao olvido
[E d'olvido ao degredo]
Este tem sido o nosso carma
Nosso filhos mal têm dormido
Já não portamos qualquer arma
[Que vos faça frente, polícia do Karma]

Ninguém sai de casa aterrado co'a iminente bala
Que escola ensinará a renúncia ao trauma?
Eletricidade, escolas, hospitais, alunos na sala...
Perde-se tudo e só nos resta a alma...

Que fardo é este que arrastamos?
Serão nossos infantes ensacados
No tácito envoltório negro...
Negro com'a noite...
[Sacrificados sob o açoite]

Pernoitou o soldado tartamudo, a dizer:
"Nós usamos teus netos como escudo, prazer!"
Suas gargalhadas ribombando as reentrâncias da Terra
Seu hálito asqueroso fedendo a trucidamento, não guerra...

O rifle apontado ao peito do manifestante
Uma absurda indiferença à vida, gritante
Pensar, meu amigo, que viver ou morrer decide-se no instante
Quando vis e débeis mentes calculam se é civil ou militante

Nada mais faz sentido, o mundo está virado
[caralho a quatro]
"Eu mato, espanco, piso nas leis e as conspurco"
"Ao invadir a Palestina, eu ponho o mundo a torto"
"Já 'quele árabe tenta defender suas terras, assim é morto..."

Faltava somente ser esquartejado... se não foi!
Não, algo neste mundo está errado... quando mata-se um humano como mata-se um boi.
Se houve esplendor em anos dourados de outrora, todo o brilho já há muito se foi.
O Rei está pelado, grotesco, à tua frente
E mesmo ao vê-lo, tu segues descrente.

É tu virares o rosto
Que o rei toma gosto
Hora do caos imposto

O Rei ri com extrema vontade
É assim que violará a Liberdade
Agora ele rolará, gargalhando aos montes
Violentando e anuviando nossos horizontes
O futuro da humanidade.

Sem conhecimento, liberdade é palavra vã.
Não aplicar o que se sabe, ilusão...
Não passa de uma vida coberta de picumã.
Dois pássaros escapando, por entre os dedos da mão.

Magritte - Le mal du pays (1940)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Spartacus!


Das cinzas ele veio,
De fendas insondáveis irrompeu,
Cindindo a Terra ao meio,
Retornou aonde morreu.

Espártaco em mãos brandia
O gládio com que lutou
Tanta pompa jamais faria
Quem o crucificou

Maculado de sangue e traição,
Não foi por vendeta sua volta
Clamou da plebe toda atenção
Dispensando qualquer escolta

"Venho cá, amigos, vos dizer
Que a coragem ainda existe!
Assim que o Sol renascer
Não quero ver um de vós triste!"

"Vejam que belo é este mundo!
Corrupto por vis indivíduos, sim,
Mas há de ser limpo, este chão imundo,
Basta lembrar-vos de mim"

"Sacrifiquei minha vida por idear
A liberdade de uma raça agrilhoada
Somos nós, gladiadores, que morremos
Para divertir, debalde, ditadores e demos!"

"E que direitos temos nós?
E o que disseram vós?
Ante nossa morte ignota, no palco da guerra
Artifício do Pão e Circo
Engendrado para distrair-vos
Com vidas e almas alheias..."

"Por que ficam calados, homens?
Será que não veem nosso fado?
O guerreiro luta ferido, cansado,
Para morrer escravo e dilacerado
Pela crueza inumana que paira no coliseu
Monumento erigido pelo mais torpe Ateu!"

"O Anticristo o pôs em pé
Para que nos lacerássemos vivos
Enquanto ri toda a claque, ignorante,
Sedenta pela dor lancinante
Que nos devora:
Edaz boca leonina!"

"Dia-a-dia nos pisoteia e domina
Faz da vida de cada uma sina
Mas não somos diferentes, não!
Somos também fruto da Criação!"

"Se é bela a Natureza e o Desenho bíblico
Somos belos, ora, pois somos humanos!
Somos teus irmãos, homens insanos!
O Karma que rege o mundo é cíclico!"

"E vós haveis de reencarnar sob nossa pele
Aturando o suor, o maltrato, a lâmina que fere
A fome, a extenuação, o medo da morte
Tua própria vida ... lançada ... à sorte...!"

(foto: Kirk Douglas no papel de Espártaco, em filme homônimo ["Spartacus", 1960], dirigido por Stanley Kubrick. Excelente obra cinematográfica. O anseio de um homem íntegro, por justiça e igualdade, pode sublevar uma sociedade. Basta ele se lembrar de que nasceu da mesma forma que seus opressores.)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A Voz Solitária do Homem (1987)


Comovente, esta poética obra cinematográfica de Alexander Sokúrov, baseada no livro do escritor soviético Andrei Platonov. Assistindo, não pude deixar de pensar que o filme parecia muito mais antigo. Combinando uma trilha sonora de arrepiar os pêlos, com uma fotografia que eu só poderia caracterizar como poética, é uma película que merece ser vista com a mesma atenção que se lê Rilke, ou Carlos Drummond de Andrade, ou qualquer outro grande pensador que fez das palavras mais do que um mero canal de comunicação.

Como julgar se um filme é bom? Certamente quando ele te transporta a outros tempos. A partir desse mágico instante, deixa de ser meramente um apanhado contínuo de imagens, para então compor algo muito mais grandioso e holístico: um retrato integral da vida. Pois não importa que aspecto se aborde, este é um campo infinito. Se bem que A Voz Solitária do Homem pega a vida por seu viés decadente, e nos escancara uma degeneração dos tempos e dos valores.

De seu casamento conflituoso com a mulher que mais o amava, a encantadora Lyuba, podemos perceber que algo não vai bem. O pano de fundo, que a história apresentada na tela não nos conta, é a participação de Nikita na guerra civil soviética, que levou à vitória do Exército Vermelho, criado por Leo Trotsky, posteriormente assassinado em exílio no México. As cicatrizes da alma demoram a fechar, ou mesmo remanescem abertas, como no caso desse protagonista arrasado por suas experiências, que, obviamente, devem ter sido das mais traumáticas.

Sob esse ponto de vista abarcador, o filme se prova um libelo contra a inumanidade da guerra. Pois, não importa que lado vença, os derrotados sempre somos nós. Deste lado ou d'outro, somos os traumatizados, somos os que fracassaram - em solucionar de qualquer outra maneira o que viria a ser um assassínio em massa de seres humanos despojados como peões num vil e reles tabuleiro de xadrez. Portanto, o filme vem a mostrar que somos mais do que isso: somos mais do que braços portadores de armas, braços abundantes que se repõem no calor da batalha.

E é exatamente por não mostrar uma cena sequer da guerra, que o filme pode mostrar sua face mais dolorosa: sem um ferimento no corpo, Nikita há de arcar com todo o sofrimento e a angústia moral por que passou, que entreviu, e que vivenciou. Um homem atormentado pela crua e irrevogável memória torna-se uma alma destroçada. Todos os cacos, de seu ser, espalhados pelo sórdido chão, são virtualmente impossíveis de serem recompostos no espelho íntegro que uma vez o foram. Fragmentos do Real... e de onde virão os homens visionários, se lhes impõem semelhante destruição em tão tenra idade?

Homens envelhecidos, e de fato embrutecidos, por uma guerra que não lhes diz respeito. Não lhes diz respeito, porque tal embate constituí um desvirtuamento das razões de ser do Homem. E quais são elas, estamos nós por descobrir. Mas tal possibilidade nos é extirpada assim que se engendra uma guerra. Não viemos ao mundo, pois, para dele tirar outros que a ele vieram da mesma maneira que nós. De forma alguma fomos gerados por nossos pais com o macabro intuito de banhá-la a sangue e guerra.

Andrei Platonov (nascido em 1899 e falecido em 1951), foi um dos precursores do existencialismo. Jean-Paul Sartre e Camus, apesar das dissensões teóricas que mantiveram em vida, figuram dentre os principais expoentes dessa "corrente literária", ou desse "movimento". O Estrangeiro, um escrito primordial de Albert Camus, invoca uma profunda reflexão sobre o que é, fundalmentalmente, essa corrente de pensamento.

O homem existe, antes sequer de possuir a consciência de ser? Ou possui a consciência de que é, antes mesmo de existir?

Não sei por qual motivo, essa indagação resultou em mim após a leitura de O Estado de Sítio, A Peste e O Estrangeiro, de Camus.

Talvez não haja resposta. Ou, só venha a descobri-la quando já não estiver mais por estas bandas.


Someday, somewhere, we'll all seek... greener pastures.

Will we ever find them?
Will we ever find the answers to our undying inner questions?
Or we'll enmesh ourselves - again - in just another endless pursuit?

Who holds the answers?
Is there such an entity, overlooking our growth, development, later decease and death?


Hoy, Beholder!

Where do we depart to?
Why is our final destination enshrouded in such a mystical mystery?

Which way is the way out...
To freedom?


domingo, 15 de fevereiro de 2009

A (suposta) Verossimilhança

A imprensa suíça deu grande destaque à reviravolta no caso Paula. Alguns jornais publicaram duros ataques. Um colunista do diário conservador "Neue Zürcher Zeitung", um dos maiores do país, acusa a imprensa brasileira de inventar fatos "regularmente" e afirma que o Brasil é um dos países mais racistas do mundo.
[Folha de S. Paulo, Mundo, Domingo, 15 de fevereiro de 2009. Sobre o caso da brasileira que foi alegadamente ferida por neo-nazis na Suíça, na estação de trem Dübendorf.]

Pode mesmo ser que o Brasil seja um dos países mais racistas do mundo. Só não o vejo nos metrôs e ônibus. Talvez eu esteja cego, mas o que vejo, sim, é um preconceito inerente nas pessoas contra os pobres - todos os depauperados pela sociedade iníqua em que vivemos. Esse preconceito existe. No mundo dos negócios, já foi mostrado que o homem branco ganha mais que a mulher branca, que ganha mais que o homem negro, que ganha mais que a mulher negra. Asiáticos e outros não foram contabilizados no estudo, mas a velha piada corre solta sobre a dificuldade de se encontrar um mendigo asiático por aí. Existem, mas sua exclusão é meramente econômica, e não tem qualquer origem social ou discriminatória quanto à sua etnia.

Sim, a imprensa também inventa fatos "regularmente", para manter o Pão e Circo (Panis et Circensis, né Buarque?) funcionando. Mas assim o fazem todas as imprensas do mundo, pelo o que eu saiba. Só imagino se na Suíça há a mesma convivência diária e oni-vigente entre negros, brancos, pardos, amarelos e (poucos, mais ainda assim presentes) vermelhos nas ruas, nos transportes públicos, enfim, na vida cotidiana. Pergunto-me se lá essa convivência um pouco menos forte e manifesta não poderia colocá-los na lista dos países racistas (e xenófobos). Porque xenofobia, no Brasil, é coisa para inglês ver. Deve haver focos por aí, com políticas xenófobas sendo disseminadas entre neo-nazis e afins, mas a população em geral não tem muito o que dizer sobre estrangeiros.

Criticar o outro, de forma tão acerba, é uma forma de se esconder. Ah, poderiam ter se lembrado da corrupção tupiniquim! Quão conveniente não seria... hein?

sábado, 14 de fevereiro de 2009

A Regra do Jogo (Le Règle du Jeu - 1939)


É um filme que trata sobre o ciúmes, a traição, a amizade, os erros. O que mais entretém nisso tudo talvez seja a perspectiva sob a qual ele aborda as relações sociais: parece que estamos lendo algum livro de Honoré de Balzac - algo sobre a aristocracia decadente e a promiscuidade por baixo dos panos, aspecto que recebe tantas alusões na série A Comédia Humana. Sendo o francês a língua mãe, parece que tudo fica mais natural. É possível observar toda essa circunspecção falsa do "viver na sociedade" - a imagem de si mesmo, as aparências, o modo enfatuado de ser e portar-se.

É um bom filme, especialmente no que tange ao vocabulário e à boa atuação. Há 70 anos, o cinema era diferente... talvez não para o melhor, numa repentina afetação nostálgica. Mas vale a pena conferir as mudanças técnico-científicas que se evidenciam com os tempos.

De qualquer forma, sinto falta de um Raskolnikov, para pôr fim à velha usurária.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Incógnitos da Metrópole


São Paulo. 01-02-2009. 2h da madrugada.

Encontro-me em frente ao MASP, Museu de Arte de São Paulo. Senti essa vontade inexplicável de visitar São Paulo à noite. Desci na Sé e caminhei até chegar à Brigadeiro Luís Antônio e então à Paulista. E foi assim que, andando a esmo, deparei comigo mesmo em frente ao MASP. Poderia ter sido qualquer outro lugar, mas eis aqui o que eu chamo de coincidências da vida.

Esse sentimento que nutro, algo como um respeito pela Arte e sua capacidade de expressar o estranho e o sobrenatural. Aliás, não sou diferente de muitos - apenas mais um brasileiro, nascido nesta terra auriverde. Ao deambular por estas ruas apócrifas, lanço um desafio a mim mesmo - peitar a frialdade noturna que se antepõe ao medo morno que me assalta durante o dia.

Pergunta-me o que é medo morno. Só o posso descrever como uma agulha recém-cauterizada perfurando a pele do meu braço esquerdo, e eu sem saber o que virá depois dessa violação de minha liberdade. A noite vazia e gélida incute-me um temor. Que temor é este não sei. Talvez porque tenha andado por estas bandas durante o dia, e tenha cruzado com turbas e ruas apinhadas. A multidão de certa forma afasta o medo. Uma vez sozinho, já não tenho a ilusão de ter alguém por perto em caso de perigo. Estou só no mundo.

Essa sensação me picando por dentro. Sou livre (sou mesmo?), mas o pavor me atormenta vivo. Uma liberdade... assustada. Tenho-a em mim, mas não sei o quê, exatamente, fazer com ela. A autopiedade desfere um golpe repentino e logo clamo: "Sofredores! Sou um deles!" Quero algum sentimento de pertença, de amparo, de companhia. Já se foi a luz do dia. Agora é noite, e cada ladrilho pisado, uma penedia.

Estou premido, quiçá infeliz. Tenho medo e me angustio por tantas coisas simultâneas. Agora mesmo, este receio gritando desloucado em meu imo: estou amedrontado com a maldade alheia e de ser mais uma vítima ignota dela. Vejo, com os olhos da alma, que poucos têm o coração aberto ao perdão. Tenho medo de ser um deles, também. De não poder me autoperdoar, e não conseguir perdoar meu próximo.

Minha cabeça gira confusa. Clichês percorrem-na em disparada, sem me dar tempo de analisá-los com maior criticidade. "O Povo é um só". Este fica teimando em se gravar em minha memória. Não o quero, não o quero. Não é verdade. É somente mais uma frase de efeito, mais uma âncora do nacionalismo. E não, não quero fazer de minha mente e minha vida um ancoradouro para tamanhos disparates. Ser igual a todos é o mesmo que ser ninguém entre ninguéns. E se não há, absolutamente, ninguéns, essa oração de cunho ditatorial já não faz sentido algum. "Uma imensa diferença e variedade de culturas aglutinou-se para formar uma só massa: o povo brasileiro."

Isso também é inverídico! Que absurdo proclamar dessa maneira a formação multivariegada do povo brasileiro. "Uma só massa". Mais um chavão determinista. Massa de quê? Manobra, certamente. Para onde vira o timão do autocrata, vira também o leme do povo. Povo que passa fome, que mal a mal come, que vive assim-assim. Em choupanas ribeirinhas toscamente erigidas, em paliçadas sobre-rio, em aglomerações superpovoadas denominadas favelas ou sei-lá-mais-quê... Diz-que-diz-ques... tenho que parar com esse zumbido crescente em minha cabeça. "Uma só gente" remete à aculturação, à homogeneidade, à ruína da alteridade, da diversidade, multiuniversalidade e multidimensionalidade. Do caráter multitudinário do Real. "Um só povo", "Uma só massa" - lavagem cerebral! Ao infernos com Colombo, aos infernos, Cabral! Vocês destruíram o bem, para germinar o mal! Trouxeram civilização e uma religião monoteísta a quem nada havia pedido. A incorporação do poder centralizador em culturas silvícolas que viviam muito bem sem seus dogmas e suas imagens de certo e errado. E todas as mentiras que vieram lhes contar, para trapacear, estuprar e roubar!

Esta cidade metropolitana, este monumento à Arte que ora observo - armado em concreto e ferro. Erigido sobre o sangue dos nativos. Enterraram meu coração... na curva do rio.

Inspirado no original de: Edson Porfírio de Araújo, natural de Surubi, Pernambuco. Um transeunte noturno que fez questão de me fiar uma folha um-quarto amarrotada, com muitas idéias em poucas linhas. Remeta ao título se te interessar saber quem é Edson. Você pode ter cruzado com ele algum dia - e tal passagem não ter tido qualquer valor em tua vida. Agora, diga-me, em que mundo vivemos, que já não conhecemos o próximo? Quiçá temamos o que o estrangeiro tem a nos dizer sobre a nossa própria terra. São Paulo, selva de pedra, pólo econômico e da depressão, das baladas loucas e vã fruição. Eis... o que chamamos... "civilização".

P.S. (11/08/2010): Destruí os originais de Edson, na última limpeza do meu armário de "papeladas". Mas já está transcrito neste meio virtual, de qualquer forma. E é "Edson" sem acento, mesmo, conforme sua assinatura. Apesar da gramática normativa da língua portuguesa.

O Curioso Caso de Benjamin Button (2008)


Bem, suponho eu que muito já tenha sido dito sobre essa última produção de David Fincher, com direito a Brad Pitt no papel de Benjamin Button e Cate Blanchett como Daisy. Entretanto, o que pretendo abordar, nesta postagem, são as questões da morte e do envelhecimento - levantadas em todo o decurso do filme.

Daisy revela em várias ocasiões seu particular temor quanto a estar envelhecendo, e, assim, aproximando-se da morte. Processo esse realçado por estar vivendo justamente ao lado de Button, que segue um curso de vida contrário - nascendo velho e doente, para morrer com poucos meses de vida, na figura de um bebê de colo. Seria incorrer em um erro, talvez, denominar o curso normal da vida de Daisy de 'processo', ao passo que a de Button fosse chamada de 'retrocesso', porque ambos têm, no final das contas, uma vida linear - no que tange ao aprendizado, isto é. Da curiosidade infantil à senilidade longeva, ambos perpassam as mesmas fases da vida - se é que se pode nomeá-las destarte -, sendo invertida apenas a seqüência em que elas ocorrem.

Voltando à personagem Daisy: ela tem um certo pavor em encarar o envelhecimento como processo natural da vida do ser humano* . E por que deveríamos, nós, passar anos, ou até mesmo boa parte da vida, amedrontados com algo perfeitamente natural e cabível a uma existência finita? Por que deveríamos, mesmo na maturidade, persistir nutrindo um receio pueril concernente à futura velhice? É provável que tal medo advenha do fato que, na juventude, raramente sentimos a morte - incognoscível eterealidade! - roçando-nos os pêlos eriçados do braço. E, claro, devido à nossa vivente ignorância do além-mundo, tememos a morte. Porquanto, por temermos a morte, tememos - daí - o envelhecimento.

Mas a pergunta essencial, derivada desse questionamento, é: por que ter medo da morte? Se a morte fecha o ciclo onde o nascimento o engendrou, estamos a falar da mesma coisa, pois não? Vejamos bem: se desenharmos um simples círculo:

Podemos ver que é uma figura hermética. Não há começo, bem como não há fim. Escolhamos qualquer ponto dessa linha que o delimita, para alocar a palavra "morte".

Agora escolhamos qualquer outro possível ponto para alocarmos a palavra "nascimento".

Pronto. Este é o ciclo da vida, na forma mais simples de caracterizá-lo. A parte curiosa de figurar a vida como um ciclo é que, ao fazermos isto, deduz-se automaticamente que: sem a morte, não há nascimento, e sem o nascimento, não há morte - e, para chegar de um ponto ao outro, perfaz-se todo o ciclo. Se um não existe sem o outro, depreende-se que um leva ao outro - e se eles são sine qua nons mútuos, eles são, essencialmente, a mesma coisa. É o velho sofisma de perguntar quem veio antes: a galinha, ou o ovo? Nem um, nem outro. Pois o ovo vem da galinha, e a galinha provém do ovo. Logo, um não existiria sem o outro o preceder. Um dá vida ao outro.

Assim, da mesma forma com não temos medo de nascer, a mesma atitude deveria se aplicar logicamente à morte. Quão ilusório denominar a morte o fim, e o nascimento o começo! Benjamin Button vem mostrar a inveridicidade dessa asserção: o nascimento pode - por que não? - ser o fim, e a morte, o princípio.

O elemento abstrato "morte" pode, sim, ser utilizado como um incentivo para buscarmos alcançar todos os nossos mais caros objetivos enquanto nos vemos vivos. Para muitos, essa é a suprema razão de viver, indagando-se: se este fosse meu último momento, o que eu daria por ele? Quão caro eu pagaria neste momento para realizar minhas metas?

Quão encorajador!

Se apenas soubéssemos dar tudo de nós...

P.S.: Outro filme recente que trata do regresso à juventude, porém em circunstâncias diferentes, é o Uma Segunda Juventude ("Youth Without Youth"), produção de 2007 do diretor Francis Ford Coppola. É uma obra cinematográfica magistral. Por seu aspecto duplamente místico e fantástico, não atingiu as bilheterias nem o esplendor da crítica da mesma forma que O Curioso Caso de Benjamin Button. Sua densidade psicológica e seu caráter multicultural deixaram-me de fato boquiaberto. Recomendo-o amplamente, inclusive para quem não apreciou Benjamin Button. Para quem gostou, então, será um prato cheio - certeza de um cinéfilo (cartaz e trailer abaixo).





*
E, virtualmente, de toda a vida sobre a Terra, com uma leve exceção...

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Drugstore Cowboy (1989)


É uma película que trata sobre o abuso de drogas farmacêuticas para fins psicodélicos. Mais do que isso, concerne a turbulenta rotina de quatro jovens que assaltam de drogarias a hispitais, com o propósito de obter as tão desejadas substâncias que os levam a delírios extáticos diários.

Deixando de lado juízos morais quanto ao dia-a-dia desses dois casais que protagonizam as cenas, o filme nos leva a concluir que as experiências transcendentes que eles buscam ao usá-las incitam à repetição de novas e mais doses para mantê-los nesses estados escapistas e prazerosos da mente. Não custa dizer que a tão almejada fuga da realidade que eles alcançam com esses medicamentos psicotrópicos os levam, naturalmente, a roubar mais e mais farmácias e nosocômios, expondo-os a riscos cada vez maiores de serem flagrados e presos em suas incursões ilícitas.

Incorrendo em um cotidiano marcado pela adrenalina, eles vivem seu próprio mundinho - completamente delimitado pela utilização de drogas psicoativas. Um ponto diferencial do vício desse quarteto juvenil é o fato de que eles procuram atingir seus estados alucinógenos não por meio da mescalina, maconha, heroína e toda a trupe de drogas que as acompanham, mas especificamente por mio do uso de drogas designadas a fins farmacêuticos.

É claro que seus roubos não passam despercebidos, e logo a polícia se põe em sua cola, esperando pegá-los com a mão na massa. A tragédia, também, não mede distâncias. Confrontando a recente morte de uma das integrantes, Bob, justamente o que aparentava ser o mais dependente dentre todos os demais, encontra uma saída inusitada à armadilha em que se metera: afasta-se a tempo dos membros remanescentes do grupo, que não queriam abrir mão do êxtase fácil, e retorna, não sem dificuldades, ao modo de vida tido como "normal", e, conseqüentemente, o mais bem aceito pelas normas sociais.

Curioso apontar para a questão das tentações por que Bob passa: em pleno processo de reabilitação, recebe a inesperada visita de sua ex-namorada, que traz consigo um "presentinho" - o que continhas, tu podes bem o adivinhar. Apercebendo-se, no entanto, que a vida que voltara a levar, estando empregado, domiciliado e em condição econômica estável, não era tão dura quanto imaginara em seus "tempos aéreos", Bob mostra-se mais forte, e firmemente decidido a levar a cabo seu objetivo de reverter o curso de sua vida.

Para mim, a parte mais revelante do filme se demonstra nas reflexões depreensíveis: se vale de fato a pena e se é possível um recomeço a partir da desintoxicação voluntária, e se os esforços pessoais para tal fim podem superar as tentações originadas no antigo vício.

Sob esse aspecto, pude apreender um otimismo incipiente no filme, ao menos no que tange aos resultados angariados pela admirável força de vontade de Bob. Pois mesmo sob pressão, ele pôde suportar as agruras provenientes dessa brusca tentativa de mudança.

Assim, o filme mostra que mudar(-se) não é fácil, mas é, todavia, possível.

From the fire, comes light...
What was darkness, becomes bright.
Now behold you, such a marvelous sight:
Gazing deep, into the unveiled eyes of the night...

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Billy Elliot (2000)

Assistindo a esse filme, dei-me conta de quão inculcados são os mais fortes preconceitos em nós. Até não os percebemos no cotidiano, mas quando eles teimam em subir à tona, torna-se impossível negar sua existência. Por que não nos damos conta deles? Talvez porque se encontram em lugares de nossa mente que evitamos a todo custo tocar. Fere-nos observar imparcialmente nossa estrondosa ignorância. Machuca-nos lidar com ela, sendo bem mais fácil empurrá-las cada vez mais para baixo do tapete. Pouco importa, pois um dia varreremos todo o pó que se ajuntou ali debaixo - e, nesse ocasião, ficaremos espantados.

É um filme que leva à refletir sobre o papel da família na formação de uma criança. No caso de Billy, crescer num círculo familiar restritivo e inibitivo não o impede de seguir seu coração. Seu pai o quer ver no boxe, esporte tido como típico e representativo de um homem. Se é que se denomina esporte distribuir socos e murros no teu próximo. Se é que é próprio do homem cumprir uma funcionalidade heterossexual instigada pela sociedade.

O pai de Elliot poderia ser um psicopata e jamais se arrepender do tratamento dado ao filho ao descobrir seu talento e interesse pela dança. Mas o filme mostra que o pai irá até o inferno, se for preciso, para dar ao filho a oportunidade de optar por um futuro mais promissor do que aquele vivido sob a terra, cavando minas e passando horas em condições insalubres. Reconhecendo que errou, o pai de Billy emociona a platéia ao pôr-se contra seu filho mais velho, para conceder a Billy as oportunidades que nunca teve em sua ida tenra juventude.

Se Alvin Straight (post abaixo) simboliza e encarna o amor fraternal, o pai de Billy demonstra tudo o que pode o amor filial - e o amor paternal. Porque ao aperceber-se de suas concepções errôneas, fomentadas por uma sociedade masculina de mineiros, o pai desse menino irá voltar a trabalhar - quando todos seus amigos ainda se encontram em greve e protestos (devido às precárias condições do trabalho), para dar vazão aos sonhos de seu filho.

Que escolha arduosa e acerba tem de fazer esse homem, que se vê premido entre seus intentos de lutar por melhores condições no trabalho e os anseios de tornar-se bailarino do filho! E é por mostrar tais facetas que o filme evoca o que há de melhor e mais caro no Homem: o poder de mudança que advém após a resignação de velhos dogmas. Ele é forçado a tomar uma decisão que dará contornos à vida de seu filho: quer que Billy seja feliz (não importante sua escolha) ou que seja semelhante a si mesmo?

Filho de peixe, peixinho é. Mas nem sempre. Ou melhor, quase nunca. É necessário deixar de lado todo o orgulho dessa asserção para se parar de paternalizar as relações familiares. O pai quer o melhor para o filho, mas quem sabe o caminho a trilhar - ou quem está para descobri-lo - é somente o próprio filho. É com suas próprias pernas que escolherá os atalhos e as curvas da estrada por que irá passar - e que singrará no restante de sua vida.

Por sendas e emendas, chega-se lá.

O pai de Billy enfim chegou - lutando contra si mesmo, e aprendendo com essa eterna luta.

Pelejou contra os próprios preconceitos, e só assim pôde dar ao filho o que este mais desejava no mundo.

(A) História Real [1999]


Uma memorável história sobre o amor fraterno. Quão longe você iria para perdoar teu irmão? Ou mesmo teu amigo?

É difícil imaginar-me fazendo o mesmo que Alvin Straight, o protagonista dessa estória. Quiçá porque a importância elevada que atribuímos às nossas próprias ações nos coloquem justamente sobre os outros. E esse outro, quem sabe, pode vir a ser aquele - ou aquela - a quem mais amamos. Não importa a forma como se dá esse amor, ou essa correlação, que seja: o fato sobressalente é que há amor - e isso define tudo.

Distância ou tempo não são barreiras. Pois se fossem, poucas aventuras realizaríamos em vida. E nenhuma jornada é mais marcante que aquela ulterior - precedente à morte desse corpo. A façanha de Alvin remete a isso. Sabendo que não viverá muito mais para amargar a briga que o separou de seu irmão, decide-se, pois, por fazer o que provavelmente jamais haveria feito na aurora de sua vida: perfazer milhas e mais milhas, com uma vibrante tenacidade de espírito, para rever quem o havia ofendido anos anteriormente.

Cain e Abel: Alvin engole o próprio orgulho e o próprio fel, num embarque catártico, cuja destinação final é o perdão. A rixa de irmão a irmão dissolve-se ao observarem, juntos, um lindo céu estrelado, multitudinário - em celebração ao hábito já consagrado entre ambos na juventude. Querendo perdoar, ele deu o primeiro passo - de outro modo, não poderia nunca ser. O longo viajar, no filme, simboliza o rejuvenescer da alma. Se é fato que os anos gradualmente degeneram o corpo, mais verdadeiro ainda é o poder regenerador do perdão.

Parece que o ato de perdoar vem imbuído de uma significância toda sua: ao perdoar, se é perdoado. E assim desaba a concepção de pecado: Maria Madalena osculou os pés de Jesus - e por esse gesto se perdoou, e assim foi perdoada. Se, naquele momento, pesava-lhe o fardo da culpa, esta foi lavada. Por onde passam as águas da mudança, sobram apenas os mais resilientes traços. Sua função é apontar a existência daquilo que outrora perturbou a mente dos homens - o que se julgava indestrutível, mas que o ciclo da vida de da morte não poupou.

Se é que tudo se renova num eterno recomeçar, há-se de ser mau, antes de transfigurar-se no ícone da bondade. Há-se de conhecer a maldade, a malícia e as maledicências, para poder agir de maneira benevolente. Por que perdoar é tão duro, e amaldiçoar tão corriqueiro? Talvez a resposta tenha a ver com o fato de que, ao enunciarmos o perdão a outrem, nossos olhos viram-se, por breves instantes, à reflexão do quê levou a quê, e, desse modo, ao quê fizemos (de errado).

Portanto, fugir é bem mais fácil do que escrever sobre aquilo que remonta, em mim, à existência de uma humanidade que vai muito além da palavra grafada. O homem que pede perdão dá a cara à tapa; e o que o concede muitas vezes recebe bofeteadas duplas: a primeira vai diretamente no auto-orgulho e na auto-importância. A segunda, quando se é traído uma segunda vez, e perde-se a confiança no ato de conceder perdão. Por isso, é essencial saber a quem - e a quê - perdoar, porque é inegável que esse nosso orgulho useiro e rezeiro é um resqüício do instinto de auto-preservação, e já deve ter salvado muitos de incontornáveis ciladas à espreita.

Ajoelhar é mais fácil que pedir perdão: aquele que pede o pé, não raro requisita a mão.

Perdoar ou não perdoar é mais que uma simples questão: é um ato que irá delinear o desenvolvimento do aprendizado. Matar a víbora que te pica pode te deixar sem o antídoto responsável pela cura - e sobrevivência. Não matá-la pode resultar numa segunda picada, e o olvido final.

A morte não perdoa - o gume é afiado, a lâmina é boa. Perdoar pode ser a virada da canoa - em vão sonharás co'a proa. Decisão acertada... decisão correta... quem as conhece, senão quem as faz?

It's always up to you.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Ergo

Por que ao assistir a isto se emocionou?



(Assista no youtube)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Encalhados

Estavam todos se entrosando tão bem. Os olhares se comparavam, entreolhavam-se todos eles. Eles e elas, três cá, cinco acolá. Primeiro dia, todos se confraternizando, irmandade ressurgida no micro-experimento social que construíam - sem a menor consciência de o estarem fazendo. Segundo dia, mais aconchegados, aproximados, amigados. Todos eles. Todas elas. Portas e janelas, sem juízos de certo e de bem, errado ou mal. Tal qual... tal qual uma vida bucólica, campestre, idílica por si mesma.

Comiam, bebiam, tomavam, deitavam. Divertiam-se, gargalhavam, ficavam sérios, mas nunca sisudos. Eram pensamentos e reflexões ímpares, de indivíduos vivendo em conjunto. Tudo junto. Piscina, pingue-pongue, natação, diversão. Cambalhotas, conversas, jogos, ecletismo musical. Nada boçal. Aprendiam a compartilhar tarefas, a ajudar o outro, a compreender as minúcias de relacionamentos e ficarem na sua. Como o seriam mui naturalmente. Queriam paz, sossego, e quiçá sua devida porção de jovialidade.

Pebolim, mestre, detetive, status, pôquer, Natasha, Smash Bros (alguns), filmes (O Último Rei da Escócia, Beleza Roubada, O Senhor Dos Anéis - Duas Torres, Contos Proibidos do Marquês de Sade), vôlei na água, frescobol, montinhos sobre a bóia. Toda uma reunião de brincadeiras - e talvez asneiras, mas quem se importa, fomos felizes - e situações inusitadas.

Terceiro dia: o mais quente, fervente, borbulhante. Foi de fato um dia de Sol e novas descobertas. Terminou como começou: no calor da juventude e na concretude de atividades desenvolvidas em grupo. Auto-descoberta reinou. O princípio era o fim, e o fim, o começo. O tempo não necessitava ser prolongado, era tudo mui pouco premeditado. Não se precisava pensar para trazer o conforto ao amigo. Consideração pelos gostos diversos, pelos hábitos de cada qual.

De repente, o quarto dia terminou em fúria. Prantos, raiva e arrogância mal-contidas, expressadas em meias-palavras, meios-olhares, meios-esgares, mui mal-disfarçados, se é que se precisa asseverar tal obviedade. Trombávamos, soltávamos palavrões cá com nossos botões, esbarrávamos com bancos e cadeiras. Tudo uma sorte de atos falhos que faria Freud se remexer na tumba. O véu da felicidade balouçava com o vento e mostrava uma inquietude, uma certa desobediência, um instinto anti-social.

Puxa! Mas estávamos em sociedade, éramos amigos, poxa! Que angústia de expressão era aquela? Que vento sombrio soprava pela janela? Por quê?

Era preciso fazer algo. E esse algo foi feito. Quatro dos oito se agruparam, sob a motivação de um deles, e, claro, sob a força das circunstâncias. Eram os quatro solteiros. Quatro descompromissados que poderiam tentar uma improvável reconciliação naquela mesma hora, naqueles mesmos instantes - gritantes, gritantes!

Pois aquele que os incentivou ao diálogo e à re-visão do ocorrido puxou a conversa. Puxou também sua cachimbada. Fumo de corda, cortado enquanto a cabeça estava fria. Era preciso esfriar as brasas. Era preciso um gelo para acalmar aquelas mentes jovens atiladas, atracadas. Ninguém queria ouvir ninguém. Todos queriam falar. Mas ele tentou manter a calma, a alma, e as manteve. Que força o dirigia, não se vale deliberar abstratamente.

Portanto eles chegaram num consenso: estavam todos nervosos, a raiva havia emergido. O calmo mar sofrera ressaca, revelara tsunamis incipientes e altamente destrutivos. Mas, ressaltou o falante, necessário, sim, era fazer uma avaliação das causas, possíveis causas, é claro, pois nem ele mesmo sabia o porquê de tanta adversidade emocional entre amigos chegados, bem-apessoados e relacionados. Com seus interesses e hobbies, de fotografia à música, de literatura às Artes. Nem mesmo ele sabia porque estava tão rude e tão agitado, tão turbulento em seu imo. Por que aquela sensação ardente, malévola, em suas tripas, em seu cérebro, em suas extremidades. Todo o corpo era uma revolução e uma reviravolta.

A voz de todos havia se alterado. Era entrecortada, cepácea, malcheirosa. Era uma voz agônica, um urro de insatisfação, de desesperança, de desfalecimento. Estavam todos em atrito. Mútuo atrito. O frio não fizera ressalvas à conversa psicanalítica. Tremiam as pernas para afastá-lo, até que foi feita a sugestão de adentrarem e se acomodarem num ambiente mais propício - pois um deles já estava rouco e com evidentes sintomas de gripe.

Sentaram-se, achegaram-se, sorveram gelatina, de uva, de morango - muito pouco desta, por sinal. Que saúva os picara, desconheciam. Procuravam na memória situações semelhantes de brigas intrafamiliares e as compartilhavam - de forma proveitosa. Até que se sugeriu que assistissem a'O Último Rei da Escócia. Viram, um deles dormitou em algumas partes e as ouviu em detalhes de outro, que se encontrava ativo e solícito para os ensonados. Ela saiu para fazer não-sei-o-quê e, ao voltar, recebeu uma síntese do que se havia passado no decorrer de sua ausência não-explicada. Ainda estavam fumegantes e raivosos, é fato. Não se pressiona um bicho acuado. Ele te pula na face, ele te fere no coração. Tu morres, só. Deixasse as perguntas pra mais tarde, quando a noite já se houvesse ido, e os raios solares pudessem reaquecer e reavivar as almas mortas. E se deixou ficar.

Muito contentes com suas observações no decorrer do filme, persistiram ainda nelas por poucos minutos. Ela foi se deitar, e os três foram mirar o céu e seus corpos, estelar, lunar. O gelo da varanda não amainara. Foram checar se alguma roupa seca ainda estava no varal. Contaram seis aranhas com cerca de quatro a cinco centímetros de corpo, sem levar em consideração as patas. Viram, embasbacados, a maior delas agarrar uma mosca sonolenta e dar cabo à esperança de sobrevida da infeliz - em frações de segundo. Una morte. Má sorte, ou apenas a ordem das coisas. Já naquele momento percebiam como era útil e aprazível abster-se de juízos morais ou quaisquer outros que prejudicassem a alteridade e o bom-humor do grupo. Este último saía de voga naquelas últimas horas escondidas da civilização escorreita e urbana.

Com a algidez da noite, restaram apenas dois do lado de fora. Viram no horizonte (uma limpa visão panorâmica percorrendo incríveis 180º) uma coloração glauca - azul-esverdeada, verde-azulada - tingindo e sorrindo. Ressurgia o Sol, o dia - e a alegria. O assunto ia e vinha, e ambos se entendiam. Finalmente. A cor glauca passou a dividir o espaço celeste com traços purpúreos em meio à negritude da noite inda inacabada. O rosicler se fez aparecer. Ah, o arrebol! Quantos arrebóis já não haviam visto aquels dois mancebos, mas nenhum que se igualasse àquele!

Depois das tormentas de um oceano trágico e tempestuoso, o renascer da vida se mostrava nas paletas infinitas da natureza. Nos tons, nos timbres, nos recessos da noite. A transição das trevas para a Luz.

Puxa vida!

E pensar que tudo poderia ter sido dado por perdido!

Quão fracos somos nós.